Um poeta como os gregos queriam: profetizando o futuro, observando o presente

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1978-03-04. Aguardando revisão.

Um incêndio de ira e denúncia percorre os poemas vibráteis de Mário Chamie, criados com mestria crescente, nos últimos 22 anos de sua presença poética constante e enfeixados em Objeto Selvagem, poesia completa (Edições Quíron).

Funda e dolorosamente social, a sua poesia é uma destilação racional sobre a exploração do trabalho no campo e na cidade, sem no entanto aderir aos espantalhos dos jargões encanecidos de Marx. Ao contrário: numa posição diametralmente oposta à da poesia “empenhada” que quase sempre coloca no mesmo monte de penhores o talento, a sua é uma reflexão poética sobre a despersonalização monstruosa de milhões de seres humanos deglutidos pela lavoura e pela indústria. Talvez por meditar - embora com ira e ironia - sobre a exploração da massa humana trabalhadora e recorrer a recursos verbais requintados e difíceis é que a sua poesia não foi adotada como bandeira fácil daquela parte da Esquerda que se obstina em não pensar, contentando-se com o ópio dos lemas já vindos “de cima”, da cúpula partidária monolítica, e sua aceitação sem pestanejar. Além desse estorvo insuperável da racionalização, a sua poesia não é imediata, cheia de estribilhos facilmente decoráveis e passáveis de serem transformados em polpa propagandística. Pois a Esquerda stalinista, predominante no Brasil, com sua atitude elitista prefere rebaixar o nível cultural do povo - esta palavra tão enxovalhada pelo abuso - em vez de acreditar nas potencialidades de sensibilidades e inteligência dos desvalidos, a quem estão proibidos elocubrações que não passem do nível da cartilha revolucionária, antes de instalado o Monolito do poder, ou ao róseo breviário da mentira “realista socialista” depois de tomado o poder totalitário.

Só a relativa “dificuldade” da poesia de Mário Chamie explica seu trânsito cheio de estorvos pelo caminho de sua divulgação rarefeita entre nós. O poeta, este está sempre demonstrando sua efetiva participação pela conscientização do embuste em que vivemos em nosso páleo-Capitalismo. Sábio, ele não apresenta soluções sócioeconômicas mas opta sempre, com comoção, pelos marginalizados e não hesita em desmascarar, minuciosamente, todos os fios da malha em que estamos envolvidos, a túnica flamejante do embuste em que estamos mergulhados.

Precomente, assim, já em 1955 ele apresenta ao leitor, com dramaticidade intensa, no poema “Sonho no Campo” a “lavoura do medo com seus trabalhadores,”fantasmas de palha e gesso avançam contra seus vultos/ num horizonte de espelhos” e sua conclusão lúcida e desassombroda:

“- O homem perde seu fruto nesta lavoura de ausência”

Na época contemporânea, em que vários compositores como Chico Buarque de Holanda e letristas como Aldir Blanc trouxeram para temas de marchas-ranchos o sofrimento mudo dos “bóias-frias”, poderia parecer a quem percorresse levianamente a poesia surgida no Brasil nos últimos vinte anos que no plano erudito só João Cabral de Melo Neto com sua monumental polifonia da miséria nordestina focaliza os problemas éticos da nossa pirâmide social. Mas em poema, esta coletânea marcante pela sua originalidade e pelo seu vigor poético, vem demonstrar que Mário Chamie encarniçadamente vem tecendo seu dizer lírico com a própria substância a consciência humana diante do aviltamento alheio. É eloquente a série de versos intitulados “Lavradores Fantasmas” em que as metáforas começam com a equiparação dos trabalhadores do campo com animais: “Por bichos não os entendo/ Se dormem em jaula ou cerca” para logo distinguirem entre aqueles “fantasmas de paina e pedra”: “Mais por irmãos os advinho/ entre os pastos de seus passos/ pelo verde dos caminhos/ que as invernadas do medo/ apagam sem mais segredo.” E irmanarem o homem, marginalizado de sua realização roubada, com o mineral:

“Sonâmbulos, a vista os vê pesadelo de chumbo pesado e sem rumo” e com as feras a receberem fraternalmente aqueles “espantalhos atrás do destino”.

