Um feminismo sutil, sucesso em Portugal
O escritor A. Alçada Baptista abana a cabeça, desacorçoado:
“A Europa está esclerosada. Com todas as Marguerites Duras, Yourcenar, Beckett e tantos mais, a literatura do Velho Mundo é geriátrica, de artérias endurecidas.”
Ele vê nos trópicos e especificamente no Brasil o vigor que se espalha por toda a literatura latino-americana:
“Bastaria uma única página de Borges para fazer esmaecer tudo o que de novo a Europa hoje em dia produz, laboriosa e, ai de nós, infertilmente”.
Ele explica claramente essa descoberta e essa adesão:
“Posso dizer, como Fernando Pessoa, que minha pátria é a língua portuguesa. Descobri que eu tirava meus hábitos da cultura francesa importada e voltava a meus ritos pessoais quando me sentia, em Cabo Verde ou no Brasil, nos países em que se fala a língua portuguesa. Como a ditatura em Portugal mantinha tudo fechado, trancava a criação intelectual e artística, tudo se fazia, para nós, por meio da cultura francesa, já que nos era vedado tudo em nossa língua natal. Mas veja: se como lembra bem, desde os tempos do Eça a influência francesa era uma clara manifestação do provincianismo português (risos), imagine como ando eu hoje, que há quatro anos não vou a Paris e ao Brasil já vim 17 vezes com esta! Isto porque, sem nenhuma demagogia, eu vejo que os trópicos, o Brasil é que são o futuro. Aqui no Brasil também senti a experiência, nada erudita, mas humana e real, da dimensão gigantesca da língua portuguesa aqui, não só ao ver avenidas como a Rio Branco no Rio de Janeiro e Prestes Maia aqui em São Paulo e verificar que lá em Portugal nada temos dessas dimensões. Foi aí que me dei conta da expansão da cultura portuguesa, com as pessoas se comunicando em português, os cartazes, os jornais. Acudiu-me à mente logo uma frase do Borges, quando ele falava sobre Camões na Embaixada do Brasil, em Buenos Aires, em que ele dizia:”A razão pela qual não gosto de dicionário é porque eles nos levam a pensar que as línguas são traduzíveis”. Ora, quando se trata de coisas, de objetos, pode ser útil um dicionário, mas quando se trata de emoções, não: a linguagem é toda uma concepção emotiva que temos do universo. Emotiva e conceitual também.”
Seus livros anteriores, dois volumes intitulados Peregrinação Interior, abordam Reflexões sobre Deus e O Anjo da Esperança e já ultrapassaram, juntos, mais de dez edições em Lisboa. No entanto, esse católico educado por jesuítas, influenciado por autores católicos como Chesterton, Mauriac, Graham Greene, vem causando furor pelo tema de seu novo livro, Os Nós e os Laços (Editora Nórdica), com mais de 20 mil exemplares já vendidos em Lisboa.
Recebe cartas de moças que o animam a continuar no mesmo caminho, pois elas querem pôr em prática o que seu livro prega. Até mesmo um vetusto padre da legião de Santo Inácio de Loyola não lhe negou sua admiração em uma revista católica. Para uma parte da sociedade portuguesa, sem dúvida, Alçada Baptista causa estupor, raiva, pois não é que se atreve a narrar um caso de amor livre entre um casal que voluntariamente concorda em dar um ao outro a liberdade amorosa que quiser, fazendo desmoronar séculos e mais séculos de posse do corpo do amado ou amada?!
Alçada Baptista não faz um tratado teológico maçante sobre o tema, mas surpreendentemente lhe dá a vivacidade do senso de humor ousado, como quando um dos personagens principais declara, entre galhofeiro e sério: “Amo as mulheres através do meu lado feminino. Acho que o que sou é lésbico!…”
Um livro sutil, mas violentamente feminista, que denuncia o machismo português e a posse, o ciúme, como instigadores de imensos massacres através da História? Mais até: um livro que localiza na sede de poder a origem da infelicidade humana e afirma serenamente:
“É possível que a distinção entre valores masculinos e femininos seja extraordinariamente arbitrária e, por isso mesmo, precária. Isto hoje, para mim, não oferece dúvidas: se analisarmos as sociedades primitivas, verificamos que elas estão estruturadas sobre a exploração da mulher, e isso poderia levar-nos a dizer que essa condição está inscrita na natureza. Ora, o que me parece é que isso já é uma consequência duma determinada organização do poder. O que está inscrito na natureza é a maior força física do homem, a falta do embaraço periódico da maternidade e outras coisas que fizeram com que o homem tomasse o poder e o organizasse sobre a exploração da mulher. Foi a partir desse poder que se criaram os valores que chamamos masculinos e foi com esse poder que o homem foi escrevendo a História: daí que a mulher tenha sido excluída do poder e da História. Ficou a viver valores caseiros. Mas o que acontece é que, enquanto certas mulheres resolveram partir à conquista do poder, alguns homens estão a descobrir que nos tais valores femininos está talvez a possibilidade de se encontrar a harmonia, que o poder é capaz de ser a grande fonte de destruição do estofo humano mais profundo, aquele que, muito possivelmente, poderia envolver a nossa felicidade”.
