Poetas portugueses. Versos e duas culturas reencontram seu ponto de união

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1983-01-29. Aguardando revisão.

Dentre os vários malefícios de que padece o Brasil moderno há um que se salienta enormemente dos demais. É facilmente verificável: a partir da independência política de Portugal, o Brasil afastou-se, com raras ferocidade, estupidez e eficácia, da cultura e da inteligência portuguesas. Exacerbado, um nacionalismo estreito como que condenou a literatura de Portugal a um exílio que do Romantismo em diante tornou as duas nações de língua idêntica quase que totalmente desconhecidas uma da outra.

Sem dúvida, Fernando Pessoa é fartamente divulgado entre nós (será?). Também o neorealismo português igualmente se abeberou dos romances ditos sociais de Jorge Amado, antes de sua fase prostibular das Gabrielas e Tietas, como se contagiou do vigor do romance nordestino de um Graciliano Ramos ou de um José Lins do Rego.

É pouco. É pouquíssimo para o intercâmbio entre dois países que têm no idioma a sua matriz comum. Infelizmente, porém, o absurdo perpetuou-se numa tal ignorância brasileira dos fenômenos intelectuais portugueses que torna dúbia, pelo menos em parte, a eclosão do movimento Modernista de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo. Obviamente, o aspecto revigorante e lúcido daquela Semana que durou três dias permaneceu fecundo até hoje, ao clamar por uma atenção dos artistas brasileiros para os nossos temas, sem macaquear as “novidades” chegadas da Europa como o esnobe e alienado dernier cri. Por outro lado, no entanto, o Modernismo eclodiu sobrecarregado de uma bagagem obsoleta já no Velho Mundo e pesada de “ismos” já caducos outre mer (como o Surrealismo, o Futurismo, o Cubismo, etc.), esquecendo - seria desconhecimento involuntário ou nacionalismo antiluso levado a um estado inquisitorial? - do grande movimento do Modernismo português que se tinha produzido antes da nossa Semana de 1922. Assim, deu-se o fato kafkiano de duas culturas gêmeas não existirem uma para a outra, como se pertencessem a duas galáxias diferentes e fossem mutuamente incompreensíveis.

Pois evidentemente o movimento de profunda renovação da revista Orpheu não podia ser negado pelos modernistas brasileiros nem o movimento da Presença sobreviria tão tarde (por volta de 1927) que nossos Andrades e demais nunca deles tivessem ouvido falar, depois da noitada desafiadora na pacata e burguesa São Paulo de 22 e do desenvolvimento ulterior do Modernismo entre nós. Teria sido muito mais abrangente que a Semana de 22 tivesse, ao lado de tantos “ismos” parisienses, catalães, italo-fascistas, etc. trazido notícia do extraordinário momento de renovação admirável que significa, em 1915, a união de poetas em torno da revista Orpheu: Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Raul Leal e o brasileiro Ronald de Carvalho, que participaria, em 22, da Semana paulistana. Se esta não podia, é claro, prever o desenrolar histórico de Orpheu que se deu com Presença, em 1927, certamente uma conclusão definitiva se pode tirar desse esquecimento do primeiro Modernismo português pelos modernistas brasileiros: o desmembramento cultural entre as duas Nações que se iniciara com o Romantismo agora abriria as portas para uma tendência aparentemente inevitável e diametralmente oposto aos anseios legítimos do Modernismo de 22. Isto é: o Brasil ao recusar suas feições culturais portuguesas, que eram uma das bases sem as quais não poderia haver nenhuma cultura no Brasil, tornou-se colonizado pela avassaladora deformação imposta pelos meios de comunicação norte-americana. Quer dizer: se Mário de Andrade tinha plena razão em defender um abrasileiramento da nossa Literatura e das nossas Artes e do nosso comportamento, desprezar totalmente o que tínhamos genuinamente em comum com Portugal significou simplesmente descaracterizar o Brasil.

