A ousadia deste irreverente escritor português
“De fato, e consoante as profecias da familia, tornara-me um homem: uma espécie de avidez triste e cínica, feita de desesperança cúpida, de egoísmo, e de pressa de me esconder de mim próprio…”
Antônio Lobo Antunes
As hemorróidas que Salazar criou nos portugueses arrebentaram. O regime fascista que colocara a liberdade, a democracia, os direitos humanos numa vasta prisão de ventre nacional estourou, afinal, na retirada das tropas portuguesas dos ridículos “territórios ultrmarinos” eufemismo inútil dado às colônias Angola e Moçambique. Rebentou na revolução dos cravos, no oxigênio restaurado para uma população acorrentada ao “sim, senhor”, ao medo, à mediocridade instituída. A liberdade, húmus da criação, floresceu em um veradeiro renascimento da literatura portuguesa. Banidos os livros “de resistência marxista” do exangue “neorealismo” de obras bocejantes e boçais ao extremo (haverá exceções?), romperam-se os grilhões da ideologia dogmática.
José Cardoso Pires pôde analisar magistralmente a falência da estrutura opressiva que dominara Portugal por dentro em O Delfim. De Luanda, pouco antes da chegada dos 30.000 “conselheiros cubanos” de que Angola não se libertou até hoje, ressoava a voz viril, inédita, de José Luandino Vieira e seu relato trágico, aterrador da guerra contra o domínio metropolitano: Luuanda. Como diz um conto nativo muito espalhado por Angola:
“Mu’xi ietu iá Luuanda mubita uma ikuata sonii…” O que quer dizer em português: “Na nossa terra de Luanda passam-se coisas vergonhosas…”
Antônio Lobo Antunes, jovem escritor português, enviado às terras da África como médico, em seu romance já irreverente e desbocado desde o título, Os Cus de Judas, que a nova Editora Marco Zero acaba de lançar no mercado brasileiro, toca na ambiguidade das relações luso-angolanas. A expressão que, em Portugal, como no Brasil, significa “no fim do mundo, no lugar em que o Judas perdeu a bota”, tem em Angola um sentido mais trágico ainda, se possível: o de traição, noção ligada à figura do Judas que traiu o Cristo.
Grande admirador de um dos gênios literários da França, Céline, Antônio Lobo Antunes não se libertou da influencia devastadora do autor de Voyage au Bout de la Nuit. Não herdou o anti-semitismo feroz do esplêndido romancista francês nem o vigor corrosivo do seu estilo, é verdade. No entanto, este Os Cus de Judas é uma reviravolta inteligente e maracante no conceito acadêmico, embolorado, que se possa ter da literatura como uma senhora prendada, de punhos de renda, a tomar chá com bolinhos nas reuniões crepusculares das academias de todo o mundo.
A partir do primeiro capítulo, encimado pela letra A, até o último, que simbolicamente esgota todas as letras do alfabeto, um niilismo absoluto derruba as mentiras e os mitos, as hipocrisias e retóricas ocas do totalitarismo de direita em sua feição lisboeta. É sem amargura, mas com uma objetividade de quem observa bactérias a se contorcerem dentro de um doente desenganado que lhe pinça todos os aspectos da vida sob uma ditadura:
“O espectro de Salazar pairava sobre as calvas pias labaredazinhas do Espírito Santo corporativo, salvando-nos da ideia tenebrosa e deletéria do socialismo. A Pide (a tenebrosa Polícia do Estado, durante o período salazarista) prosseguia corajosamente a sua valorosa cruzada contra a noção sinistra de democracia, primeiro passo para o desaparecimento, nos bolsos ávidos de pequenos jornaleiros e auxiliares de escritório, do faqueiro de Cristofle. O cardeal Cerejeira, emoldurado, garantia, de um lado, a perpetuidade da Conferência de São Vicente de Paulo, e, por inerência, dos pobres domesticados”.
Ou a união de ligas femininas patrioteiras com histerismos pseudo-religiosos:
“As senhorias do Movimento Nacional Feminino vinham por vezes distrair os visons da menopausa distribuindo medalhas da Senhora de Fátima e porta-chaves com a efígie de Salazar, acompanhadas de padre-nossos nacionalistas e de ameaças do inferno bíblico de (a prisão de) Peniche, onde os agentes da Pide superavam em eficácia os inocentes diabos de garfo em punho do catecismo”.
