A tradução de As Flores do Mal de Baudelaire

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1985/12/07. Aguardando revisão.

À primeira vista pode parecer uma brincadeira, mas os fatos comprovam.

A verdadeira Torre de Babel começa e continua e seu nome é tradução. Se as traduções de obras de literatura em prosa dão sempre apenas o desenho do enredo, dos personagens, das intenções do autor, toda a música da sábia e delicada estrutura de vogais e consoantes do poema se perde. A cor e o inimitável perfume de autenticidade se evapora fora da língua original em que contos, romances, ensaios foram originalmente concebidos. A propósito da magnífica série de autores russos – Dostoievsky, Tolstoy, Tchekov, Turgeniev, Gogol e outros -, a suprema romancista e crítica de literatura inglesa, Virgínia Woolf, costumava dizer, com muita graça e propriedade, que eles pareciam pessoas que tinham sobrevivido a um desastre de trens. Podia-se perceber muito através de suas roupas, malas, objetos, gestos – essencial, as palavras e seu significado, porém, ficavam incompreensíveis para quetem tentasse ouvi-los em sua língua materna.

Se isto é uma verdade irrecusável, o que dizer então da literatura escrita em versos, o que dizer da Poesia, com P maiúsculo, que é a própria alquimia do verbo? A métrica, o ritmo (que existem mesmo quando são versos livres), a rima (se existir consiste em uma dificuldade a mais e realmente insuperável) – tudo luta contra o trdutor e, infelizmente, o vence. Eu me arriscaria a dizer, temerariamente: o vence sempre.

Esse pequeno intróito serve apenas para ressaltar que nenhum dos poucos, mas realmente excelentes tradutores brasileiros – Milton Person, Jâner Cristaldo, Mário Quintana, Lia Luft, Herbet Caro, os irmãos Campos e outros, que seria difícil recordar aqui, mas que não aumentam a lista para além de dez ou doze nomes – realizou excelentes trabalhos. No setor da prosa, Hemingway, Gunter Grass, Thomas Mann, Herbert Broch, Ernesto Sábato foram, dentro do humanamente possível, otimamente vertidos para o português.

Ivan Junqueira se destaca da esmagadora maioria dos tradutores brasileiros pela sua profunda seriedade, pela sua erudição sem pedantismo. Ele não é o auto-ungido Nacrciso acometido de astigmatismo, classificação de certos mandarins herméticos e nem por isso tão perfeitos assim e que se arrogam a presunção de “dominar” certos autores estrangeiros, conhecedores únicos que são de seus mais íntimos segredos.

Ao contrário: Ivan Junqueira é das raras pessoas sérias no Brasil a dedicar ensaios e traduções a Eliot, a Baudelaire e outros autores. Merece todo o nosso respeito e a nossa gratidão. E quem, mesquinhamente, não se comoveria com a sua sincera humildade, primeiro requisito indispensável para se atingir a sabedoria, até mesmo no campo da tradução literária?

A Editor Nova Fronteira, que se tem notabilizado pelo desleixo de suas traduções de grandes autores como Robert Musil, por exemplo, aqui se defronta com uma empreitada profunda: a que Ivan Junqueira se propôs ao traduzir e prefaciar Les Fleurs du Mal de Baudelaire este mês.

Que Ivan Junqueira tenha obtido uma “vitória de Pirro” – isto é, aquela cuja conquista não se justifica pelas perdas avassaladoras que exige -, não deve desanimá-lo. Seu esforço é extraordinário, mas a tradução da poesia é como uma dublagem de um grande filme: cria a voz do intérprete e sem querer mutila a perfeição intrínseca da obra.

Que eu saiba a única forma aproximadamente possível de se dar ao leitor uma ideia do que é um poema é seguir a fórmula usada no volume The Poem Itself (Editora Pelican), de Stanley Burnshaw. Qual é esse método? O de reproduzir na língua original (quando se trata de uma língua como o russo, que não usa o nosso alfabeto, reproduzir, com as nossas letras, os sons originais) para que o leitor saiba de que estrutura sônica e harmônica se trata, mesmo que não compreenda as palavras da língua estrangeira. Em seguida, Stanley Burnshaw explica sucintamente as intenções do poema, traduzindo-o em prosa mas chamando a atenção do leitor para as riquezas contidas no original. Fora disso, não me recordo de tradução nenhuma que se possa equiparar ao poema original: há adaptações, transmutações poéticas, no máximo como quando o tradutor está numa faixa de “transe” poético afim à do autor.

