Sebène Ousmane do Senegal. Um importante momento da literatura africana. Mas a tradução

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1984. Aguardando revisão.

Literatura negra africana: pró ou contra?

Essa escolha absurda se impôs durante muito tempo: um escritor (ou uma escritora) dos países da África Negra deve só glorificar os heróis e grandes feitos da raça e da cultura negras? Ou deve mostrar os homens e mulheres negros como seres humanos iguais a todos os outros, com suas qualidades e defeitos idênticos aos de todo mundo?

Sembène Ousmane corta esse nó com uma argumentação sumamente inteligente e convincente:

“Durante anos mantive contato com alguns de vocês: AFRICANOS. (Nota: maiúsculas do autor). As razões, razões dadas por vocês, não me convenceram. Estavam, claro, de acordo sobre um ponto: ‘Você não deve escrever esta história’. Argumentavam que seria lançar opróbrio sobre NÓS, A RAÇA NEGRA. Ainda mais, acrescentavam vocês, os detratores da CIVILIZAÇÃO NEGRO-AFRICANA (sempre maiúsculas do autor) iriam aproveitar-se dela para… para… para lançar-nos o opróbrio.

Para não parecer pedante, recuso-me a analisar a reação de vocês diante deste caso. Mas quando é que vamos deixar de aceitar, de aprovar nossa conduta em função da cor dos outros e não da do nosso EU HUMANO?”

Seria demasiado longo citar toda a apresentação que precede um de seus sóbrios mas eloquentes relatos, “Branca Gênese”, a respeito de um incesto. A Editora Ática com o lançamento, no Brasil, desta história e de outra que a precede, “A Ordem de Pagamento”, resgata para o leitor brasileiro um romance que é famoso na Europa há quase 20 anos. Infelizmente, a Editora confiou esse fino prosador a um tradutor, Jayme Villa-Lobos, que precisa voltar urgentemente à Aliança Francesa ou tomar aulas de português para não reduzir livros importantes com este a um dialeto frantuguês irreconhecível tanto em francês quanto em português.

A grandeza e a força narrativa de Sembène Ousmane resistem à tradução e às dezenas de galicismos incompreensíveis para quem não souber francês: “clientes de marca como você”, “o que eu tive de ‘molhar’ a mão das pessoas para conseguir esse arroz”, “assim que Mbarka está ao corrente”, “ela falou sem ênfase, com seu acento contrastado” etc.

A Ordem do Pagamento desenha uma África humaníssima, perdida nos labirintos da burocracia da Administração legada pelos franceses. A solidariedade dos africanos como grupo desaparece na luta já sem escrúpulos pela sobrevivência do mais sórdido.Todos se entredevoram em busca de dinheiro, de alimentos, de gorjetas e subornos: o ingênuo personagem principal, Ibrahim Dieng, é acossado de todos os lados logo que es espalha a notícia de que seu sobrinho Abdou, que trabalha em Paris, lhe mandou uma ordem de pagamento. Sem saber francês (isto é: um pouco na situação em que ficará o leitor brasileiro que ler esta tradução sem auxílio de um dicionário français-portugais), Dieng tem de pagar a alguém para que lhe leia a carta do sobrinho, pois é analfabeto até mesmo numa das línguas locais, o wolof, bem como em todas as outras (seis ou sete) faladas no Senegal. Muçulmano devoto, Ibrahim Dieng, invoca os versículos protetores do Corão quando se vê assediado pela chusma de pedintes, de “colaboradores” e parentes improvisados, próximos ou distantes, que souberam da informação transmitida logo em mexerico empolgante: “Ibrahim recebeu dinheiro grosso da França!”

