O amor erótico de Eugênio de Andrade. Delicado, audaz

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1983-10-15. Aguardando revisão.

Eugênio de Andrade era uma senha para pouquíssimos iniciados no Brasil. Agora, a Editora Civilização Brasileira publica uma sua Antologia Breve que esboça um seu leve perfil. É verdade que, anteriormente, o poeta gaúcho Carlos Nejar, durante sua estada em Portugal, recolhera alguns dos poemas dos máximos poetas atuais daquele país e pela Editora Ohno-Kempf divulgara entre nós, na sua Poesia Portuguesa Contemporânea, alguns versos do poeta secreto, quase mesmo diríamos voluntariamente marginal, que é Eugênio de Andrade. Fora disso, só mesmo os dedicados à poesia portuguesa com mais profundidade o conheciam através, por exemplo, da exaustiva Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977, organizada, em Lisboa, por M. Alberta Menéres e E. de Melo e Castro, da Moraes Editores.

As referências a Eugênio de Andrade pouquíssimo ou quase nada esclarecem quanto à sua biografia ou à sua trajetória artística. No entanto, a sua criação poética é vasta e se estende a mais de 20 livros, além de traduções de García Lorca e de Safo. Numa terra em que a tradição lírica cose, de um século a outro, as gerações de grandes poetas, desde a era medieval até hoje, é um exagero palpável dos editores brasileiros tentarem, através de depoimentos de outros escritores seus conterrâneos, alçá-lo ao nível de “o grande poeta do amor na poesia portuguesa do século XX”. Para isso seria necessário ignorar por completo o nome de Pedro Tamen e, num contexto mais lato, obliterar do idioma os nomes de Vitorino Nemésio, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro como os mais universais e perenes deste século. E como deixar de lado, quando os antologistas portugueses frequentemente se referem a João Cabral de Melo Neto e a Carlos Drummond de Andrade, os poemas translúcidos e dos mais belos e inovadores da nossa língua - os de Hilda Hilst?

Essa espécie de preâmbulo visa considerar Eugênio de Andrade, com justiça, como um dos mais fugidios, mais misteriosos poetas do amor erótico em Portugal. É um lugar-comum insistir no fato de que a reunião do Fascismo, da Igreja e da Tradição Hipócrita conseguiram - e não só em Portugal - alienar esse tipo de poesia, afugentando-a das antologias antes da Revolução dos Cravos e quase chegando a suprimi-la. Antônio Botto, entre tantos, foi apenas um dos escorraçados pelo salazarismo pela “inconveniência” de seus versos; igualmente Florbella Espanca era apontada pelas famílias “de bem” como no mínimo uma “degenerada”, enquanto Bocage descera - artificialmente - da sua estatura de magnífico poeta para o símbolo apenas do poeta talentoso, de versos tidos como “chulos, grosseiros, indecentes”…

Esta antologia, por ser breve, dá-nos apenas um olhar de relance na criação poética de Eugênio de Andrade. Desprende-se de todos os seus versos um gozo pagão da beleza e do corpo, o corpo, esta fascinação obsessiva de Eugênio de Andrade. “Não canto porque sonho,/ Canto porque és real./ Canto o teu olhar maduro,/ o teu sorriso puro,/ a tua graça animal.” E na ode que certas edições consignam como dedicadas “To a Green God” (“A um Deus Verde”): “Trazia consigo a graça/ das fontes quando anoitece./ Era o corpo como um rio/ em sereno desafio/ com as margens quando desce… Seria como quem dança./ E desfolhava ao dançar/ o corpo, que lhe tremia/ num ritmo que ele sabia/ que os deuses devem usar.” Até a exasperação crispada dos versos de número XVII: “Impetuoso, o teu corpo é como um rio/ onde o meu se perde./ Se escuto, só oiço o teu rumor./ De mim nem o sinal mais breve…/ Imagem dos gestos que tracei,/ irrompe puro e completo./ Por isso, rio foi o nome que lhe dei./ E nele o céu fica mais perto.”

De ampla leitura, Eugênio de Andrade como que adaptou ao verso português o hai-kai de um Bashô, sem respeitar o número sucinto de sílaba, mas conservando a surpresa interjecional das imagens:

“Coaxar de rãs é toda a melodia

Que a noite tem no seio

E dos juncos podres,

Casualmente, com luar no meio.”