Para não nos alongarmos demais neste assunto meridianamente claro e comprovável: se estávamos absolutamente certos em querer deglutir antropofagicamente a cultura européia e recusar-nos a escrever conforme a sintaxe e o léxico lisboetas, por outro lado erramos inconscientemente ao romper o contato vivo com a cultura e a literatura portuguesas. Em vez de imitarmos servilmente os modelos lisboetas - meta indesejável -, passamos ao extremo igualmente daninho, senão mais pernicioso: o de sermos digeridos pelos modelos norte-americanos que os meios de massa nos impõem como forma cabal de perda da identidade nacional, da qual, fundamentalmente, faz parte a nossa expressão básica em português. Sofremos, sem o saber, de um FMI da nossa inteligência.

O excelente poeta gaúcho Carlos Nejar, uma das supremas manifestações poéticas do Brasil de hoje, deu um passo importante rumo ao reatamento de relações culturais entre o Brasil e Portugal: selecionou uma antologia denominada Poesia Portuguesa Contemporânea (Editora Ohno-Kempf, São Paulo). Já anteriormente o intelectual português, radicado no Brasil João Alves das Neves, fizera uma escolha sensível e judiciosa, publicada em 1967 com o título de Os Poetas Portugueses Modernos (Editora Civilização Brasileira). A seleta de Carlos Nejar tem, a nosso ver, um álibi inaceitável: o de não incluir Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, omissão que justifica dizendo: prende-se somente ao fato de já serem suficientemente conhecidos no Brasil. Justificativa que não nos convence de modo algum. Além disso, esquece-se de citar versos de Teixeira de Pacoais e, possivelmente, alarga demais o prisma de uma antologia ao recolher desde poetas da geração de 1915 até o presente. Para isso seriam necessárias outras antologias, como as que ele nos dá a esperança de estampar mais tarde. Qualquer seleção de poetas e poemas implica sempre, inelutvelmente, uma forte dose de subjetivismo; no entanto, Carlos Nejar revela ao público leitor brasileiro três ou quatro valores incontestáveis da moderna poesia lusitana. A começar de Vitorino Nemésio. Conhecido em alguns círculos no Brasil principalmente como romancista (Mau Tempo no Canal, notadamente), é como poeta de ressonância atemporal, que ele aqui nos comove e perdura em nossa admiração, logo ele que lamenta a temporalidade de tudo, debruçado sobre uma memória que se esgarça e celebrando estoico a morte trinufadora:

“O Pastor Morto”

“De madrugada a neve envidraçou-o.

Seus olhos rasos de um espanto podre,

As águias o mediram pelo voo

E se encheu de silêncio como um odre.

Cheirado dos carneiros atrevidos,

Úmido fica já no fio lilás.

Aquilo sim, é que se chama paz.

Ali, à serra e à morte todo ouvidos!

Lá vêm as flores da neve à sua cara

E seu rubor perdido copiado

Pelo extenso corar das ervas gordas.

Atravessa, atravessa os rolos frios

Do tempo, o nevoeiro, e o passo às hordas,

Dourado e podre sob os astros frios.”

“A Égua Velha”

“Pobre égua velha, minha vida,

Quem te dá água e feno?

Ou a teus cascos de mãe de tanto andar,

Que azeite doce?

A mosca é mais que abelhas

Na sarna da samarra ainda quente do trilho,

E o poldro do teu sonho ao longe,

Tão bonito, o teu filho!

Pobre égua velha, já de manta e tonta ao cabo

Entre uma corda e um cardo

Cuida que é milho um tojo!

Por barriga sem erva, no espinhaço sem fardo.

Vai um saco de rojo.

Égua baldia, os mais cavalos novos,

Cruzando-te no pasto, é coice bravo!

Pela estrela da testa de maratam

Os ciganos sem dó que te compraram

E de égua criadeira te tingiram:

Cria era a morte, - tudo o mais fingiram.

No ermo de relinchos ainda um passo

Te arredonda a garupa retardada;

Mas quem, pobre égua velha e sem comida?

O poço aonde e a água deseajada?

Sinal de terra mexida

Era da égua enterrada.”

“Requiescat”

“Direi, pela noite, não ódio que tivesse

Nem detestar vida corpórea e ninhos de manhã.

