Juan Goytisolo, o guerrilheiro das palavras, é como um Goya que pintasse e gravasse com verbos, adjetivos e provérbios
De Tânger, aquela língua de terra africana a intrometer-se pela Europa o autoexilado contempla a Espanha odiadamada: católicas cidades em sagradas ceias ajoelham-se diante da Mangedoura eletrônica, a TV, símbolo do status colorido.
Nas paredes das casas mais humildes até o edifício mais modern style paira sempre o retrato do Ubíquo carcomido pelos anos e pelas refregas. Granítico, o sempiterno Defensor da Hispanidad cristã aconselha, acalma, adverte, ensina, naquela Península de paz, paraíso do progresso com 3,82% de aumento de renda per capita anual de cada cidadão espanhol.
Hollywood trocou as palmeiras de Los Angeles pelo clima sempre estável, os impostos escassos e mão-de-obra quase gratuita de Almeria.
Hotéis Hilton costeiam como atalaias do progresso a Costa Brava, loteada por turistas alemães de biquínis mini.
Qualquer dono de snack bar fuma seu Benson e Hedges e come seu hot dog, fazendo fila para ver o último filme de James Bond.
Na Real Academia de la Lengua Española, doutos senhores barbas e cabelos nevados guardam a sete chaves o Decálogo do Bem Dizer. Nas reuniões sapientíssimas debatem teses candentes como “o sentimento da honra no drama espanhol do século XVII”.
Helicópteros do USA Strategic Air Command desdobram o retrato-gigante do Ubíquo que beatas disputam pelas ruas. Ele, a Cruz, a Tourada são a encarnação imarcescível da Raça, da Hispanidad, paridos pela Meseta que produz místicos, heróis, Conquistadores dos Andes e dos astecas e maias. Por ele, os espanhóis embriagados por Volkswagens e gravatas Pierre Cardin dão a vida, quanto mais um voto nas urnas de lista única!
O Ubíquo organiza cursos e cursilhos por correspondência de imobilidade e hieratismo e por meias palavras, como convém a um macho varão de Espanha, alude ao dia em que ele – nova encarnação de Sêneca e da heroica atitude diante da dor e da morte, atributo dos fortes na arena e na trincheira – desaparecerá tratado pelo Tempo.
E um delírio de emoção e de juras de lealdade a inundar o Palácio de onde dirige a Nau da Nação. Um aficionado andaluz lhe escreve comovido: “penzo telegrafar-lhe dizendo-lhe que pedi de joelho a Virgem Padroeira que dizista do zeu intento, porque azi como Ela o protegeu até aqui, zeguirá dispensando-lhe zeu patrocínio co’a vida: não pode irze azi, sem más nem menos”. Um trio vocal canta na rádio as excelsas virtudes do Ubíquo, misto de romanceiro, auto sacramental, livro de Cavalaria, Cid Campeador, Manolete e Sêneca! Mulheres a ponto de dar à luz suportam por mais tempo as dores do parto para serem levadas a cabine de votação, aviões cruzam os céus de Madrid traçando sinuosos SINS à continuidade ontológica do Insubstituível.
Nos cafés literários como El Chicote os rimadores e pensadores reunidos em boêmias tertúlias brindam-se mutuamente, enquanto no Parlamento-Meto-Carimbador os deputados eleitos pelo terço e pela inspiração divina discutem interminavelmente e a quinta emenda ao anteprojeto de lei da rede de esgotos da aldeia de Quintanar da Ordem, com discursos recheados de tropos e metáforas literárias justas.
Os novos burgueses, os novos aristocratas, novos donos do desenvolvimento industrial! Da sociedade de consumo! Afundam-se nos luxos jamais sonhados das saunas, dos Dodges, da filosofia do self-made man de estirpe puramente hispânica, munidos de computadores e Escolas de Administração de Empresas capazes de eliminar as contradições de classe, melhorar as infraestruturas e encaminhar a Espanha à sua vocação europeia!
