Entrevista a Vergílio Ferreira

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1983-06-18. Aguardando revisão.

Vergílio Ferreira, nascido em 1916, perto da secular Universidade de Coimbra, comoveu a platéia que o assistiu, na semana passada, quando fez a palestra que inaugurou a promoção “Encontros com a Cultura Portuguesa”, no Sesc. Referindo-se a quem considera o gênio máximo de uma civilização orgulhosa dos seus oito séculos de existência, enfatizou que brasileiros e portugueses comemoravam, ali, São Camões, o poeta da ausência, da expatriação, que atingiu a recordação da terra distante com emoção e saudade. Sóbrio, ponderado, atento, polidamente, às divergências de opinião dos seus interlocutores, soube transmitir ideias e ensinamentos sem nenhum tom profissional ou superior. Esta foi a impressão que as pessoas que o assistiram tiveram e agora comentam. Ficou clara a certeza de que Vergílio Ferreira submete os sentimentos à lucidez das ideias. Para muitos leitores, trata-se do maior escritor português contemporâneo. Vergílio Ferreira destaca-se entre os romancistas neorealistas dos últimos 50 anos, por nunca ter admitido que a doutrina política se tornasse a censura da arte. Seus livros O Caminho Fica Longe e Onde Tudo foi Morrendo alcançam, com Vagão J. a culminância da reflexão sócio-econômica a respeito do ser humano. Já com Mudança e Aparição, nitidamente se destaca a sua independência, ao afirmar que “nem só de pão vive o homem” e ao interrogar com invulgar coragem e coerência as eternas questões metafísicas que nenhum panfletarismo político soluciona: a angústia, a solidão, o amor, a morte, o mais além, que circunda nossa vivência corporal. Nesta página, as suas ideias, conceitos e reflexões sobre a literatura brasileira e portuguesa.

Talvez eu tenha começado de forma errada a leitura de sua obra, pois comecei pelo seu ensaio “Terá Camões lido Platão?” Talvez eu devesse ter lido primeiro os romances que tornaram o nome de Vergílio Ferreira tão famoso em Portugal e mesmo no Brasil…

“Não, de resto esse é o meu primeiro trabalho publicado, quando eu era ainda estudante da Universidade de Coimbra e o único assinado com o meu nome completo, que é Vergílio Antônio Ferreira. Esse ensaio nasceu do fato de, naquela altura, haver muito a preocupação em se confirmar, se especular se Camões efetivamente tinha feito uma leitura de Platão através da tradução latina de Marcílio Ficino do Renascimento italiano. Quem primeiro levantou essa hipótese, devido a suposta afinidade entre Camões e Platão, foi o professor Joaquim de Carvalho. Mais tarde o professor Álvaro Júlio da Costa Pintão aduziu outros dados a essa sugestão. No entanto, suspeitei da solidez dessas, digamos, teses e as confutei em meu trabalho, um trabalho de juventude, diga-se de passagem. Mas quando do centenário da morte de Camões, em 1980, esse meu trabalho veio novamente à cena porque certos estudiosos quiseram recordar, sobretudo aos jovens, que realmente não se pode provar que Camões tenha tido uma aproximação com Platão e sim que ele tenha encontrado afinidades através de outras fontes. É pena que celebrem os centenários da morte de Camões, já que se ignora, com certeza, a sua data de nascimento. É verdade, talvez celebremos de fato o apogeu de Camões, independente de datas…”

Mas não se podia aludir a filósofos neoplatônicos de que Camões tivesse conhecimento, como Plotino, por exemplo?

“Sem dúvida, poder-se-ia aludir a elementos neoplatônicos mas aqui se pensou diretamente em Platão pela gama de problemas que avultam, como o da reminiscência, o da palinódia e outros mais.”

Mas nessa leitura hipotética se incluia a parte política, como A República também?