Mas meu alto cansaço, a tristeza de lá

Onde se sente o aqui traído, a falsa entranha.

Direi - não “fora” ao mundo que me cinge

(Outro onde o sei e como chegaria?)

Mas dos anos de ver, pensar durando

Retiro uma moeda de nada,

Fruto do meu suor, e pago o pão que se me deve.

Cumpro o silêncio que se me deve,

Por ter cumprido a palavra,

Trabalhado nas palavras,

E por elas merecido a terre leve.”

“O Canário de Oiro”

“Se deixo entrar este canário de oiro

Que me espreita e debica

(Eu que sou ossos, a gaiola,

Débil passarinho loiro!

Eu, professor como um menino de escola!)…

Pois sim: Canta. Fica.

E então, para que tudo em mim se honre e execute

(Voz, penas e dejectos

Do canário),

Dou-lhe, seus passeadores, os meus afectos,

As minhas veias duras para grades:

Dentro delas, contrário,

Ele se embeleze e lute.

Ah, que o canário é o meu sangue talvez!

Mas então isto que é? Que violino engoli?

Que frauta rude aveludou a minha noite?

Em que prato de cobre bateu o nó do açoite?

Tão exacto, meu Deus, só vibrado por ti.

Musical, todo fogo, em mim me vou e expando;

Cada lágrima cai de mim como harmonia:

De quatro em quatro, vão a minha dor jogando

Essas lágrimas vãs no tapete do dia.

Que sérias são estas coisinhas de soar,

Poetas que vos is,

Soldados velhos,

Escolhendo na morte uma farda e um lugar!

Somos aqueles imbecis

Desenvolvidos nos espelhos,

Ai, nos espelhos paralelos,

Da sala onde um de nós é sozinho a cantar!

Estamos fumados, amarelos,

De tanto ler e delirar.

Inúteis, fôssemos poetas,

Quero dizer: como as cascas cor de laranja ou alvas de ovo,

Que não são nem laranja nem ovo:

Ainda se havia de ver

Se as podridões quietas

Não são o sal e o renovo.

Que água trouxe do céu meu diapasão de ferro?

Que milhafre criou minha carne em seu bico?

A mão qual foi que me rasgou no erro,

Mulhr, o coração que te dedico?

Quem era aquele de quem tirei o sangue forte,

Esta pequena música corrente?

A vela mamou-a a morte,

Que engorda à custa da gente.

Quem era aquela mulher de branco

Que tinha os seios fortificados

E o ventre puro de onde arranco

E os altos olhos separados?

A de fogo e de fel, reclusa e encordoada?

A que nunca toquei, porque estava selada?

E o anjo bravo, só lume, o outro sujeito,

Em que chama tocou sua asa desabrida?

Que maçarico foi que lhe platinou o peito

E o deixou em ferida?

Perguntaria,

Se esfinges mais houvesse.

Em que sal se tornou a que se deu por Maria

E me prometeu o que eu quisesse?

Ah, aves de parabólica plumagem,

Anjos de matéria nenhuma e de toda a arrogância,

Mulheres e homens de que so a última viagem

Começada no mar que me salgou a infância!

Ah, ovo que deixei, bicado e quente,

Vazio de mim, no mar,

E que ainda hoje dee boiar, ardente Ilha!

E que ainda hoje deve lá estar!

Ah, Sete Espadas, minhas primas,

Estrelas nítidas e diversas,

Piões, pombas, baraças, e até as Sras. Simas

Todas quatro alteando as suas toucas perversas!

Onde? quando? já? outra vez? ou ainda não?

O tempo gasta a minha voz como se fosse o seu pão.

É ele, é ele, o que tem tudo escondido.

Ele o que A desviu e A violou no vento,

Ele o que fez de mim o menino perdido

E me deua a navalha com que me fiz violento!

Ele leva para o alto as cordeiras e come-as,

Ele esconde no vale os lobos reduzidos.

Ele pede-nos as coisas emprestadas e some-as,

Eles gasta-nos a voz, os olhos e os ouvidos.

