O Nobel ao absurdo

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Veja, 1969/10/29. Aguardando revisão.

À beira do colapso, um velho artista, Krapp, escuta a gravação de sua voz de trinta anos atrás. Há palavras que ele não entende mais, precisa procurar no dicionário. Só compreende alguns fragmentos de sua voz distante que lhe fala, na fita gravada, de um lago, uma barca, um casal de namorados. Era o amor que ele sacrificara à sua “carreira brilhante”, à sua “arte” reduzida agora à solidão de um velho doente. Uma mulher, enterrada na areia até o basto, monologa sobre coisas sem importância, “um dia de sobrevivência é um belo dia”, recorda-se dos tempos felizes do passado antes que a areia a cubra. O autor destes textos difíceis - Krapp’s Last Tape e Happy Days - é o vencedor do Prêmio Nobel deste ano, o irlandês Samuel Beckett, 63 anos, residente há trinta anos na França, depois de declarar em 1940: “Prefiro a França em guerra do que a Irlanda em paz”. Sua obra, escrita em francês e inglês, foi ressaltada pela Academia de Estocolmo, por “sua elevação adquirida pelo estudo da solidão do homem de nossos dias, em formas novas da novela e do teatro”. Nunca a Academia sueca ousara consagrar um autor tão difícil, tão impermeável ao grande público. Conhecido apenas por seu teatro - e no Brasil por Esperando Godot, ultima peça encenada por Cacilda Becker, antes de seu falecimento este ano, em São Paulo, Beckett, até o fim da semana passada, não tinha sido encontrado para receber a notícia do Prêmio e de cerca de 350 milhões de cruzeiros velhos que o acompanham.

Seu editor parisiense não sabia nem onde se encontrava o dramaturgo arredio, em viagem com sua mulher francesa, Susanna, pela África do Norte, depois de longos meses de contato exclusivo com “uma dúzia de amigos dignos de confiança”. O Prêmio Nobel já teve escritores profundamente renovadores como Faulkner e Thomas Mann, mas nunca consagrara um novelista que anunciou o fim da novela e um autor que fundou o antiteatro: o teatro do absurdo. Desde cedo, o autor de “Murphy” opusera à literatura fácil, compreensível, um texto sumamente complexo, sua “guerra pessoal” com as palavras.

A sua obra inteira pode ser compreendida como uma negação gradual e crescente: qualquer tentativa de comunicação é “impossível e não passa de vulgaridade simiesca ou torna-se horrivelmente cômica como a loucura que dialoga com a mobília”. A arte “é a apoteose da solidão. Não há comunicação porque não há meios de comunicação”. O teatro “e um embuste grotesco”, uma “mesquinha vulgaridade, produto de uma literatura de anotações”. O amor é “uma função da tristeza do homem”, assim como a amizade “é uma função da sua covardia” e a religião “um imenso tédio”. Seus personagens estão sempre imersos numa enxurrada de palavras e em situações extremas: mendigos, vagabundos, mutilados, marginalizados não só da chamada sociedade de consumo como de qualquer sociedade, de qualquer ideologia política.

Beckett insiste na miséria duplamente trágica do ser humano: a miséria física e a espiritual. Com horror puritano, ele enumera todas as formas de decadência do corpo humano: as doenças, a velhice, os maus cheiros, os achaques, os excrementos, “a fricção de epidermes” do sexo. A lama, os vermes, a escuridão são o elemento mais constante onde se agitam seus personagens solitários e sem esperança, que sonham com o suicídio. “Sentir-me realmente incapacitado de me mexer, isso sim deve ser formidável!”, exclama, sonhador, um deles. “Meu espírito se desfaz só de pensar nisso. E sofrer também de uma afasia completa! E talvez surdez total! E quem sabe uma paralisia da retina! E muito provavelmente a perda da memória! E só um pouquinho de cérebro ainda intato para rejubilar-me! E poder temer a morte como a ameaça de um novo nascimento!” Essa mesma separação voluntária da realidade imediata o levou a abandonar uma promissora carreira universitária, em 1930. Afastado da Irlanda natal (que, como seu compatriota James Joyce, considera “beata e conformista”), Beckett abandona as universidades, depois de estudos especializados em literatura italiana e francesa e de ter jogado bem uma forma de futebol inglês, o rubber, conforme consta no boletim de seu ginásio: “bom jogador ... seu ataque pode ser melhorado”.

A única luz que surge em seus dramas e em seus romances está sempre ligada a uma infância feliz: “Colinas elevam-se, ternamente, azuladas, acima da planície confusa. Foi lá seu nascimento, numa bela casa, de bons pais. Lá, onde há névoa e a aliaga, de cálidas flores de ouro, chamadas também de gestas”. Da família protestante fica a recordação obsessiva da mãe, quacre devota, que faz os filhos cantarem hinos e rezarem ajoelhados. “Mas eu não tenho nenhum sentimento religioso”, declara o homem alto, de olhos azuis e penetrantes. “Só um dia senti uma emoção religiosa: durante a minha primeira comunhão. Nada mais. Minha mãe era profundamente religiosa, meu irmão, moderadamente, meu pai não tinha religião. Minha família era protestante, mas, para mim, era tudo uma maçada, deixei então.” Para o crítico Martin Esslin, Beckett ressente-se ainda hoje de ter sido arrancado à morna placenta intrauterina. Seus personagens são todos indecisos, tímidos, amedrontados, que vivem, impassíveis, em meio a latas de lixo e dejetos. O jovem ginasiano, ótimo aluno e excelente desportista, emerge poucas vezes de seu isolamento angustiado do mundo. Tem o encontro decisivo com Joyce em Paris, em 1928; atua na França ocupada pelas tropas nazistas como membro da Resistência; ou no seu refúgio no Sul da França, onde trabalha como lavrador numa fazenda miserável.

