Resenha do livro A Guerra Conjugal

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1969-12-17. Aguardando revisão.

Nos contos de A Guerra Conjugal, o ótimo escritor Dalton Trevisan, mostra imagens do amor frustrado de certas situações conjugais. Um dos melhores livros de nossa literatura.

“João era casado com Maria e moravam em barraco de duas peças no Juvevê; era rua de lama e ele não queria que a dona molhasse os pezinhos. O defeito de João era ser bom demais – dava tudo o que ela pedia.

Garção do Buraco do Tatu, trabalhava até horas mortas; uma noite voltou mais cedo para casa e acho as duas filhas sozinhas, a menor com febre, João trouxe água com açúcar e, assim que ela dormiu, foi espreitar na esquina. Maria chegava abraçada a outro homem, despedia-se com um beijo na boca. Investiu furioso contra os dois, o amante correu e a esposa, caindo de joelhos, pediu perdão em nome do filho no ventre.”

Este início do primeiro conto, “O Senhor Meu Marido”, do novo livro de Dalton Trevisan, dá o tom desta Guerra Conjugal. Partindo das expressões feitas do povo – “o defeito de João era ser bom demais”, “pediu perdão em nome do filho no ventre” – o contista paranaense constrói, uma história após a outra, imagens do amor frustrado. São imagens que, conforme focaliza o autor, apresentam uma caricatura hilariante das situações conjugais, ou uma condição de convívio miserável, trágica na sua essência de ódio, desespero e angústia.

Às vezes o desencontro amoroso tem aspectos de uma farsa pesada, como em “Devaneios do Professor de Filosofia” em que um marido malcasado escreve bilhetes líricos e eróticos a uma mulher casada que o enlouquece. O contraste entre seus devaneios poéticos e voluptuosos e a realidade é exposto por meio do contraponto do seu monólogo interior e as palavras cruas da esposa, como se Don Quixote e Sancho Pança falassem alternadamente de amor e de intestinos, enquanto a mulher se queixa:

O marido delineia bilhetinhos de amor:

“Como vai a dona dos meus pensamentos? Que esta cartinha vá encontrá-la gozando a mais perfeita saúde”.

Num crescendo hilariante, a gorda megera preocupada com gases e prisão de ventre morre atropelada por um ônibus e o marido, enlutado, depara no velório com sua amada lúbrica:

“… Obrigadinho pelos pêsames. Minha pobre Maria esta santíssima senhora. Seguia ao meu lado e, distraída como era, ao descer a calçada, foi de encontro ao ônibus. Foi uma boa morte: ela sofria tanto de prisão de ventre, a coitada. Muito gentil é a senhora, é certo que o luto assenta bem com meus cabelos louros. Já vejo que é uma safadinha. Aqui, debaixo do caixão, agora, durante o velório? Ai de mim, para quem é esse chicotinho de sete pregos?”

Em “Leito de Espinhos” as frases cômicas não escondem o quadro de martírio de um marido torturado por uma mulher sádica e adúltera. Numa miniatura de desencanto e fragilidade humana, o marido cai de sua soberba inicial para o mais completo aniquilamento, com um obscuro rei Lear da pequena burguesia curitibana, simbólica de toda a população brasileira.

Dalton Trevisan utiliza uma forma cada vez mais breve: um verdadeiro hai-kai do conto. Com poucas pinceladas ele esboça perfeitamente uma vida inteira de amor desprezado, de sofrimento curtido cristãmente, de sexualidade animal incontida e de indiferença, o caso final do amor. Esses instantâneos universalmente válidos são porém transmitidos numa forma brasileira, inconfundível pelos valores de uma sociedade que capta: os ídolos de pés de barro do Supermacho Potentíssimo que na noite de núpcias fracassa repetidamente, deixando a esposa “grávida, porém, virgem”, como no conto de mesmo nome, e da Inexpugnável Virgindade da Nubente, que, no entanto, se revela frequentemente duvidosa, o marido acusando a esposa de “já ter pertencido a outro”, ela acusando-o de “ser um fracassado, você não é homem, João!” É o inferno conjugal que, como já revelava Santa Teresa de Ávila, definindo qualquer inferno: “es el lugar donde no hay amor”.

Depois da magistral coletânea dos Desastres do Amor, Dalton Trevisan completa seu painel familiar: triste, divertido, cheio de lubricidade, poesia, morte e abandono, um dos maiores livros de contos da língua portuguesa e do mundo.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1969) 2023. “Resenha do livro A Guerra Conjugal.” In Grandes contistas brasileiros do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 10. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.