Sensível igualmente às tragédias individuais, o poeta em “Nobreza de Hermógenes” emociona o leitor sem recorrer a imagens sentimentais, optando, ao contrário, por uma drommondiana economia de meios verbais para exprimir a dor da perda, da ilusão, da demência. Sao os personagens indistintos, João, Alcebíades, André, que perpassam pela História como pequenas nódoas inconsequentes nos grandes movimentos coletivos mas que o poeta, assumindo a condição de cada um, assinala com timbre elegíaco: “João não conhecia a perda,/ o pavor do povo sob a força,/a luta de classes, a praga da roça,/ o ressentimento justo da fraqueza. É a fase que se poderia encarar como afim do poema”E agora, José?” de Carlos Drummond de Andrade e que os versos de Chamie cifram lapidarmente com a noção lúcida:

“O homem da rua caminha em nós”. É o período da sua poesia em que o poeta, coração da estrutura social, bate no mesmo ritmo das pulsações da gangrena social da espoliação:

“Nas vastas galerias de sombras, o pesadelo pesado do povo pesa seu sono de chumbo, dorme em seu leito de escombros”. Enredado no dizer, ele se revolta contra a imobilidade e impotência aparentes do dizer ainda que poético: “Falar não salva o homem”, eco hoej da conclusão drommondiana de que “lutar com palavras é a luta mais vã”. Calar seria melhor? A resposta parece ser uma pausa, reunida em Os Rodízios e que, a nosso ver, constituem a parte fraca da poesia de Mário Chamie, quando ele envereda por experiências de poesia amorosa de raiz por vezes ovidiana mas de resultados nitidamente inferiores: “A fala devora o ócio, mulher minha. Toca-nos/ o céu enjoado de sermos a espécie que o solo, sob, devora”. Se essa parte da sua vasta criação poética não nos convence com o seu carpe diem artificial e seus recursos nem sempre compensadores, como o de decompor palavras como opus em “ó pus!”, tampouco ajuda a inejtar novos valores no poema o recurso de uma visão gráfica da pirâmide em forma piramidal no poema à la caligramme de Apollinaire. A nós essa incursão no afetivo, no lúbrico, no erudito das citações latinas nos parece menor, claramente inapta para figurar ao lado das colunas que sustentam a grandeza da realização poética de Mário Chamie, o seu humus telúrico de inspiração: a conotação social.

Como recurso constante, o poeta decompõe as palavras, elaborando toda uma tessitura semântica e poética, por exemplo, sobre a palavra “Lavrador”, separada em seus componentes “Lavra dor”. Em sua ida ao campo o poeta recobre o vioç e o ardor iniciais e adquire concisão marmórea de um poema de Ungaretti ou de Montale no poema bucólico que parte do dado auditivo de uma “cabra balindo” (página 169) paa chegar, por ums série de circunvoluções rigorosas, à percepção aguda de “A paz: que ao homem (o só)/ consome”.

Com “Enterro” esa visão nada idílica da realidade do interior do Brasil atinge a orquestração de um réquiem coedo e conciso para o homem do campo, aquele “um antes mal: o homem” que se desfaz no agasalho da terra, espantalho comungando com a serra natal, cera consumida pela exaustão do trabalho mísero, a morte um indecifrável “um laço nó/ na treva”. Com alguns, raros, titubeios de gosto ao aderir a uma formulação demasiado fácil como as terminaões de cantos com um linguajar que se quer popular mas que nos parece resultar em mero artifício (as frases forçadas “entre seu santo que não sei não” ou “entre seus cornos que só tais são” ou ainda “entre seu talho que não dói não” de evidente gratuidade), Mário Chamie atinge, no entanto, de poema em poema um domínio técnico cada vez maior ded seu material devassado cuidadosamente. É o caso de “Safra” em que a linguagem acessível se casa magnificamente com a pujança da denúncia social:

“Um gesto e peneira

farelo

comido

à mesa comunga,

senhor, a fome

maior

parceira do homem:

Um rastro e a rasteira:

Que safra

Safada

À mesa

À mesa evapora,

Senhor, a renda

Maior

Parceira da venda”

Todavia, é com os poemas alinhados na reunião intitulada Indústria que Mário Chamie atinge um dos mais altos pontos da poesia brasileira contemporânea, se não o mais alto, entre todos os poetas surgidos na geração pós-drummondiana, cronologicamente.