Juan Goytisolo, com este livro fenomenal – Reivindicação do Conde Julião (Editora Civilização Brasileira, 180 páginas) reinventa o romance. Não há enredo. Há uma evocação longa, às vezes hilariante de inventividade, outras desesperadoras de pessimismo anárquico, um apelo em prol de uma nova invasão da Espanha franquista por hordas mouras.
O Julião do título é, historicamente, o nobre árabe que planejou a conquista da Península Ibérica, em 711, pelos berberes conduzidos pelo crudelíssimo Tárik Ibn Zaid a saquear, violar e incendiar Toledo, Sevilha, Granada, Mérida num avanço indetível Julião é invocado sempre como o Justiceiro, o Vingador que substituirá as palavras do autor pela ação sanguinolenta e purificadora: incendiando a paisagem, reduzindo a Espanha à sua primitiva essencialidade bruta e sobretudo extirpando a erva daninha da Retórica, do Culto da Palavra, esse prelúdio breve do Culto da Personalidade – desta vez de Franco e não de Stalin.
Juan Goytisolo cai no Brasil de paraquedas. Quem é? Seria outro obscuro hispano-americano? Quem já ouviu falar dele?
Juan Goytisolo é o último dos Moicanos da Literatura europeia. Não insufla teorias políticas de nítida ideologia obediente ao PC como Jorge Semprun. Não enxerta no romance técnicas cinematográficas, ângulos visuais, expansões do cenário geográfico, transportando-o de Paris para Nova York como Alain Robbe-Grillet em Projeto para uma Revolução em Nova York. Não apela para um método semi-joão-guimarães-roseano de engastar na prosa dialetos populares como o italiano Carlo Emilio Gadda. Sobretudo não faz do romance um painel de mea culpa da consciência nacional como o alemão Heinrich Böll diante dos crimes nazistas.
Juan Goytisolo nasceu do próprio ventre do anarquismo catalão que professa com aderência total de seus pensamentos, escritos e ações. Exilado na França, é proscrito na Espanha. Pois a Espanha, pátria contemporânea do extremismo político da Esquerda, o “comunismo” sui generis russo. Os dois países-limites da Europa, que só conheceram a liberdade em breves meses ou anos de euforia criadora – a Catalunha, em 1938 e Moscou, em 1920 – mergulharam em seguida na letargia paralisante do Fascismo e do “Socialismo” estalinista. Só eles possuem um exílio voluntário de inteligências criadoras: aos Solzhenitsyns e Nureyevs emigrados corresponde, na Espanha, a partida de quase toda a intelligentsia espanhola.
Fuzilando Federico Garcia Lorca, as tropas franquistas que gritaram “abaixo a inteligência” abateram justamente a poesia e o despertar de um teatro popular vigoroso, disseminado pelo grupo La Barraca do autor do Romancero Gitano.
Banindo Arrabal, com suas peças surrealistas, a Espanha baniu a própria vanguarda teatral – surrealista, sádica, pungente, das peças englobadas em Cemitério de Automóveis ou Pic Nic no Front.
A vitória do Fascismo levou ao exílio a música clássica, com o violoncelista Pablo Casals, que jurou e cumpriu nunca mais pisar em pátrio enquanto a ditadura franquista não ruísse por sua própria senectude.
O esmagamento da República insurgente afastou das fronteiras espanholas a mais profunda revolução individual das artes plásticas do século XX, o espanholíssimo Picasso, radicado em Paris depois da vitória da castradora Falange fascista de Franco e de Primo de Rivera.
Se não há liberdade, não há análise, se não há debate, não há criação – o remédio é erguer um cordão sanitário contra Buñuel, outro espanhol de gênio mal visto pelas autoridades eclésio-político-obscurantistas que fizeram a Espanha intelectual estagnar no tempo desde a Guerra Civil de 1936.
Juan Goytisolo não optou apenas pelo ostracismo escolhido que o mantém um marginal, um apátrida e um outlaw em Paris.
