Guimarães Rosa: o sertão, o mundo e a travessia. Depoimentos e conversas de LGR com Guimarães Rosa

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Inédito, 1965/07. Aguardando revisão.

Síntese elaborada por LGR especialmente para Cadernos Brasileiros em julho de 1965 de muitos depoimentos e conversas que ele teve com Guimarães Rosa (12 páginas datilografadas/texto não publicado)

“Dos Gerais, dos campos claros, vinham as boiadas e as lembranças” Guimarães Rosa

Ao sertão, o Hinterland do Brasil, caberia um destino singular: vasto corte transversal que atravessa um país, zona de confluências de civilizações, é uma transição geográfica entre a selva e o cosmopolitismo litorâneo e histórico entre tipos de economia pertencentes a séculos diferentes. Encarnando a psique interiorana, a temática do Sertão assumiria características de uma legítima saga nacional, muito antes do caudal de filmes sobre o “cangaço”, mais adstritos a uma constatação de situações sócio-políticas típicas do Nordeste dentro do contexto brasileiro. Literariamente, o Sertão constitui a inspiração, a matéria prima de duas obras que formam as arquitraves da nacionalidade brasileira: Os Sertões e Grande Sertão: Veredas. São os marcos de posse, as bandeiras que indicam a presença brasileira na terra que nos era quase incógnita: o da expressão literária de validez universal. Universal porque captam um momento de cristalização da vida social e espiritual de um agrupamento humano, mas sobretudo por refletirem o próprio gênio de um povo.

Como uma espécie de Ilíada e de Odisséia tropicais, esses grandes epos nacionais brotam de um solo comum e complementam-se: à maestria da profunda meditação social, erudita e lógica de Euclides da Cunha se une, através da ourivesaria do estilo, a profunda especulação metafísica de Guimarães Rosa: o Real completado pelo Transcendente. Ultrapassando a Física dos jagunços, do fanatismo religioso, das lutas entre formas modernas e anacrônicas de sociedades, eclode a plenitude da Metafísica do Sertão vislumbrado como alegoria do Mundo, do Jagunço como arquétipo da Condição Humana e do símbolo com que termina esse esplêndido afresco: o da Vida como sendo uma Travessia, uma Evolução Espiritual do Indivíduo como no Bildungsroman alemão. Uma travessia que partilha dos elementos naturais, refletindo sua argila indômita, ardilosa, monstruosa e sublime ao mesmo tempo – o caos das águas caudalosas do Rio São Francisco, o frescor sereno dos verdes buritis, a seca desoladora e calcinante, até a Nêmesis final. Mas principalmente uma travessia mística que partindo do regional brasileiro atinge o Universal, uma Travessia do Humano para o Divino: do Jagunço Riobaldo, do Mendigo, da Prostituta Nhorinhá e do bravo Cavaleiro Medeiro Vaz para o Cristo, final e suprema Travessia.

Às tentativas de conceder uma entrevista, o autor de Corpo de Baile esquivava-se com discreção mineira, argumentando com um espanto que desarmou sempre os menos insistentes.

“Entrevistar-me? Por que não entrevistam o Miguilim, o Manuelzão?”

Variavam as armas da sua tenaz resistência: seria inútil tudo que um autor dissesse, pois tudo está contido na quintessência dos seus livros, o “miolo” que fica indelevelmente confiado às suas páginas. Para que ater-nos à “casca”, ao supérfluo, aos pormenores da sua vida, paixão e morte, exteriores à sua obra? Mas, argumentávamos de maneira diferente: se, de fato, de pouco ou nada serve sabermos que Guimarães Rosa é Embaixador, queremos ver um valor simbólico na sua designação justamente para Diretor do Departamento de Fronteiras. Pois para nós nenhum outro autor brasileiro paira tanto entre as fronteiras não demarcadas do Abstrato e do Concreto, do Real e do Absoluto. Perdido entre mapas de regiões inóspitas e desconhecidas das nossas fronteiras com as Guianas, com a Venezuela, esse escritor levanta em suas páginas a mapoteca da alma humana com seus meandros selvagens, oscilando entre o Bem e o Mal, o Demônio e a Redenção. Participando dessa indefinição, o que se sabe a seu respeito é impreciso, vago, circundado de mistério.

Há informação segura de que conhece vários idiomas obscuros e empoeirados como o hebraico, o sânscrito, o grego antigo. Não frequenta coquetéis, abomina a vidinha literária promocional, maledicente, estéril, inautêntica. Circundado pelo mar, no topo de uma colina-istmo no Posto Seis, em Copacabana, ele forja uma alquimia da palavra como os sábios medievais que buscavam a pedra filosofal incansavelmente.