O letor tem acesso a visões ora humorísticas ora trágicas da desumanidade do homem para com o homem, independentemente de sua raça. Com seu estilo conciso, com curtas frases de funda comoção humana, ele é testemunha de uma metamorfose kafkiana dos seus semelhantes, transformados em animais em animais pela ganância, pela empáfia, pela adulação, pela miséria, pelo desemprego, plea fome. Seu itinerário, aparentemente simples, é o mais tortuoso possível: conseguir uma carteira de identidade, sem a qual não pode retirar a “ordem de pagamento” enviada pelo sobrinho para manter a mãe, indigente, que vive à míngua na zona rural.

Em certos momentos, a mestria de Sembène Ousmane nos faz esquecer o nível de dublagem da televisão a que seu romance lamentavelmente foi exposto na tradução brasileira. Aí nos alçamos acima dos termos não traduzidos, prece de Tacousane (?), veudieu (?), nidiyea e varios outros. Nestes instantes, percebe-se o talento admirável do autor africano para retratar aquele exército de famintos, de maltrapilhos, sem manchar-lhes o retrato de nenhum traço piegas nem ideológico:

“O ar tórrido misturado ao cheiro sufocante dos canos de descarga tornava a atmosfera viciada, o cruzamento formigava de gente mal vestida, em andrajos, aleijados, leprosos, crianças em farrapos, perdidas naquele oceano” e em outro trecho: “Diante do correio estendia-se a fila de mendigos, dispostos como vasos de flores murchas, uns estendendo a mão, outros o prato, todos emitindo suas queixas”.

Ressalta imediatamente também a acuidade psicológica do romancista: capta com poucas frases as intenções velhacas do dono do armazém, a patética declamação de elogios do adulador que vive disso, ganância inicial das duas esposas de Ibrahim, logo transformada em desprendimento e fatalismo. Sembène Ousmane lamenta a África perdida, em que a solidariedade humana entre as famílias, os conhecidos, servia de muro contra a adversidade, mas revela uma objetividade que esse espírito comunitário foi insuficiente, porém, para “impedir os assassinatos, as prisões ilegais, as detenções políticas das dinaistias que reinam hoje na África Negra”.

Não há um juízo final, terminante, emitido pelo autor. Demasiado sutil, ele deixa ele deixa em suspenso qualquer conclusão: despojado da ordem de pagamento por um parente ladrão e untuoso, Ibrahim Dieng, hesita entre “tornar-se uma hiena” igual aos outros e conformar-se com a vontade de Alá: Alá determinara que aquele dinheiro nunca chegaria às suas mãos. Parece-me haver um equilíbrio entre a crença religiosa e a possibilidade de um retorno à honestidade pré-colonial, desvirtuada pela presença europeia, pelos seus critérios de usura, de mentira, de egoísmo instituído, de adoração materialista. Possivelmente será esta a diagnose final que o autor faz desta aflitiva e tocante tragédia humana. Imbuída a vítima de uma fé e uma esperança no absoluto poder de Alá, o único Justo, Sábio e Misericordioso, muito além das limitações humanas, ele não descarta a aparição de uma nova justiça, como que “dando a César o que é de César”, segundo o ensinamento do Cristo:

“Há que compreender Ibrahim Dieng. Condicionado por anos de surda submissão inconsciente, ele evitava qualquer ato que pudesse trazer-lhe prejuízo, tanto físico quanto moral. O soco recebido no nariz era um atte Yalla: a vontade de Deus. O dinheiro perdido também. Estava escrito que não era ele quem o gastaria, pensou. Se, segundo todas as aparências, a desonestidade parecia ter levado a melhor, era obra da época e não de Alá. Aquela época que recusava conformar-se à antiga tradição. Dieng, para minorar a sua humilhação, invocava o poder absoluto de Alá: era também um refúgio, aquele Alá. No mais profundo de seu desespero pela afronta sofrida, sustentava-o a firme convicção que tinha de sua Fé, que descongelava ma torrente subterrânea de esperança; mas essa torrente também trazia à tona vastas zonas de dúvida. A certeza de que amanhã seria melhor do que hoje era ponto pacífico para ele. Lástima, entretanto! Ibrahim Dieng não sabia quem seria o artífice daquele melhor amanhã, aquele amanhã que era ponto pacífico para ele.”