O autor insiste na procura de maneiras alternativas de se viver: não se limita à defesa da ecologia, ao domínio de povos sobre outros povos, mas questiona sinceramente as regras que ainda persistem nas relações amorosas entre o homem e a mulher, põe à mostra a ferocidade do machismo guerreiro, egoísta, castrador, insinuando, como na canção “Super~Homem”, de Gilberto Gil que o ser humano deve deixar preponderar ora o seu lado masculino, o animus, ora o seu lado feminino, a anima, conforme definidos por Jung. Não há perigos de efeminação: por acaso um homem não pode ser sensível e uma mulher não pode ser empreendedora sem que ambos percam com isto suas características próprias do seu sexo? Como seria o mundo se não fosse moldado exclusivamente pela imposição forçada de valores femininos?
Ele exemplifica com a própria literatura portuguesa. Há todo um arcabouço racionalista, cartesiano, da literatura lusitana, contudo o que mais a distingue e lhe dá até uma superioridade sobre as demais literaturas européias é a poesia já quase milenar e que com o seu lirismo permite exprimir o mistério do sonho humano, as desditas, as angústias, o gozo, a saudade. Esse lado extremamente sensível da expressão literária da alma portuguesa se renova sempre: não foi Jakobson que, com toda a sua erudição, declarou que Fernando Pessoa é tão importante para a poesia contemporânea quanto Picasso para as artes plásticas e Stravinsky para a música moderna?
Ele sublinha que seria uma banalidade chamar a atenção para a crise existencial profunda em que vivemos atualmente. O caos a confundir-se, em muitos lugares, com o exercício da liberdade, o instinto de sobrevivência servindo de base para uma expressão inédita de criação e de cultura. Mas o importante é discernir que não se trata apenas de perigos, de mudanças, mas sim de uma modificação estrutural da ciência, da relação da sociedade humana com a natureza, e, por que não?, do código amoroso como ele tem fornecido. Há nem se sabe quanto tempo, traumas para os deitados nos divãs dos psiquiatras e cenas de sangue, morte, assassinato por ciúme, por uma delimitação do corpo alheio como quem traça as fronteiras de um fortim, tomado ao inimigo:
“É o que eu tento expor em meu livro, Os Nós e os Laços: será que esta forma de amar já não está obsoleta, não está dando já sinais de cansaço e de envelhecimento irreversíveis? Se pensarmos que o amor é a forma que entrevemos de felicidade individual, será necessário que o amor traga atrás de si tantas neuroses, tantas mágoas, tantas frustrações, tanto massacre?”
Essa noção da supressão da mulher ao longo da História veio “paradoxalmente por causa do meu apego ao cristianismo. Eu, que me ponho a interrogar cada vez mais com relação à atuação da Igreja no mundo laico, reconheci, porém, que no Ocidente somente a religião cristã dá ênfase à mulher, o que não me parece aconteça com a religião maometana nem com a judaica. Sem dúvida, a Igreja tem, de fato, apresentado uma enorme duplicidade com relação à mulher: num instante ela é a tentação diabólica, hedionda, Eva que nos expulsou do Paraíso, no outro ela é a redenção de nossos pecados, é a mãe de Deus, é a Virgem Santíssima. Não se pode deixar de lado, todavia, que os anátemas mais pavorosos contra a mulher partem de São Paulo e que nem entre os gregos nem entre os romanos tampouco jamais se deu à mulher um papel, por mais ínfimo que fosse, enquanto o cristianismo acenou com a libertação tanto dos escravos quanto da mulher, não nos esqueçamos disso.”
“O casal que existe no livro, existem na realidade, são amigos meus e creio que estariam mesmo dispostos a esse despoajamento do eu em prol da liberdade do outro, sem que com isso o amor ficasse destruído. Ambos compreendem que só pode amar outrem quem já é, de si só, livre. Meu romance, que é o primeiro que escrevo, tem tido uma acolhida, como direi, incômoda pelos homens de 40, 50, 60 anos, em Portugal, creio que porque eu os questiono.