A transcrição dos diálogos seguintes – um de três horas no Palácio da Rua Larga, outros telefônicos, outros interrompidos e retomados em vários lugares – atém-se, portanto, a um retrato interior do ser e do agir roseanos, em alguns de seus pontos essenciais: a renovação da linguagem, o sopro místico, a perspectiva social englobada na perspectiva mais ampla do humano e a onipresente busca de Deus.

Quando indagamos qual foi o impulso inicial que o levou a escrever, ele responde:

“Comecei a escrever por sentir saudades de Minas”.

Como no universo de Goethe, para Guimarães Rosa “Im Anfang war die Tat”, o Verbo se torna instrumento dinâmico, Ação. E como para Proust, essa Ação é a Evocação de um passado perdido, a predominância qualitativa de um passado superior sobre um presente menor. Estabelecido definitivamente no Rio de Janeiro, ele recria de suas reminiscências a magia do sertão do rio Urucúia, as povoações ribeirinhas do Rio do Chico, que é o nome íntimo e afetuoso que os pobres dão ao rio de seu santo, o poverello São Francisco. Mas a vontade de escrever já existia latente desde a infância:

“Desde menino eu brincava de escrever mentalmente. Durante minha permanência em Minas, no interior do Estado, eu acompanhava a passagem da boiada campos afora”.

A Linguagem

Foi explosiva, em 1946, no cenário da literatura brasileira a aparição sob tantos pontos de vista inédita do autor mineiro: às qualidades pouco brasileiras da erudição, da lenta elaboração, da imaginação criadora ele aliava uma magnífica expansão do vocabulário com neologismos de sua invenção, vozes populares, arcaismos de raízes clássicas da língua. Como se vê a seguir, porém, a sua linguagem, o seu inimitável stil nuovo é a confluência espontânea, inevitável mesmo, de forma e conteúdo, documentando a sua maneira inédita, polifórmica de sentir:

“Já se disse com frequência que estou ‘inaugurando uma língua brasileira’, quando na realidade estou é incorporando tudo o que há de bonito e de eficaz, desde o latim até o linguajar popular e o português arcaico. Aliás, a incompreensão da minha obra é imensa, chego a achar graça em alguns absurdos que dizem e escrevem sobre ela, alguns até cataloguei, tão singulares são. Há críticos que afirmam que eu invento palavras e para provar essa tese apontam justamente para palavras… clássicas, utilizadas pelos grandes escritores da língua, desde os tempos de Fernão Mendes Pinto. Por outro lado, recebo agora os recortes da crítica sobre os meus livros em Portugal, onde veem tendo muita repercussão; veja, lá proclamam que sou, ao contrário, … um clássico da língua! Aqui no Brasil o desconhecimento, a falta de base é tal que já se chegou a declarar que as minhas reminiscências de leituras clássicas me levavam a fazer meus personagens falar frequentemente no subjuntivo. Ora, a mais ligeira constatação dos fatos provaria que os habitantes da bacia do São Francisco falam habitualmente no subjuntivo, como Lampião também e como os seus contemporâneos. É lamentável!”

O erro é o de quererem catalogar um autor que não cabe em rótulos pré-concebidos ou seu… de ser ‘um por demais’ para uma literatura só, Guimarães Rosa? E no estrangeiro, onde sua obra vem colhendo magnífica adesão, principalmente na Itália e na Alemanha: as interpretações são melhores?

“Evidentemente, a interpretação crítica ultrapassa o limite das minhas cogitações, mas na Alemanha, na Itália, têm reconhecido coisas interessantes, importantíssimas a respeito do que escrevo”.

Na parte das vozes populares de Minas que você transcreve, longe de traçar uma “tipificação” cheia de “pitoresco”, acho que você mostra até que ponto a nossa linguagem diária citadina é pobremente funcional, como ela está negativamente cristalizada e prosaicamente secularizada. Como surgem as palavras para você? Que valor elas têm no seu texto?

“Você sabe, eu quis desde o início fugir ao lugar-comum. Quis captar a coisa viva, crescendo, mas não houve deliberação racional, as palavras saltam sobre a página por uma necessidade interior. Para mim a forma é decorrência do pensamento, está sempre subordinada ao conteúdo.

Quando eu percorria o interior dos Gerais, acompanhando a passagem de boiadas de uma cidade a outra, levava sempre comigo caderninhos presos por arame, amarrados com barbantes, que eu pendurava no botão da camisa durante as viagens. Com o passar da boiada e dos dias, as folhas se empoeiravam, impregnavam de suor de cavalo, verdes folhas, poeira, sangue de boi, tudo misturado. Eu tomava nota com grande rapidez, queria captar a coisa viva, irrepetivel e por isso passava logo a limpo, temendo não entender mais tarde as minhas anotações fulminantes.