Em compensação, Ivan Junqueira pode, com justiça, se orgulhar da documentada e majoritariamente acertada, a meu ver, análise que faz de A Arte de Baudelaire como introdução às suas traduções. Esse seu longo prefácio como que esgota todos os aspectos da personalidade e da criação poética de Baudelaire. Apresenta o gênio da poesia moderna francesa para quem já o admira e para quem o vai ler pela primeira vez. E tudo sem nenhum propósito enfadonhamente didático nem a atitude risível de quem se considera “dono exclusivo” de Baudelaire nestas auriverdes plagas incultas e belas.

A tragédia que une Baudelaire a outro legítimo grande poeta moderno, Fernando Pessoa, é ressaltada: o trauma hamletiano de a mãe ter se casado novamente depois de pouco tempo de viuvez. Sabiamente, Ivan Junqueira não coloca Baudelaire no sofá de Freud e tenta extirpar-lhe confissões de complexos edipianos, de desejos incestuosos sufocados, etc. etc. Insiste na solidão e na dor atrozes que sempre selaram a vida do poeta; dá ênfase à incompreensão da hipócrita sociedade que o condenou por “atentado à moral e aos bons costumes”. Sublinha o papel único que Baudelaire desempenhou como finíssimo crítico de artes plásticas e “descobridor” de Delacroix, Manet, Daumier, além de ter sido provavelmente o mais sutil e sensível admirador da música, designada como “nova” ou “chocante” à sua época, de Wagner.

O tradutor e ensaísta retoma a aceitação, sancionada por muitos críticos, do exílio que Baudelaire reconhecia em sua vida e na de todos os seres humanos: ele e todos nós fomos expulsos do Paraíso e somos vítimas da Queda (que sempre escrevia com P e Q maiúsculos) e do pecado original. Seria Baudelaire um cristão com angústias dignas de um Pascal? Ou mais provavelmente um satanista, que declarava em mais de um poema que somos meros fantoches cujos cordeis são movidos pelo Diabo?

Como não podia deixar de ser nessa análise percuciente e rigorosa, Ivan Junqueira especifica o inconformismo desse major poet, verdadeiro Pai, se podemos dizer assim, da Trindade Suprema da poesia moderna francesa: Rimbaud pela imaginação e Mallarmé pelo rigor formal. Esse entranhado inconformismo partia, em primeiro lugar, do horror que sentia pela hipocrisia da sociedade em que vivia: um de seus mais famosos poemas é dirigido a “ti, hipócrita, meu semelhante, meu irmão”, o leitor. Depois, esse inconformismo se exprimia pelo cultivo extremo de uma aparência desinada ao mesmo tempo a chicotear os bem-pensantes e a cultivar uma estética antiburguesa, anticonvencional. Baudelaire é um dandy por vocação e por desprezo ao que ele chamava de “rebotalho”, de “refugo”, de “ralé” e “gentalha”: a massa. Por isso pintava os cabelos de verde, quando isso lhe agradava. E, para horror dos racistas, viveu com uma prostituta mulata, a sua “Vênus negra”, a quem dedicou alguns dos mais perfeitos poemas de amor, volúpia, paixão e, paradoxalmente, ascese espiritual, de qualquer idioma ocidental.

Arrepiem-se todos os que se quiserem arrepiar: Baudelaire era e foi sempre, coerentemente, um “almofadinha”, termo detestável que em português longuinquamente traduz a ideia de dandy, alguém que cuidava minuciosamente da higiene, das roupas e da elegância irrepreensível e planejada como uma bofetada para os conservadores e falsos “moralistas” que o condenavam. Era e foi sempre, com gigantesco desprezo, um estoico diante do sofrimento e um aristocrata, que sentia nojo do mau gosto burguês, asco do que ele achava que era pieguismo romântico, ou seja, o próprio romantismo do tipo choramingas.

No prefácio há dados interessantes sobre as outras influências variadas que teriam moldado o sublime cinzeladíssimo estilo baudelairiano, além da inspiração matriz arquiconhecida: a do norte-americano Edgar Allan Poe. O autor de Flores do Mal teria então se apoiado nos poetas latinos da era da decadência – Marcial, Juvenal, Petrônio -, nos poetas da escola Pléiade – Rosard, du Belay, Belleau – a eles acrescentando Boilleau, Racine, até Tertuliano, escritores cristãos, Santo Agostinho e o místico sueco Swendenborg, o originalíssimo contista alemão E. T. A. Hoffmann e inúmeros poetas ingleses, de Coleridge e De Quincey.