Sembène Ousmane deixa mais claro ainda essa distinção entre o religioso e o leigo na dedicatória que faz ao velho companheiro de luta de quem se separou depois que o amigo “acreditou no Deus do Lucro, na felicidade com Dinheiro”. (Será confiável esta tradução?).

O autor que a Editora Ática – a par de sua monumental História Geral da África cujo 2º volume já publicou – revela ao público leitor brasileiro é um combatente ativo em prol da democracia: lutou na libertação da Europa do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, foi estivador nas docas de Marselha durante toda a vida autoditada. É preciso que suas obras anteriores, Le Docker noir (Paris, 1956), O pays, Mon Beau Peuple! (Paris, 1959), Les Bouts de Bois de Dieu (Paris,1960) e Voltaïque (Paris, 1962) venham complementar a sua incisiva presença na literatura africana contemporânea. E quando será traduzido o senegalês Cheikh Hamidou Kane? Afinal já começa a haver um justificado cansaço causado aqui por parte da literatura hispano-americana que abusa do “realismo fantástico” como pano de fundo para marionetes sem vida do “socialismo soviético”: o militar despótico, os camponeses revoltados, os juízes corruptos, os índios boníssimos e perfeitos, os brancos todos vendidos e sanguinários, do tipo que a Sra. Isabel Allende comete, centenas de páginas a fio. E Gabriel Garcia Márquez é um só, as cópias xerox que dele se fazem do Peru ao México, são enfadonhas e ilegais.

Da literatura africana de hoje é que se pode esperar aquele renascimento que a Europa literariamente agonizante com um espinho de nomes de rosa atravessado inutilmente na garganta não pode mais oferecer ao mundo, apenas alimentar a lista de best-sellers e bobagens pseudo-eruditas que faz tilintar as máquinas registradoras e faz a gente pensar que está “consumindo literatura”…

Da literatura africana é que nos virão temas novos, a libertação do jugo do materialismo politizado, dela virá o despertar de um humanismo contagiante, desvinculado tanto do relógio de ponto da linha de montagem quanto de utopias de ditaduras de classes ou de partidos únicos.

Sembène Ousmane é o outro lado da África: sem fanatismos, sem despotismos, sem terrorismos, sem obsessão pela epiderme. Ele lança um olhar penetrante, convincente sobre os seus semelhantes e não duvida da criação consciente de um mundo melhor. Um mundo sem usurpadores, mesmo quando estes empunham as bandeiras mais falsamente “democráticas” e “igualitárias” que podem desfraldar. A literatura africana claramente comprova, se for necessário comprovar o óbvio, que a literatura é o território mais livre, mais democrático, menos maleável pela propaganda – comercial ou política – de todas as atividades criativas do ser humano. Desta liberdade ela deriva a sua perenidade e a sua solidariedade com todos os seres humanos da Terra: ela é que acena com o verdadeiro e abrangente humanismo redescoberto.

Reuso

Citação

BibTeX
@incollection{gilson ribeiro2021,
  author = {Gilson Ribeiro, Leo},
  editor = {Rey Puente, Fernando},
  title = {Sebène Ousmane do Senegal. Um importante momento da
    literatura africana. Mas a tradução},
  booktitle = {Racismo e literatura negra},
  series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
  volume = {1},
  date = {2022},
  url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-1/4-literatura-africana/10-sebene-ousmane-do-senegal-um-importante-momento-da-literatura-africana-mas-a-traducao.html},
  doi = {10.5281/zenodo.8368806},
  langid = {pt-BR},
  abstract = {Jornal da Tarde, 1984. Aguardando revisão.}
}
Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1984) 2022. “Sebène Ousmane do Senegal. Um importante momento da literatura africana. Mas a tradução .” In Racismo e literatura negra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 1. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.