Um Deus sádico martiriza sua marionete, Jesus

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1991. Aguardando revisão.

O semanário lisboeta Jornal de Letras de 5 a 11 de novembro último dá grande destaque à entrevista que concedeu ao crítico José Carlos de Vasconcelos, o controvertido escritor português José Saramago. Autor de belos livros como Memorial do Convento e O Cerco de Lisboa, além de outros títulos, discorre, no diálogo publicado, sobre seu livro recém-lançado em Portugal e no Brasil: O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Como admirador sincero do grande talento narrativo de Saramago, infelizmente devo confessar que senti, como muitos outros leitores também, uma confirmação da queda qualitativa de sua criatividade. Esse fenômeno começou com a Jangada de Pedra que, lamento dizer, mais me pareceu uma piada jornalística do que uma meditação profunda ou esclarecedora a respeito do secular desprezo e desinteresses votados à Península Ibérica pelos demais países europeus “do lado de cá” dos Pirineus.

Agora, este Evangelho dá-me a nítida sensação de um desencontro entre o mestre de um estilo literário dútil, rico de vocábulos e expressivo e um tema que não foi explorado nem com originalidade nem com sucesso pelo autor lusitano. Visão de comunista ateu por visão de comunista ateu, o filme de Pasolini sobre o mesmo tema pelo menos é de uma trágica beleza de enorme impacto visual e emocional. Já estas fartas, detalhadas páginas dessa interpretação honestamente pessoal, fictícia, do Evangelho não fogem a banalidades travestidas de conjecturas sobre Jesus Cristo e sobre Deus. Assim, Deus não é só “o homem mau” da História ou, em termos brasileiros, é o “vilão”, o “bandido” por excelência da trama universal.

Em seu delicioso painel hilariante do Nordeste, A Pedra do Reino, Ariano Suassuna ironiza, com fantasia mordaz, os papéis que a Santíssima Trindade, vista por um fanatismo comunista pétreo, desempenha em sua função “política”: o Filho, Jesus, é o rebelde idealista e o Pai, Deus, é um homem mau, um Pai rancoroso, Jeová arbitrário e prepotente. Suassuna revela, com muita graça, o deslocamento de Jesus transformado em guerrilheiro, uma espécie de Che Guevara que se insurge conra o Pai, o Criador, retrógrado latifundiário de todas as galáxias.

Os “achados” de Saramago não denotam muita graça, da teológica então nem se cogita, pois se trata de fazer desmoronar o Cristianismo como se fosse um castelo de cartas ou uma série de mentiras impingidas aos crentes. Jesus nasce das relações sexuais rápidas de José e Maria e é Filho também de Deus, pois “Deus aproveita a ocasião” da cópula… Ele, afinal, é a suma e malévola “encarnação do Poder”, autoritário e opressivo. Mais ainda: “Deus de certo modo é o político que não olha meios para atingir seus fins”. Haverá então alguma relação entre Deus e os narcotraficantes, os violentos, os corruptos? A mim me pareceu, perdão pela palavra, uma bobagem a constatação: “É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue”. Há quem goste, porém, desse conceito: o sentimento religioso felizmente não se impõe mais a ferro e fogo.

Entre as licenças poéticas de que lançou mão, como o devido direito que lhe assiste, Saramago acusa José de ter sido um “criminoso por omissão”, pois não avisou seus vizinhos da chegada iminente dos soldados de Herodes, não evitando assim o massacre de mais de vinte crianças. Por isso, o remorso irá destruir-lhe a vida e seu arraigado sentimento de culpa passará para Jesus, “porque os filhos herdam tudo dos pais”. Inúmeras outras novidades: José é “tarefeiro” e “o próprio Golias só não foi jogador de basquete por ter nascido antes do tempo”.

Antes de “desmontar os milagres” de Jesus, o autor acha “má” a relação entre Jesus e seus pais carnais e afirma que Maria Madalena “servia” a Jesus, dando ao leitor a liberdade de querer interpretar essa expressão como bem entender. (A Última Tentação de Cristo, de Scorcesse, é mais elegante e mais sutil). Seu veredito sobre Deus é severo: “Deus não tem o direito de criar seres a não ser para a sua - sua, deles - felicidade.”

Para não alongar demasiado a lista de colocações pessoais de Saramago reiteremos: além do estilo admirável de tão dútil, o romancista português, de méritos mais que evidentes, poderia ter legado a seus fiéis leitores um tema que dominasse melhor. O que, definitivamente, não é o caso deste polêmico Evangelho, etapa descartável de sua esplêndida carreira literária anterior. É pena.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1991) 2022. “Um Deus sádico martiriza sua marionete, Jesus .” In Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns escritores portugueses, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 6. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.