Tempo, ladrão, dá-me conta do fardo:

As saudades práli! as promessas práli!

O que te vale é o escuro! eu ainda ardo;

Minhas estopas são embebidas por ti.

Ai, a cordeira preta, a do veio maior,

Um palmo de gemido, onde a terias posto?

Tinha os galinhos entre a lã: é melhor

Desenriçá-los do meu desgosto.

Tempo, molde de todos os lugares,

Pegada de quem desaparece.

Esquema de bocejos e esgares,

Frio de tudo o que arrefece.

Tempo que levas meu Pai morto,

Com catorze cavalos, todos de músculo solar,

E, para o ano, quinze! e crescendo! e ele absorto!

E os cavalos cada vez mais empinados!

Morto…

Com que jarrete ou asa o hei-de eu alcançar?”

Antonio Botto é, mutatis mutandis, uma espécie de Kaváfis português, que terminou sua vida inquieta no Rio de Janeiro, à mingua de recursos, marginalizado pela sociedade por sua opção sexual divergente da sancionada pela maioria, como Kaváfis ou os espanhóis García Lorca ou Cernuda. Não que se trate absolutamente de um grande poeta. Como ressaltou corajosamente Jorge Luís Borges, o próprio García Lorca teve a sua obra alçada a alturas promocionais pela esquerda enragée, mas se o covarde assassinato de que foi vítima, o calor e generosidade da sua personalidade humaníssima o tornam extremamente respeitável, já sua obra pode ser posta em dúvida quanto à perenidade de seus versos. Antonio Botto celebra, em tom menor e meramente alusivo, como Kaváfis, o amor “que não se atreve a pronunciar seu nome”, como dizia Oscar Wilde em seu famoso discurso perante os tribunais vitorianos de Londres que o condenaram ao cárcere. No entanto, essa celebração de amores fugidios, meros desejos carnais saciados en passant, é que distingue a nota inconfundível do poeta português que Carlos Nejar acolhe com a transcrição entre outros, dos poemas denominados “Canções”, como, por exemplo:

“Não. Beijemo-nos apenas,

Nesta agonia da tarde.

Guarda -

Para outro momento,

Teu viril corpo trigueiro

O meu desejo não arde

E a convivência contigo

Modificou-me - sou outro…

A névoa da noite cai.

Já mal distingo a cor fulva

Dos teus cabelos, - És lindo!

A morte

devia ser

Uma vaga fantasia!

Dá-me o teu braço: - não ponhas

Esse desmaio na voz.

Sim, beijemo-nos apenas!,

Essa mesma superficialidade e essa mesma facilidade, no sentido negativo do termo, são típicas de Antonio Botto. É raro ele atingir um tom estilisticamente menos imperfeito e filosoficamente menos fútil. Como Florbela Espanca, ele no máximo consegue dizer, o que, reconheça-se, não é muito, é um discurso retórico, de efeito, mas esquecível como:

“Querer-te mal, por quê? - Foste quem eras:

Um corpo gentilíssimo, perfeito,

Que se amoldava ao meu e a qualquer jeito

No pântano de todas as quimeras!

Que culpas tinhas tu se ainda esperas

O lugar prometido aqui no peito

E sais da minha vida e do meu leito

Com a simplicidade que trouxeras?

A culpa tenho-a eu que fui um triste

A desejar no alto do meu sonho

Beijar a perfeição que não existe.

Fui esta coisa inútil, complicada,

Martins Fontes, em seus piores momentos “filosóficos”, não diria melhor com respeito à dialética da felicidade e do ser humano…

Para futuras edições dessa desbravadora Poesia Portuguesa Contemporânea, seria fecundo que Carlos Nejar meditasse sobre a inclusão de versos enfeixados em outra antologia. Trata-se da Antologia em dois volumes organizada por M. Alberta Meneres e E. M. de Melo e Castro (Círculo de Poesia, Moraes Editores, com o patrocínio da Secretaria da Cultura, Lisboa, 1979). Dessa maneira, vários poetas que gozaram da paciência e da benevolência do selecionador gaúcho cederiam lugar a outros menos cultores da grandiloquência e de um involuntário kitsch na pior “tradição” pseudopoética ocidental.