Por exemplo: eu via um passarinho passar voando pelos ares. Cada pássaro voa de maneira diferente, eu queria pegar no papel aquele movimento dele, irrepetível e único. Mas essa “fixação do momentâneo”, como você a chama, não tem nada de intencionalmente “literário” quanto ao estilo, compreende? Eu não tenho nunca consciência de estar escrevendo um livro, que se adicionará a outros livros, integrando a literatura. Não. É mais uma espécie de cinema interior a que eu assisto: vou vendo e ouvindo e botando no papel. Naturalmente, tenho necessidade de ousadias com as palavras nessa transcrição quase cinematográfica de uma realidade. A palavra “estapafrouxo”, descrevendo o modo como um tucano pula no ar, é para mim insubstituível, indica com a coisa brota espontânea”.

Na sua trajetória estilística nota-se um despojamento, um desbastamento crescente, para chegar à essencialidade absoluta. Seus últimos contos, Primeiras Histórias são já quase aforismas, misteriosas parábolas. Atualmente, você me contou que escreve contos de apenas duas páginas, não é um extremo quase de concisão?

“De fato, nesse jornalzinho médico publicado em todo o Brasil pela Sydney Ross, ou seja, pelo”capital colonizador”, acrescenta com deleitada ironia, sou obrigado a um despojamento tremendo. Os contos não podem ser telegráficos, no entanto têm que ter vitamina, riqueza, para caber nesse leito de Procusto. Como não quero renunciar a nada, então cada letra tem que ser pesada. Mas, naturalmente, como tomo notas de coisas há muitos anos, percebo que coisas, frases que anotei há muito tempo já não me servem mais, então as jogo fora. Quer dizer que já vejo as coisas de outra maneira. Suponho que essas escolhas, essas mutações se reflitam na obra, no estilo, na concisão, na sua concepção talvez. Mas eu não saberia dizer nada sobre esse assunto, creia, porque não penso nunca sobre o que escrevo, tudo me sai espontaneamente. Às vezes nem tenho plena consciência de que estou escrevendo, tudo flui como se eu fosse um instrumento. Sim, agora estou tendendo para o conto, para uma forma cada vez mais severa e sucinta, tendo para uma forma cada vez mais impessoal do escrever. Por isso seria inútil buscar minhas “filiações”, meus “modelos” literários. Como aquele Papa do Renascimento, meu lema é “Nusquam adhereo”, tudo me influencia e nada, tenho adesão a tudo e a nada… Sabe? Tenho surpresas também, como quando um tradutor por exemplo substitui uma palavra de meu texto por outra. Fico pensando se ele não abriu novas perspectivas, se ele não estava mais próximo da verdade naquele momento do que eu, na minha tentativa de reproduzir aquele livro que já está inteiramente escrito em algum lugar e que me cumpre somente transcrever? É dessa soma de descobertas que resultará talvez a visão global. Você se recorda daquela lenda da Índia: um pega o elefante pela tromba, outro pela perna etc… Os equívocos são inumeráveis, mas não respondo, não entro em polêmica, não tenho tempo para discutir. Quando estamos produzindo alguma coisa os outros nos provocam inconscientemente para que abandonemos o que estamos fazendo… De modo que vou tocando…”

Imagino as sandices que dirão também os que defendem uma literatura fanática e esterilmente panfletária, criando uma nova “alienação”: a alienação com relação à Lietratura e à sua índole total, que inclui e transcende o meramente social…

“O social! O social! Como eu já disse tantas vezes, quando escrevo, as reflexões sociais surgem sem eu pensar, são uma necessidade e, por refletirem um aspecto da realidade, elas me tocam. Mas no fundo eu sou é místico, não acredito nas”soluções” meramente “sociais”, pois se eu não acredito nem na realidade! Para mim o problema central, crucial, urgente é o da Salvação do Homem. Como diz o Riobaldo em Grande Sertão: Veredas: “A oração é capaz de salvar-nos da loucura”. É isso que me interessa! A loucura é a condição humana, o homem distante de Deus. A loucura é julgar que a alma é salva quando nós morremos, quando o que importa é sair agora da loucura, do ciclo de nascimentos e transmigrações da roda da vida. A adesão social exclusiva é uma fuga, é uma alienação com relação à tarefa espiritual, muito mais transcendente. Ver só o fato social é muito mais cômodo do que pensar e pôr ordem dentro do espírito do homem. Para mim a solução importante, a reforma importante é religiosa, como dizia Simone Weil: ‘A Revolução é o ópio do povo’, que desvia a atenção do ser humano do problema-chave que é o seu estar-no-mundo, como afirma Berdiaev.

