Um Rubem Fonseca ofendido e humilhado. Como todos nós
Homens comuns da região mais violenta do mundo, a Baixada Fluminense, apostam dinheiro numa lúgubre loteria dos cadáveres futuros: os próximos mortos pelo Esquadrão da Morte serão dez, vinte ou vinte e seis naquele mês?
Num asilo de idosos, repete-se a “solução final” dos campos de concentração nazistas: envenenados pouco a pouco, os velhos são depois incinerados – alguns talvez ainda vivos – naquele “Lar” em que a sobrevida tem uma alta rotatividade.
Nestes últimos contos, publicados em O Cobrador Rubem Fonseca encerra todo o ciclo que viera desde Lúcia McCartney até Os Prisioneiros e A Coleira do Cão: o dos flashes do cotidiano do Grande Rio, como um lambe-lambe transcendente da violência carioca e fluminense do dia a dia.
Não tem muito sentido fazer uma crítica acadêmica de um escritor que se aproxima já, de livro para livro, da fronteira extrema do dizer enxuto, quase clínico de tão apagada é sua participação de narrador, na primeira pessoa, como câmara impassível de desumana objetividade. Rubem Fonseca desorienta todos os leitores que quiserem uma leitura amena, pois as manchetes que ele aborda são de uma truculência crescente, círculos concêntricos em torno do desespero de ser em uma sociedade tão apodrecida.
Na conquista de um estilo cinematográfico, que utiliza a frase como a câmara utiliza um close ou um ângulo, ele deixa poucos interstícios para a sua perspectiva: um adjetivo ou um advérbio que deixa entrever o seu nojo da condição humana no Brasil, com a sua mediocridade intelectual refestelada nos comandos e a miséria plural, não só econômica, mas também humana e afetiva, campeando entre o conformismo animalesco e a revolta selvagem. É um universo em degenerescência espiritual simultânea com a degenerescência pútrida do organismo. Rubem Fonseca compraz-se em não omitir nenhum detalhe naturalista das tragédias urbanas anônimas que documenta como se fossem lâminas de germens levadas ao microscópio: “As rodas do veículo passaram sobre a sua cabeça deixando um rastro de massa encefálica de alguns metros.” Ou o velho que se desnuda no asilo diante do espelho:
“Onde está o velho que eu era? Minha pele continua um tecido seco despregado dos ossos, meu pênis uma tripa árida e vazia, meus esfíncteres não funcionam, minha memória só recorda o que quer, não tenho dentes, nem cabelos, nem fôlego nem força.”
Os enfoques principais do autor carioca continuam sendo o non-sense e o absurdo da justaposição de tragédias insanáveis e o corriqueiro vazio, como nas peças de acúmulos ilógicos e cruéis de Ionesco. Mais ainda: nestas últimas histórias há a incorporação mais decidida da banalidade da frase-feita como instantâneo do medo de pensar e como insensibilidade e inanição emocional. Um homem que atravessa o rio Amazonas para friamente matar outro repete frases de livros didáticos de geografia do curso primário: “O Tapajós é um grande rio, mas o Amazonas é muito forte”. Ou papagueia literatura de almanaque: “Os peixes da Amazônia são todos gostosos… A cozinha do Pará é muito rica. Dizem os gastrônomos que é a única genuinamente brasileira.”
Às vezes, quando se esboça um pensamento lúcido, logo uma resposta aplastante de imbecilidade cobre, como uma mortalha, qualquer tentativa de sair desse pântano de comodismo escapista e chinfrim:
“Está tudo errado, o hino nacional com a sua letra idiota, a bandeira positivista sem a cor vermelha, toda bandeira deve ter a cor vermelha, de que vale o verde das nossas matas e o amarelo do nosso ouro sem o sangue de nossas veias?
É tudo uma pouca-vergonha, disse o barbeiro.”
Este livro se distingue dos anteriores, até mesmo do sinistro Feliz Ano Novo, que a burrice da censura falconiana confiscou durante algum tempo, por não colocar mais fora da realidade que descreve, mas ser paulatinamente o seu co-agente.
Mesmo a literatura naturalista de veemente denúncia social de Zola não participava do quadro que expunha, o início deste século é que chegaria com Beckett ao ápice da feitura da realidade pelo próprio escritor, vítima e cúmplice do inferno em que estamos todos metidos. Rubem Fonseca é um Camus brasileiro, que tem uma noção difusa do Mal que corrói o coração humano, propondo, como no conto que dá título ao livro, o homem revoltado que passa a pegar em armas numa destruição coletiva e concreta dos valores deformantes que o massacram. “O Cobrador” cobra da sociedade tudo que ela lhe roubou, desde a segurança até a comodidade econômica, o sexo, os aplausos e intrinsecamente o reconhecimento da sua humanidade negada pelo “comprismo” anético. E parte para a matança “racional”, coletiva, “Matar um por um é coisa mística e disso eu me libertei”, ele decide quando se une à grã-fina que não achava sentido na vida e entendia de explosivos, um sucedâneo válido para sua busca do suicídio.
Rubem Fonseca não é um contista unilateral, porém: mesmo nas camadas ditas abastadas do nosso materialismo consumista ele discerne entre os robôs e os que estão perdidos em meio ao acúmulo de coisas e gadgets inúteis. A rebelião final do “Cobrador” tem muito do niilismo de um Bukharin, de um terrorismo incapaz de propor uma alternativa à violência pela violência. Estilisticamente, é neste livro que o autor de A Coleira do Cão obtém sua concisão suprema, além de utilizar o recurso de incorporar à literatura os lances cifrados de uma partida de xadrez em alternância com o relato factual ou as baboseiras dos dados transmitidos mecanicamente de geração a geração sem qualquer questionamento.
