Yourcenar na Academia. Um prêmio para a mulher

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1980/03/10. Aguardando revisão.

É inegável o aspecto feminista da admissão, após 345 anos de resistência, da escritora Marguerite Yourcenar, à vetusta em grande parte empoeirada e estéril Académie Française de Lettres. Fundada em 1635 por Richelieu, conta somente com quarenta integrantes, todos candidatos à imortalidade ridícula – a das “belas letras”. Olimpicamente, Marguerite Yourcenar desprezou essa láurea grotesca, que muitos consideram a Queda da Bastilha Masculina, tomada de assalto pelo talento singular de uma extraordinária escritora à margem dos modismos e dos embalsamamentos acadêmicos.

A entrada de Rachel de Queiroz para a risível Academia Brasileira de Letras não tem mais importância que a entrada de Marguerite Yourcenar para esse cenáculo de múmias, coroadas por premiúnculos ridículos do Clube Internacional da Admiração Mútua dos Medíocres. No caso brasileiro, Rachel de Queiroz ficou redimida do pecado de vestir o “fardão” em sua versão de fardo feminino porque seu romance precoce, O Quinze, já lhe perdoou a priori, qualquer veleidade futura que ela viesse a ter. Afinal, a Academia Brasileira é literalmente um saco de incongruências: nela cabe um ditador medíocre literariamente e funesto como sub-Maquiavel, Getúlio Vargas, como cabe um escritor de excepcional talento – José Cândido de Carvalho, autor de O Coronel e o Lobisomem e até um gênio, como Guimarães Rosa, que morreu talvez de enfarte ao constatar quão aplastantemente inócua e árida de ação inteligente é a Academia fundada, com idealismo, mas macaqueação europeia, por Machado de Assis.

E Marguerite Yourcenar? Marguerite Yourcenar nada mais é (será pouco?) do que um atual avanço avassalador da mulher no território da literatura e da filosofia especulativa através da linguagem. Década após década, a mulher conquista novos espaços pioneiros, arrebatando aos homens cada vez mais privilégios e vanguardas. No Brasil, Clarice Lispector subverte o conto, captando o metafísico com um vocabulário simples e descobrindo no aparente prosaísmo diário os interstícios de uma antimatéria delineada pela linguagem. Na Inglaterra, depois da tímida e self-effacing genialidade de Jane Austen ou da obra “varonil” de Emilly Bronte, Wuthering Heights (Morro dos Ventos Uivantes), processa-se a maior revolução estética da prosa com Virginia Woolf, muito mais arrojada e inovadora até do que o próprio Joyce. E na Inglaterra – talvez o país mais dotado para a literatura no Ocidente – eclode essa explosão nuclear do dizer que é Doris Lessing, sem dúvida, a maior escritora viva da parte ocidental do globo. No Brasil, Hilda Hilst se encarrega da mesma audácia e inventa ou reinventa a transliteratura como Jorge de Lima e sua Invenção de Orfeu na poesia.

Para nos atermos agora exclusivamente a Marguerite Yourcenar, sem falar da fecundação do pensar político que trouxeram ao mundo, Hannah Arendt, Rosa Luxemburgo, Susan Sontag. Ou, no plano sensível que rompe os limites entre Eros e Palavra, dialeto e conhecimento através da prosa, a Elsa Morante deslumbrante anterior a La Storia, a Elsa Morante de L’Isola di Arturo e Menzogna e Sortilegio, na literatura mais subestimada do Ocidente, a italiana, por ignorância e incúria nossas.

Marquerite Yourcenar nem se incomodou em abandonar a ilha em que vive, nos Estados Unidos, para postular a sua candidatura com visitas a integrantes da Académie que lhe poderiam granjear votos. Ela, s’en foute, não dá a mínima, como se diz na gíria, tanto para a Academia como para o feminismo. O que não lhe é indiferente são outras obsessões: defender a ecologia, associando-se a mais de 50 organizações dos EUA em defesa do ecossistema. Proteger os filhotes indefesos de focas massacrados cruelmente com golpes de bastão em meio à neve da América do Norte. E sobretudo lhe interessa, tanto quanto Borges, o mistério do passado, os labirintos que se bifurcam rumo ao Desconhecido, a linguagem sendo o archote da sua Gnose ou tentativa de espelhar-se na Natureza e descobrir a sua identidade. Por isso, seus livros são, literalmente, atemporais e independem da batalha ridícula que se travou em torno da sua eleição indesejada por ela: argumentou-se até juridicamente (!) que ela adquirira a nacionalidade estadunidense, como poderia, então, ser eleita para uma Academia Francesa?! Tolices. Marguerite Yourcenar nem ligou para essa luta frívola do Tout-Paris e partiu tranquilamente para a Guatemala e o México, para conhecer os vestígios das grandes civilizações maia e asteca trucidadas pelos espanhóis de Cortez.