“Mas há incompreensões também. Uma senhora que é crítica leterária interpretou o romance como sendo um triângulo amoroso e escreveu esta frase que me soa absurda:”O Gonçalo e o Duarte era tão amigos que compartilhavam a mesma mulher”. Que frase reacionariamente machista! Na realidade, esta senhora não percebeu que, ao contrário, a Teresa, sim, é que era tão livre que podia escolher os homens com os quais quisesse fazer amor!
“Nao sei se o meu livro se antecipa a uma série de reestruturações que forçosamente hão de se dar em Portugal, com a entrada do país no Mercado Comum Europeu e onde problemas semelhantes já são debatidos intensamente. Já lhe falei do esgotamento, da prostração mesmo, em que se encontra a Europa, exaurida, exangue; portanto acredito que essa profunda metamorfose que se há de processar pelo menos na parte ocidental da Europa abrangerá todas as relações humanas. O papel do Estado, da escola, da Igreja, tudo terá de ser revisto, mas não apenas sob o ângulo ideológico. Não se trata de abandonar uma Igreja agonizante, a do Vaticano, por outra Igreja moribunda, que é a do comunismo. Novos tempos exigem novas atitudes, novos comportamentos, novas maneiras de pensar e agir, creio eu.
Para exemplificar a cegueira teimosa da Europa que reluta em morrer e sair de sua estreiteza provinciana, basta atentarmos para a atitude do Prêmio Nobel com relação a Jorge Luís Borges. É um escândalo! Qualquer pessoa medianamente inteligente e sem parti pris, ao ler uma única página do Borges, dirá imediatamente: “Isto, sim, é literatura”. E a Academia de Estocolmo, por que lhe nega esse prêmio que ele mais do ninguém vivo hoje merece, Deus meu?! É a parte mesquinha, reacionária, da Europa, a remexer no seu próprio passado e sem se dar conta da grandeza que a rodeia. Paciência. No entanto, quando a Europa quer revigorar-se apela para os autores hispano-americanos e brasileiros. Mesmo essa coisa pavorosa, que me repugna, que é a literatura entremeada de política, como a do Gabriel García Marquez e do Pablo Neruda, é muito mais válida e interessante e viva do que certos dinossauros mentecaptos que a Europa teima em impingir a si mesma, como se sofresse de esquizofrenia aguda, sei lá…”
“Lamento que o André Gide já tenha escrito um livro com um título que eu cobiço: Os Moedeiros Falsos. Porque eu acho que continuamos a viver distanciados da realidade, à margem do real, cada vez mais parece-me. A sociedade contemporânea se contenta com palavras, com a verbalização dos conflitos: a palavra tornou-se então essa moeda falsa que corre por aí como se tivesse valor real. Aboliu-se o padrão ouro, mesmo em sentido simbólico, e nos tornamos quase todos nós isso: moedeiros falsos, vendedores de palavras.”
Um trecho marcante de seu livro, quando a personagem Teresa medita: “A gente às vezes tem um clarão e fica a compreender muitas coisas. As pessoas só entram em grande lucidez quando atingem certos estados: talvez no amor, possivelmente na dor, com certeza perto da imagem da morte… ‘Sinto-me lúcido como se estivesse para morrer’, dizia Pessoa. Agora sou capaz de ver que todo o poder - seja do homem seja da mulher - é masculino. O poder é o arbitrário a corromper a História. Nascemos e, quando entramos pela porta do mmundo, já ele está cheio das formas e dos obstáculos arbitrários que os poderes construíram. Saímos à rua e nem reparamos que tudo é masculino: a forma das casas, as regras do trânsito, o amor que vivemos, a faculdade, o hospital, o olhar dos outros. Julgo que a dificuldade de viver vem disso, de estarmos constantemente a tropeçar no arbitrário, a ter que enfrentar o absurdo. Mas, não sei porquê, continuo a acreditar que é possível que a vida de que sentimos a promessa seja extraordinariamente simples. Julgo até que nela, com naturalidade, caberiam todos os nossos sonhos. Não importa que a gente sonhos demais e realidade de menos, porque o que é preciso é alargar o espaço para os sonhos: eles é que são o motor da História.”
Alçada Baptista retoma essa insistência num transformação do mundo, das condições em que vivemos, dos sistemas políticos e econômicos que erigimos Leste e a Oeste no Norte e no Sul. A reação contra as centrais nucleares, a juventude e sua vontade de experimentar o nunca experimentado lhe dão esperança de uma modificação para melhor: “É disso que eu vivo”.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Um feminismo sutil, sucesso em Portugal},
booktitle = {Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns
escritores portugueses},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {6},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-6/08-antonio-alcada-baptista/00-um-feminismo-sutil-sucesso-em-portugal.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1986-05-22. Aguardando revisão.}
}