Shakespeare: uma interpretação pessoal

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Texto publicado em um jornal não identificado, Sem data. Aguardando revisão.

A obra incomparável de Shakespeare apresenta, durante todo o seu grandioso desenvolvimento, um progressivo controle dos elementos técnicos e estilísticos de sua dramaturgia, num divenire qualitativo que se estende por decênios. Nega-se assim, fundamentadamente, a autenticidade de peças inteiras ou partes consideráveis delas, principalmente as que correspondem ao período inicial de sua carreira nos palcos de Londres: é o caso de Henry VI (partes 1, 2 e 3) e de Titus Andronicus, nas quais há, sem dúvida, a interferência de um talento grosseiro, incompatível com o do jovem poeta de Stratford. Entre as primeiras peças e as tragédias finais da maturidade artística, há todo um aprendizado, todo um amestramento de uma genialidade que se afirmaria plenamente nas obras-primas derradeiras: O Rei Lear, Antony and Cleopatra, Otelo, Macbeth e A Tempestade.

Típica da parte vulnerável do seu teatro é a tragédia romântica de Romeu e Julieta, cujos elementos "folhetinescos" (se não houver blasfêmia em utilizar essa expressão com relação a Shakespeare) de um amor contrastado e um pacto de morte de saber acentuadamente sentimental arrebatam o grande público. A maioria dos espectadores extasiados pela "história trágica de um amor infeliz" passa despercebida a fragilidade de muitas cenas grandiloquentes e de imagens poéticas puramente retóricas. Só mais tarde é que uma sinceridade inconfundível brilhará como um sol negro nas falas dos personagens acossados por sua consciência e por seu fado inexorável de violência, de frustração e desespero.

Para muitos críticos, essa fase "artesanal" da criação shakespeariana inclui os dramas históricos baseados nas chronicles de Hall e Holinshed e que precedem o período supremo de 1599 a 1608, durante o qual surgem, em milagrosa sucessão, as grandes tragédias. Cremos, porém, que não baste reconhecer nesses murais históricos o vigor de uma ou outra figura claramente delineada, como a de Richard III ou Richard II ou a libertação paulatina de modelos sem vida em prol de protagonistas de vivência vibrante e inegável. As tragédias históricas têm, cremos, uma importância singular na evolução do domínio técnico do instrumento de expressão artística escolhido pelo dramaturgo que se renova de uma peça a outra, renovando-se constantemente. Nelas, à semelhança de outros dramas, o denominador comum, o Leitmotiv central é o da usurpação do poder real por meio da violência, o da deposição de um soberano legítimo que acarreta, como corolário, a destruição de uma ordem social justa porque reflete, hipoteticamente, a determinação divina de uma hierarquía que culmina na figura do monarca. É a esse assassinato de soberanos que Richard II alude, no monólogo pungente que precede o seu destronamento por Bolingbroke:

"For God's sake let us sit upon the ground

And tell sad stories of the death of kings:

How some have been depos'd, some slain in war,

Some haunted by the ghosts they have depos'd,

Some poison'd by their wives, some sleeping killed,

All murdered. -"

É, contudo, na segunda parte deste monólogo angular que Shakespeare amplia a sua profunda indagação psicológica do ser humano oculto sob o disfarce exterior da majestade, quando Richard II confessa sua identidade humana com todos os seus semelhantes:

"Cover your heads, and mock not flesh and blood

With solemn reverence: throw away respect,

Tradition, form and ceremonious duty:

For you have mistook me all this while.

I live with bread like you, need friends; subjected thus,

How can you say to me I am a king?"