É ao examinar a patologia urbana que o poeta paulista consegue superar a si mesmo, forando para isso neologismos de absoluta eficácia verbal como “a engernagem trustbando” ou “o vaticano polipapa” ou “a notícia cemistério” ou o extraordinário “na onupresena da farsa”, que integram o poema “Na manchete do dia”. Uma dose maior de ironia se insinua até nos títulos zombeteiros - “A Falta de Energia Elétrica ara Mágoa da Indústria Técnica” - para fustigar e pôr a nu os desníveis entre as reais necessidades concretas e imediatas do povo e a cosmetologia de uma indústria vinda de fora e a despear esmaltes de unha nos pratos raquiticos de comida da massa trabalhadora. O aspecto novo, renovado, da indústria, se espelha também nos recursos gráficos, chegando em “Movimento Hidráulico” a coincidir com os poemas simultâneos de Octávio Paz, de leitura horizontal e vertical de resultados poéticos diferentes. Como nova é a maneira de se encarar o salário mínimo como recompensa para a suposta infantilidade mental do povo digna, portanto, apenas de um “salário menino”, incapaz de solucionar suas necessidades de adulto.

O que dá aos poemas de Mário Chamie uma grandeza de todo incomparável aos versos-slogans da Esquerda engajada mas paralítica de talento é sua renúncia consciente a qualquer pregação partidária. Ele revolve as camadas de miséria com a cautela de um arqueólogo aprofundando-se em eras já ultrapassadas da história da humanidade e está sempre, lealmente, ao lado dos espoliados, das vítimas do engodo, mas não preconiza um ideário cubano, nem soviético nem chinês para a solução dessa esclerose múltipla do corpo social brasileiro. É uma rara interpenetração de intelecto e compaixão fraterna, sem nenhuma atitude personalista, que distingue “Indústria”. Como um cientista que enumera as deformções causadas por um vírus devastador do organismo humano, ele aponta sem hesitação todos os sintomas: “na era tecnológica/ a paciência da história em jogo, a inconsciência do povo… o braço operário, mecânica da cera/ na era do jato… o povo come a escória da história no poço… o povo come barato, o povo como o osso da hora: o seu boato beato… o povo de quatro”.

Numa escalada de diagnósticos contundentes e certeiros, analisa os principais ramos da atividade manufatureira para desmascarar a tramóia em cada um deles: a mulher que passa a ferro sua calma nega suas possibilidades malbaratadas nas “lides domésticas”, a geladeira é a anestesia, refrigério da dor ou o pavor em conserva, o pavor da fome, a provisão precária. Igualmente, se Helenas Rubinsteins com suas loções para a pele, para as mãos e todo seu ritual de beleza não ocultam “o hálito da pobreza na boca”. A indústria farmacêutica fornece, em suas esteiras rolantes e a preços cada vez mais inflacionados, “para a plebe sem remédio/ uma febre de analgésicos” assim como o depauperamento perece se esconde sob a forma de “investimento na artéria da miséria o povo/ sofrimento” e os supermercados mantêm “o supermercado preço/ o supermercado negro” já que o sentimento é um dado anacrônico na era cibernética.

A indústria relojoeira se alça a alturas de cogitações metafísicas sobre o efêmero do tempo transformado em tempo de espera e tempo morto para os que o veem escoar no pulso ou na parede sem qualquer esperança de libertação da malha em que caíram para sobreviver. Numa dissecação identicamente microscópica, Mário Chamie entrevê no motorista de caminhão “a pobreza por suicídio/ a riqueza por veículo”, “na direção da pobreza/ um caminhão por empresa” e “o caminhão com fatura/ população sem fartura” para desaguar na constatação melancólica e agônica:

“A fatura do transporte: riqueza

A fartura da morte: pobreza

Contra o consumo de posto em posto

O povo sem rumo de osso em osso

Com o veículo suicida sobre a pista

A pobreza da morte motorista”.

