Esta obra nasceu numa prisão. Uma obra realista. Sua base: 11 anos de exílio
Ver o mundo como uma prisão é uma constante dos escritores russos. Também é , um reflexo da sociedade em que vivem, desde a época tzarista, passando pelo terror stalinista. Essa sociedade penal realça dramaticamente o que há de básico na condição humana. O trivial torna-se trágico, o absurdo torna-se profundo, a fraqueza virá força.
Esse é o mundo em que vive Aleksander I. Solzhenitsyn, Prêmio Nobel de Literatura de 1970. Esse é o mundo dos seus livros, sofridos e amargurados. Mas, no meio dessa asfixia, Solzhenitsyn sobrevive graças a um talento de observar e narrar a miséria ao seu redor, com uma percepção digna dos grandes clássicos, Tolstoi, Dostoievski ou Turgeniev.
O que chama primeiramente a atenção nas obras de Solzhenitsyn é exatamente esse classicismo, semelhante ao de um grande escritor do século XIX que, de repente, surgisse em pleno século XX. Numa entrevista, concedida em 1968, o poeta concedida em 1968, o poeta Evtuchenko declarou: “Solzhenitsyn é nosso único clássico vivo”.
Seus livros não têm truques de vanguarda, exagero de fluxo de consciência, filosofia existencialista. São escritos numa prosa direta e dura, usando muito a linguagem coloquial e uma preocupação pelos detalhes que o liga aos realistas e naturalistas do século passado, especialmente Emile Zola. Ele conta apenas o que acontece, a fantasia é uma ausência na sua obra.
A sociedade é tal como ele descreve, é a Rússia contemporânea, não uma mera concepção como o 1984 de George Orwell. E o papel do narrador nessa descrição é dolorosamente real, pois Solzhenitsyn é um dos intelectuais mais perseguidos atualmente na União Soviética. Como Dostoievski, passou anos na prisão e no exílio. Quando escreve sobre esta sociedade-dentro-da-sociedade, o terror é tão quotidiano, a brutalidade é tão banal que sabemos que cada linha é verdadeira.
Solzhenitsyn tinha 44 anos quando seu primeiro romance foi publicado na revista literária soviética Novy Mir (Mundo Novo), por interferência do então primeiro-ministro Nikita Kruchev. Antes disso, lutou como oficial de artilharia (foi condecorado duas vezes) nas frentes de Leningrado, Bielo-Rússia e Rússia Ocidental, proveniente da Universidade de Rostov.
O universo concentracionário começou a agir em 1945 sobre o escritor. Em julho desse ano, foi preso e condenado a oito anos de detenção e exílio, por “ter expressado dúvidas sobre as qualidades militares de Stalin”, segundo a sentença. As críticas a Stalin faziam parte de cartas a um amigo.
Só em 1956 é que seria libertado, já no período da desestalinização. Mas já formara as bases de sua futura obra literária, nos campos de concentração e no exílio em aldeias de pontos distantes do território soviético.
A estreia de Solzhenitsyn provocou problemas que a publicação na Novy Mir não resolveu. O livro, Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, não conseguiu ser editado na Rússia até hoje. Mas provocou um impacto enorme nos meios literários russos e além deles, favorecendo, de certa maneira, as grandes linhas da política interna realizada por Kruchev, que felicitou o autor pelo “realismo e profundidade” do romance.
Em Moscou, formaram-se filas para comprar a revista, 95 mil exemplares foram vendidos num dia. Nos Estados Unidos, dois editores lançaram simultaneamente o livro. Um deles trancou o tradutor em sua casa de Greenwich Village 11 dias, com dois datilógrafos e “muito uísque”. Foi a pior tradução das duas.
O enredo do livro é simples: quantas regras de um campo de concentração, o prisioneiro Ivan Denisovich Shukhov consegue não quebrar, num dia. Depois de oito anos no campo, tem um instinto animal para evitar punição e descobrir comida. Sabe quando pressionar, quando pedir, quando implorar, de quem se aproximar, a quem evitar.
O campo é situado em meio às estepes. Todo dia os presos são enviados para a realização de trabalho sem sentido, comem sopa de peixe estragado, são mandados para fora das barracas de castigo, totalmente nus sob o frio siberiano.
Mas Um dia... é mais um caso de fenômeno político que literário. Falta-lhe a força psicológica intensa das descrições de prisão de Dostoievski ou Ivo Andric. Mesmo assim, Solzhenitsyn estava lançado como o grande paladino da luta contra o regime penal que ainda vigorava na Rússia.
O sucesso no Ocidente, as críticas a Stalin e os elogios que recebeu de Kruchev despertaram inveja entre outros escritores, enquanto sua posição política causou-lhe inúmeros problemas após a queda de Kruchev. Antes, ele publicara A Casa de Matriona, em 1963.
Passados vários anos de críticas e censuras e ameaças, Solzhenitsyn foi excluído da União dos Escritores, medida equivalente à proibição de publicar livros na URSS.
A odisseia de Solzhenitsyn começou a chamar a atenção do mundo em maio de 1967, quando ele se queixou formalmente à União dos Escritores, contra a polícia secreta, que havia apreendido seus manuscritos e outros papéis pessoais. Além disso, denunciou a existência de exemplares clandestinos de suas obras, distribuídos contra sua vontade em Moscou.
Avisou que esses manuscritos cruzariam a fronteira e seriam publicados no exterior. Pedia proteção contra essa eventualidade, assinalando que o fracasso da Rússia em ratificar o acordo internacional de direitos autorais deixava seus escritores impotentes para controlar a publicação fora do país.