Evidentemente que tenho também um pensamento político, uma viva consciênia social. Sinto solidariedade humana, sou contra a usurpação dos direitos de outros em benefício de alguns. Reconheço que há grandes injustiças e uma força corruptora terrível, como a desse diretor da Mannesmann, que ganhava oito milhoões por mês: isso é inacreditável! Olhe: pessoalmente, eu, como sou muito frugal, sóbrio, me sentiria bem num regime genuinamente austero, sincero, que banisse as injustiças sociais sem substituí-las por outras”.

Com agudeza, Guimarães Rosa não cinde os elementos componentes da vida, mas vê a sua oculta totalidade, a sua inter-penetração:

“Eu vislumbro claramente o valor do indivíduo e a sua responsabilidade coletiva – somos responsáveis por nós mesmos e pelos outros também, por todos. É como se nós fôssemos dedos metidos numa tábua que tivesse vários buracos. Muitas pessoas só vêm o lado dos dedos, não sabem o que está por trás da tábua, não sabem que todos os dedos têm raízes na mesma mão. Não se poderia maltratar um deles sem maltratar todos os outros, porque a dor se reflete globalmente. No entanto, insisto: minha tarefa não é política nem social, estou mais adiante. Não invoco a torre de marfim para o escritor, mas sim uma torre de depuração, de autodomínio, para se evitar lançar os leitores na nossa dúvida, no nosso caos interior. Esse é que é, para mim, o verdadeiro Engajamento da Literatura; o escritor quer consciente ou inconscientemente transformar os outros. O engajamento alto e verdadeiro é o acelerar a evolução espiritual do homem.”

A literatura e o divenire

Então, para você, não só “viver é perigoso”, mas escrever também?

“Sim, porque implica uma tremenda responsabilidade!

Você sabe que Kafka respondeu uma vez que o escrever conduz à prece.”

Você atribui então à Literatura um papel na caminhada mística do homem, “o seu divenire espiritual?

“Um papel fundamental! Ela contribui para o crescimento do nosso espírito. Repare: nós na vida temos que passar de formas mais espessas e brutas para formas mais sutís, liberar-nos dos apetites, do lado demoníaco, destruidor. A Literatura sutiliza a vida. Tem uma função mística porque retira do caos, da contradição e do imediatismo da vida humana uma condensação (como em alemão: dichten, condensar ou escrever no sentido poético ou literário). Ler, assim como ver televião, ir ao cinema, em graus diferentes, é tudo uma forma de retirar o indivíduo da corrente meramente sensorial, limitada. Portanto, ler já é relativamente uma vitória do espírito.”

Mas o sensorial, por emanar da Origem de que se distanciou – Deus, não pode também conter, imanente, o elemento divino, participando da sua Beleza transcendente?

“Só quando refletir a sua origem mais alta, isto é: quando a matéria de que uma coisa for feita revelar-se transparente.”

A Unio mystica

Você parece reiterar a intenção de Milton ao escrever o Paraíso Perdido como uma forma de “justificar os meios do Senhor para com o homem”. O seu misticismo pessoal, sincrético, engloba princípios budistas de karma, metempsicose, além de um Maniqueísmo matizadíssimo do Bem e do Mal. Para você há uma predestinação, uma pré-ordenação do destino dos homens, não? Mas o nosso livre arbítrio não pode alterar, como princípio dinâmco, a fatalidade, rompendo a distância que separa Criador e Criatura?

“Eu sou essencialmente religioso. Posso ser reconstutído através de frases do Rig-Veda, de Platão, da Bíblia, dos Upanishads. Busco sempre Deus, clamo por Ele há um ano, dez anos, sempre. Vivo mais ou menos de intuições religiosas. Mas se a religião sempre me acompanhou na vida, ela também sofreu uma lenta evolução: a princípio eu achava que ela era uma espécie de magia, um auxílio na obtenção de metas burguesas como conseguir um bom emprego, vencer obstáculos etc. Atualmente creio que a vida é uma travessia, uma fase, uma obrigação. Se ela existisse só para ser”gozada”, “aproveitada” como se pensa grosseiramente, ela seria horrorosa, imunda, destrutiva. Pois as coisas más estão por detrás das portas, à espera da gente. Mas, ao contrário, se nós tomamos a vida como uma matéria a ser dominada ou superada, como uma oportunidade de treinamento espiritual, então ela é fabulosa, transcendente. E ela passa a exigir de nós um desapego crescente, budista na sua severidade. Você conhece aquela teoria religiosa relatada por Ouspenski? Segundo esse autor nós voltaríamos sempre a ter a mesma vida, como um disco que se repete, ou como se nós fôssemos um rascunho daquilo que deveríamos ser de verdade.”