“Não, não creio que haja vestígios disso, tudo se restringe ao âmbito filosófico e lírico propriamente. Teria sido muito agradável ter provado que Camões bebeu dessa fonte diretamente, pois era um homem de vasta cultura, que abarcava todos os temas do seu tempo, mas tal não se deu.”

Camões permanece como um clássico emblemático mas para a sensibilidade moderna, depois da revolução industrial, Fernando Pessoa não terá mais a nos dizer? Ou é uma pergunta impertinente?

“Não, não é uma pergunta impertinente, é uma pergunta inteligente que merece até um pequeno comentário. Noto que todo autor que está mais próximo de nós, no tempo, naturalmente nos fala mais do que outro que está mais recuado. Resta saber se aquilo que tem a nos dizer é mais profundo, é culturalemente mais valioso do que o que nos dizem os que estão longe. Um autor, seja ele artista ou filósofo, chega até nós por aquilo que o Malraux chama a sua”metamorfose”, isto é: ao contemplarmos um quadro de quatro, cinco séculos passados, nós não lemos nele o que seu autor lia. Seja uma obra de teatro como Antígona de Sófocles, seja o Dom Quixote de Cervantes, toda obra é aquilo que é mais o que sobre ela acumulou a passagem dos séculos. Ora, bom, se por acaso Camões não fosse conhecido como autor de os Lusíadas e um dia um pesquisador achasse os Lusíadas séculos mais tarde já não seria a mesma coisa, o mesmo fenômeno, porque não seriam nunca os Lusíadas publicados por Camões em 1532. Queria contar-lhe ou recordar-lhe a esse propósito um conto de Borges em que um personagem, Menard, de forma extremamente original, escrevesse, agora em nosso tempo, o texto do Dom Quixote. Só aparentemente seria a mesma coisa porque na realidade seria um texto inteiramente diferente porque escrito segundo a ótica, a maneira de ver do nosso século; há portanto um desajustamento no contexto dessa mesma obra.”

Mas por que se insiste na perenidade de Camões para a nossa época?

“A sua pergunta poderia levar a presumir-se que há nela uma certa reserva com relação ao valor de Camões?…”

Não, eu me exprimi mal. O que eu queria saber é quais são as características de Camões que o tornam ainda atual para nós, o que nele é perene e imutável pelo tempo?

“Temos que distinguir em Camões o poeta lírico do poeta épico para já não falarmos do Camões dramaturgo. Ora, com relação à poesia lírica, Camões está imediata, diretamente perto de nós com a sua temática, não precisamos recorrer a nenhum artifício para sentir a sua atemporalidade. Falou há pouco do Pessoa: não se pode esquecer que o Pessoa deve muito, deve imensamente, ao Camões lírico, ao Camões dos sonetos. Pessoa, que exaltava o Camões épico, mas não o lírico, o fazia, certamente, com má consciência. Sobre o Camões épico é que nós podemos indagar o porquê dessa nossa, digamos assim, fixação. É preciso não esquecer que no decurso dos oito séculos da civilização portuguesa Camões esteve justamente no ápice dela: no momento dos descobrimentos marítmos portugueses. Faz lembrar aquele verso do Álvaro de Campos, aquele heterônimo do Fernando Pessoa, que refere que por terem descoberto a Índia já ficaram sem trabalho (risos). Tampouco será necessário reiterar quanto esse feito dos descobrimentos marítimos portugueses dessa época repercutiram em toda a Europa culta daquele tempo. Então acontece isto: que sendo o Camões um grande poeta conseguiu fazer confluir esse momento mais alto da nossa História com uma obra genial de sua realização. Tivemos a fortuna de ter um poeta nacional, ou seja: um poeta que expressa plenamente o espírito da nossa nação. São poucas as culturas que têm esse privilégio. A Grécia, sem dúvida, tem Homero, mas diante da França já hesitamos e indagamos se em vez de um artista não será um filósofo, Descartes, a expressão suprema do gênio francês.”