Carlos Nejar acerta, porém, quando dá espaço a Alenxandre O’Neill, indubitavelmente uma das figuras mais irreverentes e interessantes da poesia que se faz atualmente em Portugal. Poucos exemplos demonstram a que ponto Alexandre O’Neill é, no melhor sentido da palavra, sofisticado, cosmopolita, irônico e frequentemente magnífico poeta:

“Guichê 1”

“Quando o burocrata trabalha é pior do que quando destrabalha:

antes quero esperar, aquém guichê, que ele

discuta toda a bola ou pedal que tem para

discutir com os destrabalhadores dos seus colegas;

antes quero esperar pelo meu burocrata

do que ter a desilusão de o ver trabalhar

para mim mal eu chegue.

Isso custa-me pés e cotovelos, cãibras e

suspiros, repentinos Ódios vergos,

projetos de cartas a diretores de vespertinos,

mas se o meu burocrata assomasse à copa do papel selado

e me convidasse, ato contínuo, a dizer ao que vinha pelo higiefone,

da boca não me sairia um pedido, mas um regouço,

e eu teria de ceder a vez

ao cigarro que me queimasse a nuca.

é preciso exercer a paciência e cultivar a

doçura do canteiro do rosto,

enquanto o burocrata destrabalha.

Geralmente não serce de nada pigarrear ou dizer com voz passadeira

“Fazmobséquio”.

Levantar-se-iam, além guichê, as sobrancelhas de, pelo menos, três sujeitos.

Melhor será começar pelo globo que pende do tecto

e que é um olho vazado sobrepujando a cena.

Melhor será observar como a mosca dos tinteiros

nele pousa as patinhas escriturárias.

Depois (lição de coisas!) baixar os olhos para o calendário mural

e ver quantas cruzes a azul ainda faltam

para ir enquadrar noutra parede

um calendário perpétuo parado um mês atrás.

Também aqui há zelo e desmazelo.

Também aqui falta o tempo e sobra o tempo.

Por certo é o mantenedor do calendário em dia

o que está a vir para estes lados.

Já olhou para mim. Sorrio-lhe. Passou.

Volto ao globo e, geografia cega,

Pergunto aos meus botões: “Onde será Paris?”

Mas não é o terráqueo. É um abafador

Que trago desde a infância e não abafou népia.

Rompeu-me a algibeira e não abafou népia.

Curvo-me, enfio a cabeça pelo guichê e, num assomo,

Comando em voz clara e alta: TODOS AOS SEUS LUGARES!

Quebrei o encanto!

Os burocratas que destrabalhavam correm para mim à uma.

Trêmulo de prazer, pergunto a um deles: “É o senhor o meu?”

Lembrando a galhofice e a graça desenvolta dos primeiros poemas de Carlos Drummond de Andrade, Alexandre O’Neill sabe também, à semelhança do poeta mineiro, zombar da sua própria angústia existencial e auto-retratar-se de forma caricatural como o gauche de Itabira:

“Auto-retrato”

“O’Neill (Alexandre), moreno português,

cabelo asa de corvo;; da angústia a cara,

nariguice que sobrepuja de través

a ferida desdenhosa e não cicatrizada.

Se a visagem de tal sujeito é o que vês,

(omita-se o olho triste e a testa iluminada)

o retrato moral também tem os seus quês

(aqui uma pequena frase censurada…)

No amor? No amor crê (ou não fosse ele O’Neill!)

e tem a veleidade de o saber fazer

(pois amor não há feito) das maneiras mil

que são a semovente estátua do prazer.