Excelentes esclarecimentos. No entanto, discordo do ensaísta quando ele diminui o papel central que Poe exerceu sobre Baudelaire que, deslumbrado com o autor norte-americano de contos de horror e dos Poetic Principles traduziu avidamente seus trabalhos. Em escritos como Mellonta Tauta e Monos et Uma Edgar Allan Poe, use-se a palavra justa, é o modelo do qual Baudelaire não se afasta um milímetro. Não por imitação servil, mas por aderir inteiramente às crenças que Poe revela nessas obras. São crenças que só o fanatismo ideológico poderia classificar de “fascistóides”. Poe (e com ele Baudelaire) se insurge veementemente contra a democracia (como Flaubert também) o reino da quantidade ignara sobre a qualidade rarefeita. Poe rejeita a mera ideia de igualdade universal, antecipando-se a Freud, que no final de sua vida concluíra que “90 % da humanidade é feita de rebotalho”, como o cita seu biógrafo inglês Ernest Jones. Edgar Allan Poe desconfiava apavorado, da ciência e de seus malefícios. Sobretudo abominava a massa, o “progresso”, a ausência de um sistema hierárquico em tudo: no governo, na cultura, na maneira de viver. Até o dandismo de Poe, Baudelaire cultivou – insista-se: não plagiou! – commo forma de ir contra a corrente da maioria que varria sua sórdida hipocrisia e seus pecados para baixo de um tênue tapete. Além disso, não foi Poe quem lançou as bases do poema como sendo uma criatura autônoma, lúdica, uma perseguição do Belo, como Keats já quisera que o poema fosse e trouxesse prazer ao leitor, como Roland Barthes já exigia da leitura? E não foi Poe quem desdenhou do poema longo, do poema retórico, do poema didático, até da sátira commo tema indigno da Poesia, preceitos que Baudelaire seguiu à risca, por sentir total empatia por eles?

Justíssimo é que se afirme que Baudelaire sentia a angústia que foi o aguilhão que o atormentou durante toda a sua vida como uma condenação, de origem judaico-cristã: a angústia se deriva da Queda, do pecaso original, da expulsão do Éden e tais ideias lhe vieram da leitura de Joseph de Maistre mas também de Poe. Igualmente justa é a asserção de que a tortura semireligiosa do poeta francês difere da serenidade altaneira do poeta e contista norte-americano. Estava mais próximo este, da imutabilidade que, segundo o grande poeta irlandês Yeats, era o objetivo característico da Grande Arte – a stasis, a eternidade, o desejo que tal estado não se modifique nunca, tal a perfeição que com ele se atingiu.

Um juízo apressado jogaria Baudelaire no rol dos anti-Rousseau. Ele nega com escárnio que sejamos naturalmente bons. Ao contrário, a virtude é que é artificial, o ser humano é “naturalmente depravado”. Adeus bondade natural humana que a civilização e as desigualdades sociais pervertem, segundo Rousseau. Mas tais atitudes contrárias ao espírito de nossa época tornam Baudelaire detestável?

Nunca, de forma alguma: Baudelaire ilude: era múltiplo. Quem antes dele viu a miséria nas aglomerações das grandes cidades como na Paris de seu tempo? Quem antes dele teve uma consciência mais aguda do mal que a ciência, em mãos malignas, pode trazer, antecipando-se décadas a Oppenheimer, ao abandonar o projeto da bomba atômica norte-americano por ser “uma obra do Demônio” e tentar, em vão, com Einstein, advertir o presidente dos EUA da onipotência das armas atômicas como assassinato e suicídio da raça humana? Quem, mais lucidamente do que ele, viu claramente que o espírito pequeno-burguês conduziria ao totalitarismo que nada mais é do que a mentalidade pequeno-burguesa, puritana, hipócrita, materialista, invejosa, hostil aos demais seres humanos e que aspira ao Partido Único e à liderança de um Hitler ou de um Stalin? Ou seja: diagnosticou que a mentalidade pequeno-burguesa é o mal guindado do poder? Finalmente, não foi Baudelaire, após ler o ocultista Eliphas Lévi e o místico Swendenborg, que se manteve um idealista, acreditando que a matéria é apenas uma versão deformada do espírito?

