Wozzeck

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Diário de Notícias, 1960/05/22. Aguardando revisão.

Anteriormente nesta seção, fizemos referência a Büchner, o grande restaurador do moderno teatro alemão, morto aos 24 anos de idade, em 1837. Precursor importante de Brecht, do Expressionismo e do Naturalismo, esse genial dramaturgo expressou na novela Lenz, a sua concepção artística, ao declarar: “É preciso amar a humanidade, para penetrar na essência individual de cada ser vivo, nada deve parecer-nos por demais insignificante, pode demais hediondo: só então podemos compreendê-lo na sua substância íntima e oculta: o rosto mais opaco causa uma impressão mais profunda do que a mera percepção da Beleza...”

Esta universalidade do amor, esta irmanação romântica com todas as formas de vida na terra e com todos os seres da sociedade humana recorda a saudação enérgica e democrática de Walt Whitman, que estendia, através dos oceanos e continentes, a sua mão generosa, envolvendo toda a humanidade no seu amor sem discriminações:

“Cada um de nós inevitável,

Cada um de nós sem limites – cada um de nós com o seu direito na terra,

Cada um de nós gozando dos benefícios eternos da terra,

Cada um de nós aqui tão divino como o seu semelhante”.

Deve ter sido essa sua aspiração de iluminar os desgraçados, de arrancá-los do anonimato injusto a que estavam relegados no plano artístico que levou Büchner a plasmar uma das figuras mais comoventes da dramaturgia moderna, o débil mental Wozzeck, um dos párias humanos triturados pelas rodas metálicas da sociedade humana. Essa peça, uma sucessão aparentemente desconexa de 26 cenas extremamente curtas, possui, no entanto, toda a incisão e a pujança das criações que dignificam uma literatura e assinalam um marco na história do espírito humano. Hoje, portanto, continuando nossa divulgação de textos literários na série “Documentos”, delineamos, em suas linhas fundamentais, este drama revolucionário, que inaugura uma nova era expressiva no âmbito do teatro alemão.

Já na primeira cena, duas das figuras-chaves do conflito encontram-se no palco – Wozzeck e o Tenente -, na esfera estreita e usada com grande economia em que se agitam os personagens de Büchner.

Enquanto o Tenente, sentado, faz-se barbear por Wozzeck, discorre, enfadonhamente, sobre a sua filosofia pessoal, aliás, facilmente resumível: O Tenente, D. Juan barato, semideus de criadinhas do campo, baseia a sua vida em duas crenças inabaláveis e interrelacionadas: o amor físico e o culto do seu belo “eu”, da sua vaidade de “macho” irresistível. Quando, raramente, a vida apresenta-lhe aspectos mais transcendentes, ele recorre à bebida ou, caso o obstáculo ao seu prazer seja concreto, utiliza a força bruta. Nesta cena inicial, ele expressa medo por um fator na vida que ele não pode mudar, como ele diz com suas próprias palavras: “Tenho medo completo do mundo, quando penso na eternidade... o eterno e o momentâneo... sabes, Wozzeck? Não posso ver nenhuma roda de moinho, logo fico melancólico...”. Wozzeck permanece lacônico, durante algum tempo, até que o Tenente cruelmente ironiza a estupidez bovina e doentia de Wozzeck e, num lance de hipocrisia impressionante, acusa-o de viver uma vida imoral por ter um filho concebido sem a benção da Igreja. Wozzeck finalmente responde, ainda que por poucas frases: “Deus Nosso Senhor não olhará para o pobre verme para saber se foi pronunciado”Amém” sobre a sua cabeça antes de ele ter sido feito. O Senhor disse: “Deixai vir a mim as criancinhas...”. Contendo em si aquela pureza elementar dos seres simples, ele por si é incapaz de malícia, é tolerante e dócil, no entanto, a seguir, revela consciência da sua condição social e da sua miséria: “Nós, pobres, só podemos pensar em dinheiro, dinheiro! Mas somos de carne e osso... Gente como nós é infeliz neste mundo e no outro... Creio que se chegássemos ao céu tínhamos de ajudar a estourar os trovões...”. Esta frase, porém, evoca imagens libidinosas, na mente do Tenente, que exclama: “Carne e osso? Ah! Quando depois da chuva, chego à janela e vejo as meias brancas das mulheres, quando elas saltam às poças d’água... Com os diabos! Me vem uma vontade de amar, eu também sou de carte e osso! Mas a tua virtude, Wozzeck, onde está?”