Mas sofre de ternura, bebe demais e ri-se

do que neste soneto sobre si mesmo disse…”

Essa parentela de posição diante do mundo com Carlos Drummond de Andrade torna-se mais vincada à medida que Alexandre O’Neill mistura desdém com meditação auteticamente permeada de angústia e luminosa descrença:

“Animais Doentes”

“Animais doentes as palavras

Também elas

Vespas formigas cabras

De trote difícil e miúdo

Gafanhotos alerta

Pombas vomitadas pelo azul

Bichos de conta bichos que fazem de conta

Pequeníssimas pulgas uma sílaba só

Lagartos melancólicos

Estúpidas galinhas corriqueiras

Tudo tão doente tão difícil

De manejar de lançar de provocar

De reunir

De fazer viver

Ou então as orgulhosas

Palavras raras

Plumas de cores incandescentes

Alto gritos no aviário

E o branco sem uso

Imaculado

De certas aves de solidão

Para dizer

Queria palavras tão reais como chamas

E tão precárias

Palavras que vivessem só o tempo de dizer a

sua parte

No discurso de fogo

Logo extintas na combustão das próximas

Palavras que não esperassem

Em sal ou em diamente

O minuto ridículo preciso raro

De sangrar a lua a gota de veneno

Cativa das entranhas ociosas.”

Fruto provavelmente do período fascista da ditadura salazarista são os versos intitulados:

“Perfilados de Medo”

“Perfilados de medo, agradecemos

o medo que nos salva da loucura.

Decisão e coragem valem menos

e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,

perfilados de medo combatemos

irônicos fantasmas à procura

do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,

o coração nos dentes oprimido,

os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho elo medo perseguido,

já vivemos tão juntos e tão sós

que da vida perdemos o sentido…”

Embora a antologia brasileira dos poetas portugueses não omita o longo e importante poema de Alexandre O’Neill, “A Pluma Caprichosa”, é pena que dela não constem os versos deliciosos que ocultam-mal-a-melancolia e o ceticismo terno deste poeta que exemplifica, em Portugal, o sentimento do mundo contemporâneo:

“Inventário”

“Um dente d’ouro

A rir dos panfletos

Um marido afinal ignorante

Dois corvos mesmo muito pretos

Um polícia que diz que garante

A costureira muito desgraçada

Uma máquina infernal de fazer fumo

Um professor que não sabe quase nada

Um colossalmente bom aluno

Um revólver já desiludido

Uma criança doida de alegria

Um imenso tempo perdido

Um adepto da simetria

Um conde que cora ao ser condecorado

Um homem que ri da tristeza

Um amante perdido encontrado

Um gafanhoto chamado surpresa

O desertor cantando no coreto

Um malandrão que vem pé-ante-pé

Um senhor vestidíssimo de preto

Um organista que perde a fé

Um sujeito enganando os amorosos

Um cachimbo cantando a marselhesa

Dois detidos de fato perigosos

Um instantinho de beleza

Um octogenário divertido

Um menino coleccionando estampas

Um congressita que diz Eu não prossigo

Uma velha que morre a páginas tantas.”

A esse aspecto desesperançado da sua poesia aparentemente apenas “para consumo”, O’Neill soma outro lado francamente cômico senão agudíssimo de captação da realidade codificada que espelha para o leitor em toda a sua estultice pré-programada e inerte:

“E Tinh’rrazão”

“Ainda meu Silva, estuda-m’aleção,

vêsse-te instruz, rapaj, qu’ainstrução

é dosprito upão!

Ou querch ficar para sempre inguenorantão?

Poin os olhos no Silva teu irmão.

Pensass talvês que não le custou, não?

Mas com’é qu’êl foi pdir aumentação

au patrão?

E tinh’rrazão…”

Poeta que colhe no banal cotidiano o grotesco de vidas baças, inteiramente votadas à mediocridade do passado, do presente e do futuro. O’Neill repassa-as de um tom aparentemente impávido, como se fosse o mero registro ou espelho dessa nulidade, mas passo a passo deparamos, claramente, com um sorriso de mofa mal velado em seus versos “práticos” e considerados “antipoéticos” pelos que esperam da poesia a “Elevação dos Sentimentos”, sem perceber que ela subjaz a cada verso de Alexandre O’Neill, ao recusar para seus semelhantes objetivos tão castradores de cada autenticidade suicida:

“Aproveitando uma aberta”

“Ó virgens que passais ao sol-poente”

Com esses filhos-família,

pensai, primeiro, na mobília,

que é mais prudente.