Mas com a possibilidade de progredir paulatinamente?

“Aí é que é o caso: cada vez que você faz algo positivo, você se domina, supera a si mesmo: seja por uma renúncia, um ato de fé, de amor, de coragem, você vence o peso da fatalidade telúrica, do carnal, do material, do”cavalo preto” que nos chama para a terra e para o Demônio. Você altera a sua vida, melhora, ao passo que a cada vez que você cede, você retrogride. Como reza aquele aforisma hindu: ‘Mata a ambição, mas trabalha commo se tu fosses ambicioso”. Não devemos, porém, querer colher os resultados das nossas ações de autosuperação. Nem nos queixarmos das dificuldades, pois como ensina o Karma Yoga: ’Se não houver dificuldades, é preciso inventá-las com urgência’. Ou perguntar ainda: mas e se as dificuldades fossem o próprio Caminho?”

Então como diz o Miguilim, é preciso reconhecer que “no começo de tudo há um erro”?

“Mas não só no sentido místico do nosso afastamento de Deus. Na vida real verificamos que ¾ dos poetas são inimigos da poesia, ¾ dos religiosos são inimigos da Religião, não têm inquietação religiosa legítima, entram para a vida eclesiástica como se entrassem para uma organização. No plano da filosofia prevalece a mesma inautenticidade. Os professores e”exegetas” modernos mascaram e massacram os pensadores antigos. Creem por acaso que os filósofos filosofavam como quem joga xadrês, como mero pensamento para aguçar a mente? Os Antigos não dormiam de touca! Se nós lermos nas fontes originais os textos, veremos que fomos traídos pelos professores de filosofia e por “exegetas” que só consideram a Filosofia como um prazer intelectual. Mas na realidade o Estoicismo, o Epicurismo etc foram tentativas magníficas, soberbas de vencer a Angústia humana. E o que vemos em torno a nós? O homem comum não cuida de filosofias e os “mestres”, já vimos, ocupam-se com estéreis “ludi intelelectualis”. Os grandes pensadores acenderam tochas para iluminar a ignorância do homem, passando cautelosamente, de mão em mão, de geração em geração, esse facho luminoso de sabedoria, para que tudo não recaísse nas trevas, perto do abismo. Você veja então como tudo está errado: as grandes conquistas do espírito humano é que deviam ser celebradas por todas as nações, em vez de suas datas nacionais, que não significam nada. Por exemplo: a data que os gregos incluíram a teoria da Nêmesis deveria ser festejada amplamente ou o dia, por exemplo, em que Cristo formulou e provou a teoria da Desrealidade da Realidade Extática.”

?!?

“Explico-me: É preciso ler os Evangelhos com absoluta atenção, inclusive com acuidade intelectual e legítima devoção espiritual. Se necessário, fazer até estudos semânticos, compreendendo e comparando os textos grego e latino das traduções. Porque os Evangelhos ensinam leis espirituais como um manual de física ensina leis físicas: propriedades da eletricidade, lei da gravidade etc. Mas as leis espirituais, formuladas pelos Evangelhos, são ainda mais atuais hoje em dia, após o advento da Física Atômica. É, sim: são tremendas, são verdadeiros terremotos as parábolas e exortações do Cristo: ‘Pede e te será dado’,”Se orardes com fé, obtereis’. São leis mais fortes que as formuladas pela psicologia, são tão fortes que as Igrejas instituídas temeram-nas e, como se faz com o rádium, envolvendo-o num envoltório de chumbo, diminuíram o efeito das parábolas de Cristo, que consideram perigosas, e transformaram a Fé na fé num mero sistema, num dogma, mas Cristo a formulou como a Fé criadora por excelência. Veja: em Cristo há duas constantes, através de toda a sua trajetória na terra Ele insiste no poder criador da Fé e do Amor. São princípios nada acidentais, que retornam várias vozes na Bíblia sob formas diversas, mas coerentemente, sempre.

Não é apavorante constatar que os ensinamentos do Cristo destroem a realidade sensorial ou mehor: provam a Desrealidade da Realidade Extática, substituindo-a por uma ação espiritual dinâmica, transformadora, criadora, eterna?”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1965) 2022. “Guimarães Rosa: o sertão, o mundo e a travessia. Depoimentos e conversas de LGR com Guimarães Rosa .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.