Como Joyce, Весkett passa a viver uma vida errante, de miséria, privações e dedicação integral à arte. Mas, ao passo que para o autor de Ulysses a arte é o triunfo sobre os azares da realidade, uma projeção intelectual e sensível para o futuro, além da mesquinhez do presente, para Beckett a arte é uma tentativa - inútil, como ele próprio admite - de expressar o beco sem saída da condição humana, “a negação irrecusável e irrefutável”. Querendo evitar, porém, a tentação da “literatura bem-feita”, ele prefere “a disciplina de um idioma estrangeiro, o francês”, como forma de repúdio à Irlanda e como fuga à facilidade de escrever no idioma materno, Contudo, o irlandês alterna a criação de obras em inglês e sua tradução em francês ou vice-versa, tendendo mais para a sonoridade do francês. Mas, em sua língua original ou em sua língua de adoção, Beckett evoca sempre a mesma figura em suas peças de teatro ou em seus romances: Molloy, Watt, Krapp, Malone são aspectos diferentes do mesmo homem expulso: expulso da vida e do morno ventre materno, única lembrança de felicidade passada. Na peça Eleutheria, a renúncia a qualquer obrigação social assume a forma mórbida da doença e da indiferença, como no conto A Metamorfose, de Kafka. Num palco dividido em duas partes, de um lado o herói jaz na cama, enquanto do outro lado, sua família discute seu caso, sem que os dois lados jamais troquem uma palavra. Sua recusa em aceder aos apelos da família em prol da procriação, da utilidade, dos sentimentos, da conversação inútil, assume a forma da inércia: no final da peça ele dá as costas ao público e encerra sua mímica do protesto ignorando a humanidade.

Na novela L’Innomable (O Inominável), um monólogo ininterrupto busca a desintegração do “eu” por meio das palavras: “É preciso então continuar, eu vou continuar, é preciso dizer palavras, enquanto as houver, até que elas me encontrem, até que elas me digam, estranha pena. Há uma completa desintegração. Nem Eu, nem Ter, nem Ser, nem nominativo, nem acusativo, nem verbo. Não há meio de continuar... No final da minha obra, só há o pó: o nomeável”. Em Fim do Jogo, numa esfera de espaço entre a terra e o mar, suspensos no tempo, Hamm, algoz cego e paralítico, tiraniza seus pais Nagg e Nell, enfiados em latas de lixo. De sua cadeira de rodas, Hamm torna um inferno a vida de Clov, seu filho adotivo, que, mutilado, não pode sentar-se. (Beckett utiliza na simbologia dos nomes a recordação dos espetáculos de vaudeville barato: Hamm em gíria significa mau ator, e Clov designa o clown.) Diálogos de ódio, palavras de temor e de ternura fingida, tudo vale para chegar ao fim da partida, do jogo incompreensível da crueldade do homem com o seu semelhante. Para alguns críticos, Beckett sintetizou nesta alegoria seu encontro com Joyce. Como relata Richard Ellmann em suas recordações desses não-diálogos: “Beckett era dado a longos silêncios, e Joyce também... suas conversas consistiam em silêncios mutuamente dirigidos, ambos saturados de tristeza... Repentinamente, Joyce fazia uma pergunta: ‘Como podia o idealista Hume escrever História? E Beckett respondia: ’Uma história de representações’”.

E Beckett lia para Joyce trechos das obras de Fritz Mauthner, cuja Crítica da Linguagem foi uma das primeiras a apontar a falibilidade da linguagem como instrumento da descoberta e comunicação de verdades metafísicas. “As relações com Joyce, arrogante e imprevisível, terminam abruptamente quando este lhe anuncia: ‘Não amo ninguém que não seja da minha família’, e Beckett repudia o amor da filha de Joyce, Lúcia, declarando: ’Eu tolero você só por causa de seu pai!”” Igualmente a milionária americana Peggy Guggenheim, colecionadora de obras de arte e protetora dos artistas, despertou sua apatia quando lhe confessou estar apaixonada por ele. Como Peggy Guggenheim conta em sua autobiografia: “Beckett era um jovem apático, que ficava na cama até o meio da tarde e com quem era difícil conversar, eram necessárias muitas horas e muita bebida para esquentá-lo antes que se desembaraçasse. Preservava uma terrível lembrança da vida no útero materno. Sofria constantemente por isso e tinha crises violentas durante as quais se sentia sufocado. Sempre dizia que algum dia nossa vida se acertaria, mas, se eu fazia a menor tentativa de pressioná-lo para que tomasse uma decisão, ele se desdizia em tudo que havia dito anteriormente”.

Incapaz de ser interpretada ou rotulada à força como simbolismo religioso ou esquizofrenia aguda, a criação misteriosa, complexa e poética de Beckett tem sua primeira inspiração e talvez um de seus sentidos ocultos no encontro real que teve com um mendigo em Paris. Negando-lhe dinheiro, Beckett foi apunhalado nas costas. Saindo do hospital, pois fora ferido até o pulmão, procurou na prisão o seu agressor e quase assassino, perguntando-lhe por que fizera aquilo. Como um personagem de Esperando Godot, o sádico Lucky ou a vítima Pozzo, ou os mendigos Vladimir e Estragon, o criminoso respondeu-lhe: “Francamente, não sei”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “O Nobel ao absurdo .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.