Afinal, de que fala Marguerite Yourcenar? Fala de seus ancestrais, quer saber, através da memória dos séculos, que sangue herdou, que paixões, taras e virtudes sua genética física e espiritual lhe trouxe e fez dela a pessoa que é, com suas paixões, traumas e virtudes. Em seus livros eruditos, fruto de pesquisas longas e escrupulosas, ela reconquista, para o leitor do século XX, os imperadores de Roma e suas crueldades e perplexidades. Não o Calígula monstruoso de Camus nem o Nero de Suetônio ou Plutarco, mas Adriano e sua humilhação diante do seu poder absoluto sobre todos os súditos do vastíssimo Império Romano: é, porém, um poder que não inclui o poder sobre a morte: ele pode mandar matar todos os homens, mas o seu amado Antinous ele não pode recuperar para a vida. Enlouquecido pela dor da perda, ele manda celebrar exéquias divinas para o seu favorito, manda cunhar moedas em sua homenagem, erguer estátuas em sua honra, mas a morte pôde mais que o Imperador não mais Todo-poderoso como um Deus.

Ou então Marguerite Yourcenar se debruça sobre a esplêndida escritora sueca Selma Lagerloeff, do século XIX, traduz o poeta grego contemporâneo Constantin Kavafys e sua celebração whitmaniana do amor passageiro por um rapaz de passagem e dedica capítulos inteiro a Thomas Mann e sua iniciação mágica em Doktor Faustus e A Montanha Mágica, maravilhada com a alquimia do Verbo que de bíblico se torna não mais um princípio mas um fim em si mesmo: a Palavra é o Conhecimento hermético e esotérico.

Há leitores que preferem as elocubrações fantásticas de Marguerite Yourcenar sobre a obra visual de Piranesi, desenhista italiano do século XVIII que legou mensagens cifradas em sua anotação labiríntica sobre as prisões e suas circunvoluções em torno da tortura, do confinamento, do cérebro e da vontade.

Atualíssima, ela conta em L’Œuvre au Noir o itinerário tortuoso e atormentado de Zenão, a meio caminho entre a alquimia de transformar os metais vis em ouro e em curar a peste como médico e mago, mas sempre um homem revoltado, como o queria Camus, um homem adiante do seu tempo como Galileu, Cristovão Colombo, Einstein, Pasteur, Flaubert, Bach, Mozart, Shakespeare.

Dilacerada, acossada pelo Extremo Oriente, segundo a máxima da sabedoria latina que já conhecia a Luz que vem do Oriente, ex Oriente fiat lux, Marguerite Yourcenar em seu livro cintilante de beleza e profundidade filosófica, Nouvelles Orientales, apresente contos inesquecíveis sobre um pintor chinês, Wang-Fô, “que amava as imagens das coisas e não as coisas em si”, chegando, por meio de vários personagens fascinantes, ao luto da viúva Aphrodisia que se sacrifica diante da terrível deusa hindu Kâli, “nenúfar da perfeição” que lhe ensina por meio do sofrimento “a vacuidade do desejo”, como em um texto budista sobre Maya, a ilusão do querer humano mortal.

Múltipla, surpreendente sempre, a magnífica escritora de língua francesa traduz para o francês a alma dos spiritual negros norte-americanos, uma forma de Terceiro Testamento, que completa o Velho Testamento hebraico e o Novo, cristão, contado pelos quatro Evangelistas: é o Testamento da Fé vivida na mesma arena do Coliseu romano. É o Coliseu da escravidão nos algodoais do Sul dos Estados Unidos, mantendo intacta, em versos de força que o Tempo é incapaz de atenuar, a Fé transcendente e ativa em Jesus, na acérrima vida diária, que sempre lutou a favor dos pobres. É a Jesus que esses superiores cristãos, os negros escravizados, pedem a libertação, não das algemas da carne, mas a libertação pela Fé, amortalhados por Jesus no manto de glória que os fará entrar no Reino dos Céus. Marguerite Yourcenar revela o que nos é sonegado: o africano trazido para as Américas é que é o levedo, o fermento da grandeza futura das Américas, devido à sua potência de viver, à sua Fé transcendente e comovedora, digna dos cristãos jogados aos leões ou untados em óleo e transformados em tochas vivas para iluminar os banquetes e orgias dos imperadores romanos.