Com o ódio não antípoda, mas já vizinho da paixão amorosa que sente ciumentamente pelo seu país traído duplamente – primeiro pela morte da liberdade, e, segundo, pelo binômio turismo industrializado de lucros só para poucos – ele arma com esta prodigiosa Reinvindicação do Conde Julião, publicado no México (que acolheu mais de vinte mil intelectuais, artistas e cidadãos comuns opositores do regime franquista) nada menos que uma guerrilha. Uma guerrilha de palavras, contrariando sua própria convicção, que faz eco com a de Carlos Drummond de Andrade, de que “lutar com palavras/ é a luta mais vã”.
É com palavras e um estilo miraculoso que ele – como um Goya que pintasse, desenhasse e gravasse com verbos adjetivos, substantivos e advérbios – retrata a decadência moral da Espanha estuprada pelo bis business americano em conluio com a prostituição do turismo portador de pornô-shop, de motéis, de snack bars, de colonização mental estrangeira – desde os filmes de James Bond até a série Os Impecáveis na Televisão, encimada pela Última Ceia kitsch.
Para isso ele atinge um vértice insuperado de imaginação: indaga se os grandes toureiros Manolete, Dominguín e El Cordobês não encarnam as virtudes do estoicismo de Sêneca: “ele reza jaculatórias em latim e orações ricas em indulgências, cujo cômputo aproximado, frais déduits, se eleva à astronômica cifra de 31.273 anos: consequência: quinze almas do purgatório aliviadas de suas penas de aflição e de sentido, segundo a fidelíssima e doce contabilidade IBM”; faz pastiches deliciosos dos grandes poetas e prosadores da Espanha: encaixa em seu texto fervilhante versos de Fray Luís de León ou de Lorca, trechos do livro de sucesso Platero y yo; escarnece da “superioridade” hispânica que massacrou as tribos e civilizações indígenas das Américas, submete a uma irrisão virulenta a Cruz, a Espada, a Catequese dos índios e a pilhagem do Peru e do México de pretensos defensores da Pobreza, da Fé e da Austeridade Cristãs.
A palavra é seu primeiro alvo a ser atingido certeiramente.
A palavra é que, ciciante, enreda os crédulos na retórica demagogia dos Conquistadores, a palavra é o arauto da dominação e da sacramentação: “a mesquinha palavra desperta e executa a implacável traição.”
Por isso é legítima a estratégia francamente militar de destruir a gramática, arma do Imobilismo mental. Desacorrentar o verbo em mãos dos tiranos “no solar ingrato, verdugo dos livres –”para que se assegure que, libertos os homens e os seus lábios, “inteligência e sexo florescerão” na Espanha agrilhoada no púbis, no confessionário, , na prisão, no sindicato, na censura plural: censura exercida pela Igreja, pela Comissão de Moralidade e Bons Costumes, pela censura político-ideológica, pela censura militar, uma censura cissípara que, como vermes, quanto mais corta, mais se reproduz, mutilando.
A palavra destruirá o mito assim como a ação violenta destruirá o engodo. Sem piedade, será arrasada a paisagem. Serão estrangulados “os velhos que se sobrevivem e os jovens que se sobremorrem: massas de cadáveres que caminham e urbanamente acatam os sinais do tráfico”. A imprensa aduladora e servil cessará de seguir os passos do Ubíquo na inauguração da Esposição de Crisântemos, com menininhas a ofertar-lhe, com gentil reverência, um ramo de flores. Os jornais pró-monarquia e esclerosados deixarão de relatar cada passo do Ubíquo na janela, ululado pelas massas enquanto assobia a marcha da Ponte do Rio Kwai.
Um novo Diabo Coxo – uma das obras-primas da novela picaresca espanhola – destelhará a cidade de Madrid de hoje para mostrar a podridão dos parasitas que aquiescem mudamente a tudo. As bolsas de estudos norte-americanos da Al Capone Fondation deixarão de espalhar seus borrifos de benesses sobre alguns apaniguados obedientes e redundantes.
A palavra será como pólvora molhada, estopim quebrado. Denunciando anulará os abusos do verbo: “palavras, moldes vazios, recipientes sonoros e ocos, que micróbio vos secou a polpa e a sorveu até a casca?”; é hora de pôr as Academias em leilão, de vender nas lojas o Parnasso em liquidação: “o verbo morreu, a violência é muda: para pilhar, destruir, violar, trair não necessitarás de palavras”.