Seguiu-se uma longa discussão em Moscou, que culminou com um encontro informal de Solzhenitsyn junto aos seus colegas da União, em 22 de setembro de 1967. O escritor pediu que seus livros fossem publicados; exigiram que ele escrevesse uma carta aberta denunciando a exploração da sua obra no Ocidente e repudiando “o papel que lhe haviam atribuído no Ocidente”, o de “líder da oposição política”. Ele recusou.
Não havia qualquer proibição formal à publicação de Pavilhão dos Cancerosa e a Novy Mir extraiu as primeiras provas do livro, que foram corrigidas pelo autor. A data marcada para publicação era janeiro de 1968. Mas isso nunca aconteceu, como resultado de uma decisão pessoal de Leonid Brezhnev, ratificada mais tarde pelo Politiburo.
Pavilhão dos Cancerosos apareceu quase imediatamente na Europa Ocidental, em tradução de uma edição mimeografada russa. O tema, como o da prisão, foi testemunhado e suportado pelo autor. É o mundo confinado dos condenados pelo câncer. Agora, o mal não é criado pelo homem, como o campo de concentração; tem origem divina, é inescapável e eterno.
No livro, ele examina com precisão, científica, a natureza da doença e o processo pelo qual o doente, como o prisioneiro, revela-se a si mesmo e, às vezes, se transforma no confronto com a morte. Tolstoi já fizera isso, já mostrara como um homem pode ser reduzido à sua essência pela doença, na sua obra-prima, A Morte de Ivan Ilitch, que é evidentemente o modelo de Pavilhão dos Cancerosos.
Solzhenitsyn insistiu sempre que seu romance é apenas sobre o câncer. Atacou os que o criticavam por ter escrito um romance simbólico e afirmou que havia detalhes médicos demais na obra para se tratar de um símbolo.
A matéria-prima do livro foi a estadia do autor num hospital de Tashkent por volta de 1955, Solzhenitsyn entrou no hospital e curou seu tumor, nunca claramente diagnosticado como maligno. Como ele é, por excelência, um escritor realista, cuja vida é indistinguível da sua ficção, pode-se afirmar que o pavilhão de cancerosos que descreve é bem parecido com o que ele escreveu.
Mas é difícil ao leitor lembrar-se que lê apenas um romance sobre câncer. Há frases como: “Um homem cria um tumor e morre – como então pode uma nação viver cirando campos e exílios?” Os pacientes de câncer são exilados: um ex-prisioneiro, um guarda de campo de concentração, um burocrata da polícia secreta cujas denúncias mandaram dúzias de pessoas para a prisão.
Como em Um Dia na Vida de Ivan Denosivich refere-se à agonia russa sob Stalin, o Pavilhão alude a uma imagem do período pós-stalinista, quando vítimas e executores eram presos, igualmente mutilados, no pavilhão do câncer da nação.
Depois de sua exclusão da União de Escritores, Solzhenitsyn retirou-se para a cidade de Ryazan, a 157 quilómetros de Moscou. Enfrentando sempre muitas críticas, inclusive o convite que a União dos Escritores lhe fez para sair definitivamente da Rússia, indo “para onde que suas obras sejam apreciadas”.
Onde as qualidades de Solzhenitsyn como autor clássico mais se revelam é em O Primeiro Círculo. Também publicado fora da Rússia em 1968. O respeito às unidades de tempo, espaço e ação, uma disciplina rígida, os retratos de personagens semelhantes aos que Tolstoi fazia, sua visão fotográfica nunca foram tão agudos e bem realizados como nesse livro.
A história abrange cinco dias – de 24 de dezembro de 1949 a 28 do mesmo mês. O cenário é um instituto penal soviético, em Moscou. Os personagens são os prisioneiros, os seus guardas, os diretores do Instituto, os altos funcionários do Ministério da Polícia, o próprio Stalin num retrato inesquecível, três ou quatro mulheres, alguns camponeses, vários burocratas.
O enredo é quase sem importância, pois logo sabemos que todos estão condenados – o brilhante matemático, que destrói a obra que lhe daria a liberdade; o diretor do Instituto, que sabe instintivamente que logo estará colocado atrás das suas próprias grades, o diplomata diletante que teme (acertadamente) que seu único ato de decência o condene à destruição de Stalin, às voltas com o medo, presságios de traições e morte, sozinho, mórbido e triste.
O Primeiro Círculo é mais um exemplo notável de jornalismo político que uma obra de ficção; seria o equivalente moderno de Recordações da Casa dos Mortes, que Dostoievski escreveu após cinco anos em prisões tzaristas e mais cinco anos em exílio.
O título refere-se ao primeiro círculo do Inferno de Dante, onde os espíritos que ali moravam, não haviam cometido pecados. Como em Dante, o círculo está na beira de um abismo eterno e a descida é fácil, frequente e quase inevitável.
O livro, apesar de tudo, tem uma mensagem otimista: mostra que, por mais brutal que seja a repressão, o espírito humano não perece. O fracasso de uma série enorme de tiranos em tentar liquidar a dedicação russa aos ideais humanos tem um testemunho, espalhado nas páginas dos romances de Alexander Solzhenitsyn.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Esta obra nasceu numa prisão. Uma obra realista. Sua base: 11
anos de exílio},
booktitle = {Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra
os despotismos e os totalitarismos},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {12},
date = {2024},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-12/04-urss/03-esta-obra-nasceu-numa-prisao-uma-obra-realista-sua-base-11-anos-de-exilio.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1970/10/09. Aguardando revisão.}
}