De acordo com a sua visão destruidora de todos os aspectos da vida sob um regime totalitário, nem a guerrilha proposta por Che Guevara “esses Carlos Gardel da Revolução”, nem a submissão de Portugal ao Vaticano podem ser outra coisa senão matéria de riso: “Quem levou séculos a semear igrejas acaba inevitavelmente, por reflexo, a colocar jarras de flores de plástico no tampo das geladeiras”. Sua negação total parte, aliás, do que chama de um país “estreito e velho”, com meditações que se aplicam profundamente ao Brasil como um dos diagnósticos possíveis para o pântano imóvel da imemorial mediocridade brasileira:
“Por exemplo, a tristeza depois do jantar substituía as palavras cruzadas do jornal, e entrerinha-me a preencher quadradinhos em branco de trabalhosas elocubrações, limites aliás entre os quais o pensamento lusitano se condesa, equivalentes metafísicos dos cravos de papel. Compreenda-me: pertencemos a uma terra em que a vivacidade faz as vezes do talento e onde a destreza ocupa o lugar da capacidade criadora, e creio com frequência que não passamos de fato de débeis mentais habilidosos consertando os fusíveis da alma à custa de expedientes de arame”.
Se a constatação da “esperteza” e da “escroquerie” como meios de vencer e iludir por meio do calote, da trapaça, seria ensurdecida, no Brasil, pelo coro dodecafônico dos Coroas-Brastel, Capemi, Delfim, “polonetas” e mil mazurcas nacionais, o que diria o autor se conhecesse a santimônia de nossos bispos e sua babosa “opção pelos pobres”?!
Mas, de A a Z, os capítulos o que ressumem ao final? A funesta mistura de visões lúcidas de chagas nacionais e um sentimentalismo banal de quem busca na infância tatibitati um “paraíso perdido” e irresponsável, pois nele não há maturidade individual. O que restará dele quando sobrevier a morte, ele mesmo indaga e responde: “Um menino que se erguerá de mim como a alma do corpo nas gravuras do catecismo”. Levados de roldão todos os valores, perde-se a perspectiva de qualquer valor que sobreviva. O que mostra a pobreza filosófica e de avaliação do autor: o que pode existir de parentesco entre Fernando Pessoa e Salazar? Entre Eça de Queirós e o colonialismo? Entre Mário de Sá Carneiro e a pusilanimidade dos que aceitaram o ditador como tapa-olhos da realidade portuguesa e de além-mar? A novidade de Antônio Lobo Antunes limita-se, então, em grande parte, à sua ousadia de incorporar o palavrão e a irrisão como armas para alijar de seus nichos os santarrões falsos, os ídolos consagrados pela política oficial que cloroformizou um povo quase por meio século.
O que fica desta leitura tantas vezes delirante, engraçada, sarcástica ao destapar os engodos de uma tradição natimorta é a receita ainda válida de Céline: negar as estruturas vigentes, assimilando na linguagem literária o submundo da giria, dos termos considerados obscenos. Nele nada existe, porém, da poesia alucinante dos textos de Céline. Ao contrário de uma Voyage au Bout de la Nuit este Os Cus de Judas não tem as fulgurações diabólicas de quem soltou todas as amarras e construiu um mundo mítico, mágico, amoral como o de Céline. Antônio Lobo Antunes plana em níveis inferiores: reconhece como uma das verdades mais profundas o chavão do desamor do ser humano para com os demais seres humanos.
Quem quiser encontrar nesta sua obra o clarão de um Rimbaud de Le Bateau Ivre ou de um Burroughs de The Naked Lunch e sua denúncia indignada de um mundo que codificou o sexo, a religião, o consumo, o comportamento, a política por meio das repressões tecnológicas do Estado, do psiquiatra, do padre, do capitalismo, do comunismo, desista.
Antônio Lobo Antunes ignora outro truísmo banal:
Portugal é um país único na Europa, séculos e séculos a fio: talvez só a minúscula Atenas do terceiro ao quinto século antes de Cristo apresente uma fermentação e uma qualidade de gerações poéticas comparável à de Portugal, como bem ressaltou o lusitanista britânico Aubrey Bell. Confundir a própria dispepsia com a morte de Deus é reservado apenas aos raros Nietzsches que despontam de cem em cem anos, antes de submergir na loucura menos fecunda para os que estão do lado de cá do hospício, torcendo junto com Lacan, Laing e toda a virada riquíssima da antipsiquiatria. Antônio Lobo Antunes, nos mais hilariantes momentos de seu desmascaramento da superstição ignara imbuída da crença de que é um sentimento místico-religioso autêntico, não ousa tanto quanto o retrato ácido da Titi de A Relíquia de Eça de Queirós. Publicada em 1887, portanto, quase há um século já. Este livro, Os Cus de Judas, é uma catarse excelente para quem quer purgar seus pecados de colonialismo, imperialismo, imobilidade cultural: seu autor é o que os franceses chamam de um enfant terrible a quebrar louças em vários pesudo-santuários. Mas, ao contrário de tantas figuras da literatura portuguesa, ai de nós, não é um gênio.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {A ousadia deste irreverente escritor português},
booktitle = {Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns
escritores portugueses},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {6},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-6/05-antonio-lobo-antunes/00-a-ousadia-deste-irreverente-escritor-portugues.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1984. Aguardando revisão.}
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