A ação será primeiro punitiva: uma freira fará strip-tease ao som de um sucesso dos Rolling Stones; turistas do Texas e do Bronx participarão de excursões recomendadas pelo Diner’s Club e com benção especial de Sua Santidade, traveller’s checks accepted here, ao útero primacial da Hispanidad, enquanto os autofalantes difundem músicas sacra e vendedores de cartões-postais vendem souvenirs.
Intervirão todos os sacrossantos Mitos hispânicos nessa destruição dos falsos vendilhões do Templo: a cafetina Celestina que apregoava a virgem Espanha-Melibéia, moscas tsé-tsé, moscas varejeiras e abelhas investirão furiosamente contra o Dom Quixote granítico e aristocrático e levarão a gangrena a seus valores esfarelados. Depois passarão a comer os livros, devorando e chupando o tesouro linguístico nacional.
Será o prelúdio da Segunda Invasão Moura, vinda do Norte da África, o retorno à Espanha caprina, troglodita, inimiga do progresso, da ordem e da democracia, Enquanto os árabes pilham, despojam a Espanha de toda a contribuição da cultura islâmica: a álgebra deixa de ser ensinada nas escolas, o algodão e o álcool serão devolvidos com os algarismos a seus legítimos propagadores, até o olé das touradas desaparecerá como eco do árabe wa-l-lah! E o idioma não será mais propriedade exclusiva dos castelhanos. Abastardo, mas livre, terá sotaque italianizado em Buenos Aires, langor negro em Cuba, ecos índios no México. A Espanha será o Chapeuzinho Vermelho que, ao levar rabanadas para a avó, será esmagada pelo Lobo Árabe no leito avoengo.
Juan Goytisolo teve uma sorte digna da grandeza de seu romance. Caiu na ignorância brasileira do que se passe no mundo, neste nosso no man’s land da cultura, amparado pela tradução magistral de Remy Gorga. É uma transladação que automaticamente torna esta Reivindicação do Conde Julião numa obra-prima em português, digna de uma Eça de Queiroz ou de um José Cardoso Pires. No Brasil, traduções dessa nobreza, dessa erudição, dessa sensibilidade, aliada a um amor ativo pela recriação de uma obra em outro idioma, contam-se pelos dedos de uma só mão. Mário Quintana e Cecília Meirelles traduzindo Virgínia Woof, Carlos Drummond de Andrade, transcrevendo Proust. Antônio Houaiss transplantando Joyce ou Eliane Zagury abrasileirando Gabriel Garcia Márquez.
É uma tradução que, por si só, mereceria além da leitura admirada, um prêmio de fidelidade, de aderência ao espírito e à letra do original, não fosse o Brasil um país em que a literatura non è um cosa seria.
Mas que é coisa seríssima e que está sendo subvertida e atualizada também fora da América Latina, prova-o cabal e deliciosamente este romance surrealista, pop, barroco, magnético, fascinante e do qual se emerge ofuscado e reanimado de esperança: a palavra é o TNT da mente, é o paraíso da imaginação, o território do riso e a fonte do pranto. A palavra, mais ainda, é o mapa dos descobrimentos do homem perante si mesmo. E a balística da Libertação, com este estrategista genial da anarquia catalã. Juan Goytisolo consegue invalidar o teorema da desagregação da grandeza espanhola. Nunca um livro iconoclasta misturou ao ódio amor tão arrebatador. Juan Goytisolo aprofunda, ao contrário, o esplendor de uma Espanha toda vida de inteligência e de verdade como numa cena dos Desastres de la Guerra de Goya.
Juan Goytisolo, negação do abismo em que o totalitarismo lança a invenção humana, com este livro dinamita a velha literatura inerte, profeta de um intato amanhã.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Juan Goytisolo, o guerrilheiro das palavras, é como um Goya
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booktitle = {Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra
os despotismos e os totalitarismos},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
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doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1975/07/26. Aguardando revisão.}
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