As seis linhas iniciais de “Espelho” são como que um franco auto-retrato, a escolha - ou o Fado? - de uma localização pagã, grega, na vida que por poucos instantes tremula de luz e se apaga “Que rompam as águas:/ é de um corpo que falo./ Nunca tive outra pátria,/ nem outro espelho, nem outra casa…” No grito que se chama “Requiem para Pier Paolo Pasolini” o poeta aproxima a sua legítima indignação do clamor poético inútil, por certo, mas presente: “Seja qual for a razão, e muitas há/ que o Capital, a Igreja e a Polícia/ de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,/ Pier Paolo Pasolini está morto,/ A farsa a nojenta farsa essa continua.”

Se há quartetos de uma delicadeza debussyana em “Do Esquecimento”: “Oh, circe de lentas folhas faz do esquecimento o brilho furtivo das maçãs e pequena orgia da chuva na vidraça os dentes miúdos da carícia” esse erotismo delicado, apenas esboçado, de poema a poema crece e atinge paroxismos audazes, com uma vaga lembrança da aura dos poemas de uma metafísica erótica de John Donne: “Como a palmeira jovem/ que Ulisses viu em Delos, assim/ Esbelto era o dia/ em que te encontrei;/ assim esbelta era a noite/ em que te despi,/ e como um potro na planície nua/ em ti entrei”. É nessa exaltação dos sentidos transmitida através de palavras simples mas com uma intensidade flamejante, que Eugênio de Andrade se alça, realmente, nesta antologia, como um dos supremos poetas eróticos contemporâneos de Portugal. Não é para sensibilidades que preferem a alusão sutil à descrição nunca crua mas sempre realista e vigorosa do ato amoroso. Para os que sem preconceitos amam a poesia sensorial e claramente sensual, os versos de “Nas Ervas” (que evocam Walt Whitman na sua simplicidade e na longínqua evocação de Leaves of Grass) não chocarão mas elevarão o nome do poeta ao nível de uma beleza inteiramente veiculada pela audácia e pelo vigor; à maneira de um Stefan George lusitano:

“Escalar-te lábio a lábio,

percorrer-te: eis a cintura,

o lume breve entre as nádegas

e o ventre, o peito, o dorso,

descer aos flancos, enterrar

os olhos na pedra fresca

dos teus olhos,

entregar-me poro a poro

ao furor da tua boca,

esquecer a mão errante

na festa ou na fresta

aberta à doce penetração

das águas duras,

respirar como quem tropeça

no escuro, gritar

às portas da alegria,

da solidão,

porque é terrível

subir assim as hastes da loucura,

do fogo descer à neve,

abandonar-me agora

nas ervas do orvalho -

a glande leve.”

Eugênio de Andrade: poesia com música e prêmio

Jornal da Tarde 1987

O maior poeta português de nossos dias, Eugênio de Andrade, acaba de receber, do presidente da República de Portugal, Mário Soares, o Prêmio D. Dinis, instituído bienalmente, por seu livro As Vertentes do Olhar.

Eugênio de Andrade percorreu também recentemente os Estados Unidos e o Canadá, numa extensa difusão de seus esplêndidos poemas em diversas universidades desses dois paíse norte-americanos.

O grande poeta lusitano confiou ao Jornal de Letras, de Lisboa, a reprodução de seu discurso de aceitação do prêmio. Dele damos trechos aqui, para que o leitor brasileiro aquilate, através de suas palavras, a sua majestade e sua profunda humildade:

“É uma sensação de estranheza, a minha, nada confortável, que não posso ocultar, ao receber um prêmio literário. Como se sabe, não atribuo a coisas assim nenhum papel relevante, por isso nunca fiz fosse o que fosse para obtê-las, começando naturalmente por não ser seu concorrente. Mas apesar disso, elas começam a vir ter comigo. É um bem? É um mal? Não sabemos nada, e a nossa ignorância não aproveita aos outros. O sucesso de uma obra não é um sinal da sua qualidade, mas o insucesso também não o é. No primeiro caso, a provar o que digo, lembremos o êxito do D. Quixote logo após sua publicação, ou o de A Flauta Mágica, de Mozart, logo nas primeiras representações; no segundo, bastará recordar como tem sido lento o reconhecimento de Camilo Pessanha, um dos quatro ou cinco poetas verdadeiramente grandes da nossa língua, ou como tem sido tardio o de Vitorino, no âmbito da poesia. Não me parece que os prêmios ou a crítica tenham servido de muito para alterar seja o que for, neste aspecto - são muitos os erros, embora os acertos não faltem.