Iconoclasta de falsos ídolos, o poeta fustiga os novos mercadores do Templo, os publicitários e sua “peçonha subliminar” do supérfluo ou do cancerígeno do fumo até a poluição de mentes que a publicidade traz com suas mensagens mendazes, como também destrói os mitos da televisão (“a gente na almofada a mensagem e sua fada”) em que ele arma um sutil jogo de palavras entre “o vidro transparência” e a “a consciência no vídeo”.

Seria impossível aqui esmiuçar mais ainda todas as riquezas que a poesia dolorosa de Mário Chamie traz à avaliação do leitor. Elas seriam irremediavelmente pessimistas, niilistas mesmo se não deixassem entrever o convívio humano, se não abrissem frestas areajdoras para uma visão democrática alheia a todas as ditaduras, inclusive a do proletariado.

Seria uma poesia menor se se detivesse no mensurável ou exorbitasse para o terreno das soluções mágicas dos paraísos “socialistas” como antídoto para os males do subdesenvolvimento. Felizmente, ela se caracteriza por seu humanismo, por sua - não há outro termo - desvairada crença no ser humano e na sua mutação, sua vocação incoercível para a liberdade.

Planoplenário, esse vastíssimo díptico em que se defrontam os Cidadãos e os Poderes, reforça essa visão e essa fé no ser humano. É verdade que esse longo e por vezes fascinante poema longo, uma espécie de eopéia em torno do jogo do poder, abrange já latitudes muito mais amplas do que os poemas da fase inicial: “O Plano deste plenário se situa em qualquer lugar da realidade onde isto seja possível” - o que abarca no mínimo 116 nações do globo em que são feridos a democracia, os direitos humanos, a liberdade em suas formas plurais. Muitas vezes essa esperança, sufocada pela realidade do mundo de terror, sequestro e guerras do século XX, esmorece e o homem é visto indefeso e só. “Com certeza:/ para a pobre palavra solidão/ a solidão da palavra: homem”. Muitas vezes é a castração da palavra pela censura, da União Soviética ao Chile, que induz ao silêncio, como no final kafkeano de “Planoplenário” em que “os decretos saem pelas fendas das gavetas, estão de língua suspensa, fisgam o transeunte” e se apela para o silêncio prudente:

“A tenaz deste alicate

mói a pedra da palavra

na hora do nosso alarde

na boca sem comentário

do plano deste plenário”.

Mário Chamie, com este livro, é a grande voz poética brasileira deste final de século, apesar das desigualdades assinaladas da sua tessitura poética. A ele coube a tarefa que os gregos antigos circunscreviam aos poetas: profetizar o futuro sem fechar os olhos para o hoej instigante e vivo. Só precariamente Objeto Selvagem pode ter o título de “poesia completa” pois o poeta está em plena maturação de seu ofício. Pela exemplaridade do seu rigor racional, pela contagiante emoção que anima seus poemas, por não rebaixar a poesia social a um ABC repetitivo para débeis mentais mas, longe disso, insuflando-lhe um requinte que só parecerá hermético aos indolentes e aos incultos, ele prestou a maior homenagem antidemagógica que um poeta pode prestar ao povo: restituir-lhe a esperança sem renunciar ao amor e ao respeito profundo que o povo nos inculte.

Reuso

Citação

BibTeX
@incollection{gilson ribeiro2021,
  author = {Gilson Ribeiro, Leo},
  editor = {Rey Puente, Fernando},
  title = {Um poeta como os gregos queriam: profetizando o futuro,
    observando o presente},
  booktitle = {Poetas brasileiros contemporâneos},
  series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
  volume = {4},
  date = {2022},
  url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-4/10-mario-chamie/00-um-poeta-como-os-gregos-queriam-profetizando-o-futuro-observando-o-presente.html},
  doi = {10.5281/zenodo.8368806},
  langid = {pt-BR},
  abstract = {Jornal da Tarde, 1978-03-04. Aguardando revisão.}
}
Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1978) 2022. “Um poeta como os gregos queriam: profetizando o futuro, observando o presente .” In Poetas brasileiros contemporâneos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 4. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.