Não é um volume para quem vê em tudo pornografia e faz caretas diante da menção explícita das partes anatômicas do ser humano nem de suas funções de excreção, cópula, sadismo, indiferença ou ódio. Ao contrário: poucos livros – mesmo depois que a abertura política abriu a gaveta literária de dela NÃO brotou a grande literatura política que se esperava de 15 anos de censura draconiana – ousam esmiuçar tão desesperadamente, e com o mesmo distanciamento de um médico que diagnostica uma doença incurável a não ser pela amputação a frio dos membros gangrenados, uma sociedade envolta no engodo triunfalista e que chafurda na miséria passivamente aceita ancestralmente pelas massas.
Claro que não se trata de uma literatura do gênero realismo socialista, que nas sociedades sem justiça deveria obedecer aos padrões impávidos de um mero gráfico estatístico do IBGE sobre o impaludismo nas regiões rurais do Brasil. Pelas frestas da própria colocação de suas situações-limite Rubem Fonseca nivela-se espontaneamente com seus personagens dostoievskianos de humilhação e ofensa em meio ao escárnio geral.
Como o Krapp de Krapps’ Last Tape de Beckett, ele, no conto inicial, grava numa fita magnética a sensaboria e a mesmice de uma vida órfã de novidades, de paixões autênticas, até mesmo sem sonhos, pois o máximo de delírio que seus personagens amorfos conseguem é o final feliz de um aborto de uma menina adolescente que emprenharam, ou uma inconclusa revolta dos anciãos contra o tratamento hipócrita e subumano a que são submetidas por parentes omissos e autoridades religiosas e civis, mancomunadas na exploração daqueles dejetos humanos. Há momentos de uma equiparação tecnocrática de tons chaplinianos na sua irrisão dos Tempos Modernos, quando o Diretor crápula pergunta ao velho inconformado: “O Sr. acha que os aposentados devem comer melhor do que aqueles que produzem?… Fique sabendo que a Nação gasta uma parte substancial de seus recursos com inativos idosos. Se quiséssemos manter todos os aposentados bem alimentados e felizes, através de custosos programas de medicina preventiva, de terapia ocupacional, de recreação e de lazer, todos os recursos do país seriam consumidos nessa tarefa”.
Raramente surgem personagens dignos, que seguem uma ética própria, individual, no cumprimento inflexível e reto de seu dever contra os poderosos e contra a impunidade de seus crimes. Mas são delegados, logo afastados para localidades distantes, para lá se tornarem inócuos. Ou, pior ainda, são pistoleiros que aderem a uma “ética” profissional e, numa inversão semântica típica da sua ausência de valores normativos, consideram a sua tarefa um “trabalho” no qual não devem entrar obstáculos como mulheres e intimidades com estranhos.
Uma das grandes novidades deste livro, que surge para redimir um ano árido de lançamentos marcantes, é a estratégia de Rubem Fonseca de banalizar o Mal, como na célebre constatação de Hannah Arendt durante o julgamento de Eichmann em Israel. Quando o sócio do advogado falido e trambiqueiro barato exalta a grandeza da cultura alemã, com os três Bs supremos da música clássica, ele lembra àquele judeu que viu seus pais serem trucidados em um progrom da Rússia tzarista:
“Bach, Beethoven, Brahms, Belsen e Buchenwald, os cinco bês no piano”, eu disse. Para sub-repticiamente quase explodir a sua visão pessimista da vida, próxima da tragédia de Macbeth de Shakespeare, que equipara a vida a um amontoado de sons e fúria sem sentido: “Ah, as utopias, os sonhos da ciência nada valem, a vida é um escárnio sem sentido, comédia infame que ensanguenta o lodo!” A máquina de escrever, para Rubem Fonseca, é um instrumento aleatório: “Ação, ação, isso é que é importante, não escrever, e muito menos rimar, vide a vida monótona dos escritores”.
Para muitos, o marginal assumido que, no conto final, “cobra” da vida tudo que lhe foi expropriado antes de nascer, será uma projeção anárquica do próprio intelectual transformado em guerrilheiro consciente, enojado com a ineficiência das palavras: a bomba Molotov em vez do blá-blá-blá.
Uma leitura mais atenta talvez revelasse, no entanto, o desencanto de quem se sente ludibriado pelo próprio ardil montado pela vida em si com a morte e a decomposição senil já embutidas nas células do feto: uma angústia existencial incurável pelas evasões do álcool, da chacina, do estupro.
O festim do massacre dos ricos no Natal permanece necessariamente um projeto, uma intenção, que as páginas deixam inconclusos. Sem uma visão religiosa da vida, a reverência de Rubem Fonseca é para com os seus semelhantes pisoteados. Dolorosamente, como uma frase pichada num muro e que a chuva desbota, este livro termina à margem da realidade, no umbral da própria Utopia ainda amorfa e sangrenta. Mas não sem marcar a sua passagem como um dos momentos mais lancinantes e meditativos da literatura brasileira atual, paupérrima de valores e abarrotada de demagogia e meras “words, words, words”.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2022,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Um Rubem Fonseca ofendido e humilhado. Como todos nós},
booktitle = {Grandes contistas brasileiros do século XX},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {10},
date = {2023},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-10/04-rubem-fonseca/02-um-rubem-fonseca-ofendido-e-humilhado.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1979-11-10. Aguardando revisão.}
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