“Como já insinuei, coisas destas não estão no meu horizonte. Sou um homem que nunca fez da poesia uma carreira. Passei trinta e cinco anos a fazer inquéritos e processos disciplinares, sem o menor gosto mas com grande sentido de responsabilidade, e escrevi a poesia de que fui capaz nas horas que me deixavam livres a profissão de inspetor de uns serviços do Ministério da Saúde, que ainda aí estão, cada vez piores, ao que consta. Digamos, para nao me alongar a falar de mim, que a poesia, o apelo a fazê-la sempre oscilou entre um fervor heroico frente à vida e uma fascinada apetência de silêncio. Ainda hoje, depois de mais de quarenta anos de vivê-la, não sei qual destas vertentes é a mais forte, e provavelmente todo o meu esforço é no sentido de fazer de ambas uma só música.

“Mas apesar de absorvente, sempre me comportei como se tal polarização fosse uma atividade periférica: ou como se, na verdade, eu fosse a mais anônima das criaturas, visitada de vez em quando pela graça, para celebrarmos juntos, com sílabas frementes, o rosto solar da terra. O trabalho diário, e incomensuravelmente fastidioso, a que me referi, tornava por contraste mais apaixonante a busca da palavra justa, e mais gratificante a descoberta de um ritmo que sempre confundi com o rumor espesso e surdo do próprio sangue.

“Chegado aqui, quero dizer que a atribuição deste prêmio, tão surpreendente, é uma decisão corajosa, uma decisão de poetas, seja isto dito em louvor do júri; porque a”prosa” dos poetas agora distinguidos anuncia essa poética, que é hoje a minha, em que um “desejo de literalização” se confunde com o máximo de poeticidade, como já foi notado. É certo que os meus versos sempre se escreveram contra a corrente, mas nos últimos que venho publicando isso acentua-se, como se polemicamente, todo o meu empenho consistisse em mostrar que as águas mais claras podem ser também as mais fundas. Eu gostaria que neles se sentisse a impossível aliança entre inocência e sabedoria. Assim, à corrente barroca e surrealistizante, que parece ser hoje a dominante do gosto poético português, a minha poesia opõe, além da transparência e contenção, que sempre foram constantes dela, um desenho linear, matissiano (a palavra é de Yourcenar), cada vez mais aéreo. Mas isso a tornará também mais vulnerável, e mais exposta - não tenho dúvidas em reconhecê-lo.

“… Mas o que nesta ocasião é obrigação minha sublinhar é o fato de tal espírito do olhar ter sido seguido e renovado pelos seus descendentes, ao privilegiarem aspectos da sensibilidade para os quais a burguesia endinheirada, salvo raríssimas exceções, nunca teve mais que suspeição e desdém.

“Agora, deem-me licença que regresse a D. Dinis, não pelas”naus a haver” que plantou - deixo de bom grado naus e caravelas aos almirantes - mas por ter erguido do chão a poesia portuguesa a um dos seus cumes - as suas cantigas de amigo, com as de Pero Meogo, Meedinho, Martim Codax, e outros, são um dos momentos supremos do nosso lirismo; esse, a que justamente com a poesia grega arcaica e a poesia oriental, sempre me senti religado…”

Eugênio de Andrade tem razão em destacar o aspecto solar, mediterrâneo, ateniense de sua poesia. Ele restaurou, para a poesia moderna, o corpo, a integração do homem na natureza, opondo-se à tecnologia invasora e ao anonimato que relega o espírito a uma abstração balbuciada em preces hipócritas em igrejas e que na realidade quer apenas “fazer um negócio” com Deus, uma troca de favores por promessas de bom comportamento…

O magnífico poeta de Matéria Solar, O Outro nome da Terra, As Mãos e os Frutos insere numa literatura geralmente pudica ou meramente alusiva o tema da sensualidade, a vitalidade da epiderme, do prazer, a celebração do amor, por mais efêmero que seja. A música e sua essência indecifrável, a mortalidade, o rigor na escolha, sempre concisa, das palavras de seus poemas, entre tantas outras qualidades, tornam Eugênio de Andrade uma figura singular no universo da poesia de Portugal. Seria de desejar que no Brasil seu nome fosse melhor e mais amplamente difundido, para nosso próprio enriquecimento atemporal.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1983) 2022. “O amor erótico de Eugênio de Andrade. Delicado, audaz .” In Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns escritores portugueses, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 6. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.