Sim, que essa qualidade,

Tão bem reconstituída,

nem sempre, revirgens, há-de

proporcionar-vos a vida

que levais.

Se um tolo nunca vem só,

quando não vem, não vem mais

ou vem, digamos, por dó…

E o dó dói como um soco,

até mesmo quando parte

de um tolo que a vossa arte

promoveu de tolo a louco.

Eu, quando digo mobília,

digo lar, digo família,

e aquela espiada fresta,

aberta, patente, honesta,

retrato oval da virtude,

consoladora do triste,

remanso beatitude

para o colérico em riste.

Assim, sim, virgens sensatas!

(Nos telhados só as gatas…)

Pensai antes na mobília,

Honestas mães de família,

E aceitai respeitos mil

Do vosso

Alecxandre O’Neill!”

Dois poemas finais marquem o talento sincopado, atual, da poesia de O’Neill:

“A Central das Frases”

“… já te disse que são os do primeiro…

… e afinal não pudemos telefonar…

… ai nem queiras saber o engenheiro…

… se me dão licença eu vou contar…

… penses nisso era só o que faltava…

… não as outras duas é que são as tais…

… mas o senhor presidente autorizava…

… na avenida centenas de pardais…

… de facto muito inteligente…

… ó filha por aqui fazes favor…

… que veio ontem p’ra falar co’a gente…

… é mesmo lá ao fim do corredor…”

“Sonetos Garantidos”

“Sonetos garantidos por dois anos.

e é muito já, leitor, que mos compraste

para encontrar a alma, que trocaste

por rádios, frigoríficos, enganos…

Essa tristeza sobre pernas faz-te

temeroso e cruel e tonto e traste.

Nem pior nem melhor que outros fulanos,

não vês a Bomba e crês nos marcianos…

E é para ti que escrevo, é para ti

que um verso lanço - ó mão cmo o destino,

ne’l ponho mesura, desatino,

rasgo, invenção, lugar-comum, protesto?

Antes para soldado ou para resto,

escroto de velho, ronco de suíno…”

Há, é lógico, outros poetas e poetisas que não cabem na exiguidade de um artigo de jornal. O decisivo é saber que a grande poesia portuguesa multissecular resistiu a todo estrangeiramento que lhe quiseram impor por patrulhas ideológicas da esquerda stalinista ou pela censura fascista de um governo que findou ao eclodir a poética revolução dos cravos, símbolo da libertação das “províncias ultramarinas” da hipocrisia salazarista e do próprio povo português. Portugal, no Brasli atual, foi alijado das aulas, dos livros de leitura, em prol de um “nacionalismo” xenófobo e emburrecedor e sua voz só nos chega de longe, “neutra” como se viesse da Lapônia ou da Sardenha. A realidade pujante da poesia portuguesa nega, porém, a mediocridade inculcada por dois governos durante tantas décadas. Bastariam os três poetas supremos da atualidade portuguesa, Teixeira de Pascoais, Mário de Sá-Carneiro (morto aos 26 anos de idade!) e o multiforme gênio universal de Fernando Pessoa para legitimar uma intuição profunda que o grande profeta poético descrevera como lúcido visionário no início deste século:

“A ideia de uma Pátria anterior

À forma consciente do meu ser

Dói-me no que desejo, e vem bater

Como uma onda de enconrtro à minha dor…

Algumas obras, ainda, como exprimem coisas fundamentais da mentalidade de seu país, ou da civilização a que ele pertence, duram tanto quanto dura aquela civilização: essas alcançam a idade adulta da glória univeral. Mas outras duram além da civilização, cujos sentimentos expressam. Essas atingem aquela maturidade de vida que é tão mortal como os deuses, que começam mas não acabam, como acontece com o tempo; e estão sujeitas apenas ao mistério final que o Destino encobre para todo o sempre…”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1983) 2022. “Poetas portugueses. Versos e duas culturas reencontram seu ponto de união .” In Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns escritores portugueses, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 6. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.