Wozzeck – “Se eu fosse um senhor e tivesse um chapéu, um relógio e um abrigo elegante e soubesse falar de maneira distinta, eu já procuraria ser virtuoso. Deve ser bonito ser virtuoso, mas eu sou um pobre diabo...”.

Nas cenas seguintes, vemos Marie, mulher de Wozzeck, uma beleza local, inculta, que só fala em dialeto e cuja sensualidade é conhecida de sua vizinha. Numa altercação rápida entre as duas, esta a reprova, declarando, com a rudeza voluntariamente visada por Büchner: “O teu olhar, ‘sem vergonha’ quando os homens passam, atravessa sete calças de couro!”.

Depois, ao ver o Tenente desfilar com garbo, no seu uniforme vistoso, tocando o tambor do regimento, ela é alvo de suas atenções. Ao divisá-la, o Tenente troca impressões sumamente realistas com um colega: “Que fêmea! É uma mulher digna da reprodução de majores de todo um exército!”. E, para vencer a frágil resistência da sua nova presa, o Tenente a compra com umas joias, enfeite que Marie, na sua pobreza, nunca vira sequer. No quadro sucessivo, ao chegar em casa, Wozzeck depara com a mulher experimentando os brincos, coquete, diante do espelho, mas ela consegue enganá-lo, dizendo que achou as joias.

A sedução de Marie é feita de maneira quase mecânica. Os personagens de Büchner não agem, por assim dizer, de espontânea vontade, mas, como os protagonistas das tragédias gregas, são vítimas de um Destino tão insondável quanto inflexível, vítimas de seus instintos e de suas taras. As catástrofes do mundo de Büchner são como que preestabelecidas, como diz o Lenz da novela já mencionada; “o mundo tornara-se claro e ele sentira em si uma agitação e um tumulto atraírem-no para um abismo, arrastado por uma força inclemente...”. Assim, também Marie hesitará antes de aceitar o Tenente e terá mais tarde lances patéticos de remorso e de arrependimento, durante os quais, identificando-se com Madalena, deseja arrojar-se aos pés do Cristo que a absolveria, contudo, ela não escapa à sua sina. Büchner parece descrever muito da inevitabilidade dos choques humanos: Marie sentia-se envaidecida, como mulher, de possuir um homem fisicamente belo e viril, por outro lado, outro fator influi: a sordidez da vida que levava com Wozzeck, um débil mental, um camponês ignorante e sem perspectivas de melhora futura, o que, aliado à sua própria beleza e sensualidade, a força a uma infidelidade. Depois de breve luta, Marie entrega-se ao Tenente, resignadamente: “dá tudo no mesmo!”, ela exclama, envolta pelos seus abraços voluptuosos.

Certos refinamentos de crueldade para com Wozzeck dão à peça um cunho precocemente expressionista, justificando a integração parcial de Büchner nessa concepção do mundo, compartilhada depois por Brecht e por Kafka, em algumas de suas obras. O Médico, por exemplo, nesse drama, mantém Wozzeck numa dieta forçada e exclusiva de ervilhas há já longo tempo, observando, com frieza científica, a progressão daquilo que ele doutamente chama de aberratio mentalis partialis, ou seja: aberração mental parcial na mente da sua indefesa cobaia humana, à qual, devido aos progressos da moléstia, ele promete um aumento de salário... Quando, uma vez consumado o ato físico, o Tenente se vangloria indiretamente diante de Wozzeck, as características expressionistas se acentuam:

Tenente (voltado para Wozzeck, com um sorriso cínico) – “Nunca encontraste, Wozzeck, um fio de barba na tua sopa? Ah, não me compreendes, hein? Um fio de barba de um suboficial, talvez de um major que bate o tambor? Haha! Mas tu tens uma mulher honesta, não é como a dos outros... Mas que cara fazes, homem! Bem, pode ser que não na tua sopa..., mas quando sais correndo de casa e voltas a esquina, quem sabe se não poderias encontrar, ao chegar em casa, um fio sobre uns lábios... uns lábios! Ah, Wozzeck! Eu já conheci o amor..., Mas olhe doutor! Que sujeito! Ele está branco como um giz!” Enquanto Wozzeck, como um Otelo primitivo e indefeso, se deixa penetrar pelo aguilhão terrível da suspeita e do ciúme, o Médico grita exultante, tocando o pulso do seu doente: “O pulso, Wozzeck, o pulso! Pequeno, duro, latejante, irregular!” Wozzeck (meditando e não crendo no abismo que se abriu diante de seus olhos) – “É impossível... o ser humano... o que é... Não! Não é possível... O sim provém do não ou o não do sim? Quero pensar nisso...”. O Médico – “Um fenômeno, Wozzeck, aumento de ordenado!”