Essa revelação da "sujeição de um rei às debilidades da condição humana vem completar o quadro da vulnerabilidade dos monarcas: assim como em Richard III se demonstrara que um monstro de crueldade pode tornar-se rei, agora se verifica que um usurpador, Belingbroke, pode cingir a согоа, da mesma forma que Richard II se revelara um soberano inepto para o mando, de tendências religiosas e contemplativas que o tornariam prêsa fácil do futuro Henry IV. As tragédias históricas de Shakespeare - os exemplos poderiam ser muito mais numerosos - constituem como que o esboço, a antecipação dos grandes personagens trágicos do zênite da sua criação. Da mesma forma que Richard III antecede, de certa maneira, a cega ambição de poder de Macbeth, Richard II verá ecoada em Hamlet a sua incapacidade de agir no plano concreto, revelando-se também late in action. E, no entanto, com a criação de um rei imaginário, o Rei Lear que o poeta ultrapassa, em perscrutação psicológica e em perfeição estilística, todos os dramas inspirados na história nacional e talvez todas as tragédias da dramaturgia ocidental. O rei abandonado pelas filhas desnaturadas documenta, ele próprio e de forma comovente, a identidade do soberano com todo o gênero humano, de cujas fraquezas inerentes à condição humana participa: a vaidade desmesurada, a soberba, a injustiça, a aceitação da bajulação hipócrita, a arbitrariedade expressa por um teste de afeição já absurdo por si só e a incapacidade de distinguir a realidade do artifício. Mas, indo muito além dos desenlaces de tragédias anteriores, o Rei Lear, depois de tocar o amago do sofrimento e da humilhação, durante a tempestade simbólica, transcende a dor pelo conhecimento que adquire da realidade que o circunda e pelo conhecimento de si mesmo e da sua ilimitada foolishness. Embora a chegada tardia da justiça seja um traço em comum desse drama com os demais da sua categoria, a catarsis de Lear constitui um elemento até então inédito, cremos, na trajetória artística do seu criador.

Se o Rei Lear culminaria e encerraria um círculo da inventividade shakespeariana, é na peça considerada como sendo cronologicamente a última que escreveu, portanto, a de sua plena maturidade artística e intelectual, que se abre um brave new world, uma nova perspectiva espiritual para os que acompanharam o lento fluir do seu singular estro poético que, como um rio majestoso, espelha em todo o seu decurso imagens definitivas da vida. É em A Tempestade que podemos reconhecer talvez o que de mais próximo se assemelha a um testamento final, a uma summa summarum da derradeira visão do mundo que nos legou o bardo de Stratford-on-Avon.

Retomando o tema habitual das comédias o da revelação final das identidades verdadeiras dos personagens, seguida da reconciliação dos inimigos A Tempestade se distingue, porém, de todas as obras precedentes, por transcender a mera catarsis do personagem vítima de sua debilidade basilar. Se Rei Lear sofrera a tempestade, agora é Próspero, como agente, que a causa, mantendo absoluto controle desse elemento simbólico que vem restabelecer a justiça e permitir o amor de Miranda e Ferdinand; numa solução contrária à dos amantes de Verona, o enlace dos filhos de antigos inimigos sela a harmonia que de agora em diante prevalecerá entre os súditos do legítimo Duque de Milão. Mas não se limita a esta diferença o contraste que esta peça estabelece com o restante da produção de Shakespeare: Próspero põe têrmo ao longo ciclo de tragédias e comédias em que a vingança desempenha um papel-chave. Na sua sabedoria de mago iniciado em ciências sobrenaturais, ele perdoa seus malfeitores, incutindo-lhes o arrependimento e despertando o bem latente em seus espíritos temporariamente ofuscados pela cegueira do mal. As palavras finais de Próspero são fundamentalmente palavras que indicam uma vitória moral, de uma superação do ódio e da vendetta. As imagens que se sucedem no epílogo que encerra essa peça única, de contextura alada e mágica, referem-se simbolicamente ao desterro e à desolação da ilha (o ser humano, Próspero, banido da comunidade humana), o da liberação das algemas (do ódio e do rancor) por meio de uma bondade superior e, finalmente, o resgate do desespero que só pode ser vencido pela oração: "and my ending is despair / unless I be rellev'd by prayer".

Há uma coincidência extraordinária entre o apelo derradeiro de Próspero à indulgência, que o libertará, e o apelo do Fausto goethiano à misericórdia divina que o salvará do Inferno. Atingindo um grau superior de evolução espiritual, Próspero-Shakespeare reconhece a mesquinhez dos embates humanos, a futilidade da vingança e a transcendência do perdão. Sem querer atribuir a essa reconciliação final, como tentaram críticos católicos, características declaradamente cristãs, podemos, porém, vislumbrar em A Tempestade a alegoria de um sentimento religioso que parece ter imbuído o último legado de Shakespeare à humanidade através das ações e das palavras do sábio, do bom e do mágico Próspero.

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Shakespeare: uma interpretação pessoal .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.