Naturalmente, estas soberbas Flores do Mal são clássicas na forma. Seus versos são intencionalmente tradicionais na métrica: 12 sílabas (alexandrinos), têm rima e foram limados incansavelmente pelo artista durante toda a sua dolorosa existência. Mas quanto ao variadíssimo conteúdo, Baudelaire, como discerniu exatamente Rimbaud, foi o primeiro voyant, o primeiro vidente da poesia moderna. O sofrimento, a esperança frustrada, a beleza, o amor sensual, o pavor da descrição serena de uma carniça que se decompõe ao sol, a litania de que com cada respiração nos aproximamos mais e mais, através da morte, do Inferno que nos espera – há uma infinidade inumerável de posições de Baudelaire diante do caleidoscópio da vida numa metrópole moderna.

Teria ele sido um crente, um cristão apesar de seu satanismo e desesperado pessimismo? Ivan Junqueira e muitos outros creem que sim. Ou o culto da beleza efêmera, a melancolia metafísica que ele suga da miserável condição humana escondem um cristianismo recôndito, nada ortodoxo, mas nem por isso menos admirável e agônico? Inclio-me a crer que sim: o próprio poeta sublime entre os mais sublimes poetas da era contemporânea não confessava que concentrara nesse único livro todo o seu ódio, toda a sua ternura, todo o seu coração e toda a sua “religião” travestida (grifo meu) por inteiro?

Se estas traduções para o português são o fruto árduo de um trabalho ou de um ritual dedicado ao gênio de Baudelaire e não conseguem, como ninguém conseguiria, traduzir o seu colorido, a sua musicalidade, qualquer comparação entre o original e a tradução nesta edição preciosamente bilíngue atesta. Desde o primeiro poema, “Benediction”, se reconhece a quadradura do círculo: a impossibilidade de se recriar a genialidade talvez única de Baudelaire em seu esplendor formal e meditativo.

Miríades de exemplos fiquem reduzidos a estes poucos que posso citar, apenas por falta de espaço: ce monstre rabougri (“esse monstro mirrado”, literalmente) se transforma, infelizmente, em português em “esse monstro asqueroso”, sur l’instrument maudit (“sobre o instrumento maldito”) vira “sobre o instrumento vil”, ao passo que o verso em português “E este mau ramo hei de torcer de ponta a ponta”, trai uma retórica que Baudelaire justamente fazia questão de evitar, intransigentemente, sempre. Eu diria ainda que o poeta francês procura uma alternância de termos intencionalmente vulgares e místicos que na tradução em português perdem seja seu rigor seja suas secretas analogias esotéricas. Plaisirs éphémères (“prazeres efêmeros”) alude ao tempo, que corrói toda a beleza e a ilusão da carne e não acontece o mesmo com sua tradução para “prazeres mais ardentes”, ligada muito mais à sensualidade do que à fugacidade já quase barroca do Eclesiastes a proclamar que “tudo é vaidade” e ao sepultamento do corpo, “pó que ao pó retorna”.

Com o mais profundo respeito e sem nenhuma intenção irônica, malévola, essa edição dá ao leitor, creio, uma dublagem do original: bem-intencionadíssima tentativa de exprimir o inefável, de reduzir uma sinfonia a um arranjo para gaita ou solo de piano. É pena. A admiração de Ivan Junqueira pela grande poesia de Baudelaire, sua humílima posição assumida com comovente modéstia não bastam para que dessa veneração justíssima resultem boas traduções – hélas!

Que lhe fique o consolo, se consolo for, de que Goethe nunca foi bem traduzido em português. Que as traduções românticas alemãs de Shakespeare nada têm de shakespereanas. Que nem Nabokov conseguiu traduzir convincentemente Puchkin. Que Guimarães Rosa foi vilmente massacrado pelo inglês capenga de Miss Harriet de Onis, que transformou o soberbo painel de Grande Sertão: Veredas em uma história de faroeste em Mato Grosso, com centenas de palavras que ela não entendia simplesmente eliminadas.

Baudelaire inaugurou o sentimento poético moderno e a esquizofrenia do “horror simpático”, por isso não pode causar estranheza que ele não possa ter seguidores fiéis em qualquer língua, nem na devoção de Stefan George, na Alemanha, nem na de Ivan Junqueira, no Brasil. Nem na de muitos outros que se aventuraram a repetir o irrepetível. A oferenda votiva dessa tradução permanece moco um maço de flores ou uma vela acessa no altar dedicado a Baudelaire: seu gênio por certo percebe a pureza do labor e do gesto.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “A tradução de As Flores do Mal de Baudelaire .” In Testemunhos Literários do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 3. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.