É difícil, porém, como Wozzeck logo percebe, libertar-se da dúvida. Ele toca a mulher com as suas rudes mãos e exclama: “Não vejo nada, gostaria de vê-lo, de pagá-lo com as mãos, um pecado tão grosso e tão largo... tens lábios tão vermelhos, mulher, e nenhuma bolha neles? Ah, cada ser humano é um abismo, a gente entontece quando olha para dentro... Ela caminha como se fosse inocente... A inocência não se finge..., Mas eu o que sei? Sei alguma coisa? Alguém sabe?”

Mas, finalmente, Wozzeck obtém a certeza que desejava e temia ao mesmo tempo: Numa cena em que dois operários bêbados estabelecem contraste, servindo como que de contraponto com ele, em primeiro plano, Marie e o Tenente dançam no fundo do palco e Wozzeck não pode ter mais dúvidas. Marie grita ao Tenente, girando em seus braços: “Mais, mais!”. Wozzeck ecoa: “Mais, mais, girem, rodem, valsem, por que Deus não assopra o sol, para que tudo gire, uns sobre os outros, na dança do impudor? Homens, mulheres e animais, todos juntos. Vamos, façam o que querem sobre as nossas mãos abertas, como os mosquitos. A fêmea, a fêmea é quente, quente, mais e mais... aquele sujeito, como ele a agarra pela cintura... Ela agora é dele como foi minha antes...”. Um dos operários bêbados prega a altas vozes: “Por que existe o ser humano? Ah, eu vos digo de que viveria o alfaiate e de que viveria o médico, se Deus não tivesse inculcado no Homem o pudor, de que viveria o soldado, se não estivesse armado da necessidade de matar seu próximo a golpes de fuzil ou baioneta? Por isso não duvidem, tudo é belo e agradável, mas as coisas da terra são ruins, até o dinheiro apodrece...”.

Decidida, depois de noites de insônia e de ter perdido uma curta luta corporal com o Tenente, a matar a mulher infiel, Wozzeck a conduz a um lago, circundado por um bosque sombrio. E numa cena que recorda vivamente Otelo e Desdêmona, ele diz, enquanto a iluminação do palco adquire tons escuros: “Onde vamos? O caminho não vai fazer feridas nos teus pés... Tens frio, Marie? És tão quente, teus lábios são quentes, teu hálito é quente, quente hálito de rameira..., Mas eu daria o céu para beijar-te mais uma vez... Não tenhas frio, não gelarás com o orvalho da manhã...”.

Marie (amedrontada, vendo a lua) – “Oh, como está vermelha a lua hoje, subindo no céu!...”.

Wozzeck – “Como uma pedra ensanguentada... (esfaqueando-a): Toma isto e isto! Não queres morrer ainda? Mais e mais, ela ainda estrebucha... ainda não, ainda não? Estás morta? Morta, morta...”.

Wozzeck volta para a cidade e para atordoar-se, dança numa estalagem, mas o veem manchado de sangue e ele, aterrorizado, foge, voltando para o local onde matou Marie: “A navalha... onde está a navalha? Mais perto... silêncio... ali, ali! Marie? Ah, Marie, que silêncio... por estás tão pálida, Marie? Tens uma fita vermelha no pescoço? Quem te deu o colar negro que teus pecados mereceram? Tu estavas negra, negra de pecado e eu te fiz branca, pálida como estás agora...”. Ele mergulha no lago para procurar a navalha e morre afogado... Na rua onde ele morava, seu filho, de dois anos, agora está só, brincando com as outras crianças. Elas falam da morte de Marie e o menino corre para ver “antes que levem o cadáver embora...”.

E, no final, quando o delegado, o juiz, o médico e outros circundam a assassinada, o delegado diz, curvado sobre a morta:

“Um bom crime, um crime legítimo, um crime bonito. Tão bonito que não se pode pedir mais. Há muito tempo não tínhamos um assim”.

Brilhantemente musicada pelo compositor Alban Berg, Wozzeck logo arrebatou as plateias mundiais em que essa ópera foi apresentada: em Berlim, Paris, Londres e Nova York. Como fragmento genuinamente genial de um talento excepcional, desaparecido prematuramente, Wozzeck integra com A Morte de Danton e Leonce e Lena a trilogia dramática de altíssima qualidade artística de Büchner e compartilha com outras figuras do teatro moderno, um lugar de destaque, a par do Galileu e da Mãe Coragem, de Brecht, da Condessa de Geschwitz das peças de Wedekind para só nos atermos ao teatro alemão do século XX.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Wozzeck .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.