Mas, pensariam os desinformados, essa “alienada” só fala de épocas passadas? Não, com um veemente, mas sutil romance, Denier du Rêve, Marguerite Yourcenar fala de um (fictício?) atentado contra Mussolini e de um modesto trâmite monetário entre os homens: dez liras que ligam vidas desconexas entre si, que ligam solidões e vontades todas voltadas contra o ridículo ditador. Ela revela a podridão interna do Fascismo debaixo das bandeiras, da retórica bombástica e da morte do intelecto, da liberdade e do corpo que o Fascismo representou. Roma aparece não caricata como a queria Il Duce demagogo, mas como uma nova cidadela dos homens, uma Resistência surda e tragicamente impotente diante da Tirania Totalitária do Engodo. Roma antecede a Berlim e a Nuremberg de Hitler, como esboço não apenas do Mal, mas da Mentira e do aniquilamento do próximo.

Não constitui certamente surpresa constatar que a criação literária de Marguerite Yourcenar pega a totalidade das editoras brasileiras completamente desprevenida. Nathalie Sarraute por acaso foi traduzida? Virginia Woolf não teve seu livro perfeito, To the Lighthouse, conspurcado por uma tradução eticamente infame? Nabokov não foi vítima, no Brasil, de uma média de 10 erros por página em seu maravilhoso Ada, uma grande obra-prima não traduzida na realidade? Manuel Puig por acaso teve seu supremo momento, El Beso de la Mujer Araña, ignorado por todos os editores brasileiros? É uma maneira de emburrecer um povo com mais eficácia do que por meio da censura: a estupidez e a miopia, paradoxalmente, veem sempre mais longe. Subtraindo-se tais autores decisivos para a nossa época, as editoras empobrecem o povo brasileiro, paternalística e arbitrariamente, julgando-o incapaz de degustar tais maravilhas.

Há esperança, porém. Editoras novas surgem: quem sabe elas nos trarão, com desassombro, esses autores para o português, excelentemente traduzidos, e recuperarão para o Brasil que sai da noite da Censura Buzaid-Falcão a sua reintegração no seu espaço e no seu tempo? Marguerite Yourcenar, anotem as editoras inteligentes e não só mercenárias, é o primeiro nome a ser traduzido se quisermos que o Brasil pense, aja, crie e pense. Já tivemos o luto de Guimarães Rosa ter sido massacrado em suas “traduções” criminosas para o francês e o inglês. Não imitemos os Estados Unidos e a Europa no que vem de lá como importação inferior e desexemplo do que se deve fazer. Ou então imitemos Edoardo Bizzarri, que legou pelo seu amor ao Brasil o monumento insuperável de incorporar genialmente ao italiano Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile. Marguerite Yourcenar faz parte da sensibilidade mais profunda, eu diria mesmo dos arquétipos da literatura feminina, masculina, transexual, da nossa época. Calar a sua voz em português é uma estupidez e um crime, além de um suicídio editorial.

Ela é, biologicamente mulher, mas sua literatura nem andrógina é: seria restringi-la a rótulos de preferência erótica querer reduzi-la a arqueóloga do roubo infligido às minorias oprimidas – a mulher, o negro, o homossexual. Marguerite Yourcenar é só acidentalmente isso também, mas é sobretudo uma das supremas mentes e sensibilidades do século. Conhecê-la, traduzi-la é um ato de justiça e de enriquecimento para o outro. Quem a ler se sentirá imantado pelo seu dizer irrepetível, tranquilo e profundo como uma meditação budista.

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Yourcenar na Academia. Um prêmio para a mulher .” In As três grandes damas da literatura europeia: Virginia Woolf, Marguerite Yourcenar e Doris Lessing, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 7. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.