Mas mesmo sem questionar o inquestionável - o valor transcendente de Camões e sua obra -, não seria possível identificar em Fernando Pessoa quem encarnou a angústia, o absurdo, a inquietação do nosso século e da modernidade, a partir da criação de Baudelaire?

“Estou de acordo, mas em primeiro lugar, para sabermos em que medida um Camões e um Pessoa se igualam ou se distinguem, em favor de um ou de outro, precisamos perspectivar isso através dos séculos. Eu não sei em que medida o Pessoa resiste ou pode resistir daqui a quatro séculos, como resiste, já não digo o Camões épico ma o próprio Camões lírico, não é? Camões, como bem o disse Jorge Sena, é um autor maneirista, quer dizer: um autor que está entre o clacissismo dos séculos XV, XVI e o barroco. Ora, há muito barroquismo também o seguinte: o grande ensaísta português Eduardo Lourenço tem um ensaio, saído há pouco tempo, em que ele anota esta coisa que é quase um ovo de Colombo, pois parece imediatamente visível, mas ninguém viu: é que quando o Fernando Pessoa escreve a Mensagem em que enaltece vários valores, há um nome, há um valor que ele omite, que é o de Camões! Camões não está lá! Isso tem uma significação e é a que se lhe dá quando lemos esse ensaio: a de que Pessoa sentia em Camões um rival…”

Mas ele diz claramente em outro trecho em que fala de ser um “super-Camões”…

“Há nisto um grande blague, como se dizia no século XIX, uma grande margem de provocação, não creio que ele realmente tivesse a consciência de ser um”super-Camões”…”

Quem sabe ele era um narcisista?

“Pois, um narcisista o era efetivamente até certo ponto (risos). Ele falou do seu próprio”gênio”, mas duvido que o Camões fosse um valor a ser ultrapassado por ele próprio, Fernando Pessoa. Mas se se refere a Vieira e a tantos outros valores que recapitula, por que não está entre eles o de Camões?! Além do que, quando falou do fato de o Pessoa ser um poeta universal, que o é, estou convencido que uma das razões fundamentais disso não reside na sua poesia propriamente dita, mas num fato que de início chocou muito os críticos e que até certo ponto o ocultava, o escamoteava que é o problema dos heterônimos de Pessoa. Os heterônimos, ou seja, a mediação de um EU…”

Ou a pluralização…

“Ou a pulverização desse EU em várias outras figuras é um fenômeno muito moderno… sobre o qual não vou aqui alongar explicações mas que tem muito a ver com a desorganização moderna, com a destruição moderna. Ora, o Pessoa, cujo nome em francês é Personne isto é ninguém… é”

“Ou persona (máscara)?

“Sim, ou máscara, então os heterônimos que foram um motivo quase que de vergonha, no início, para os comentadores de Pessoa e para os seus exaltadores, é hoje um motivo fundamental da sua grandeza. E eu admito que esse poema dos heterônimos e o questionamento do eu que faz na personalidade que se supõe ser eliminada, que se supõe ser uma convenção, uma mistificação, eu não sei se esse encontro não terá muito a ver com a aceitação que se tem do Pessoa em toda a Europa, como se tem em todo o mundo.”

Prometo que pela última vez farei a parte do advogado do diabo, mas frequentemente se menoscaba a obra de Camões, dizendo alguns que como poeta épico foi um copiador da Eneida, como lírico de Petrarca, o que o sr. opina a respeito?

“Em primeiro lugar, com relação à cópia: é preciso ver que isso não tem a mesma significação no tempo que tem hoje. Diz-se:”Ele foi copiador de Virgílio”: não foi copiador de Virgílio. Ora, Virgílio já foi copiador de Ennio, que é um poeta latino. É capital ressaltar mais ainda: que o período de Camões, o Renascimento, é um período de sínteses, diria melhor: de ambiguidades. Veja, por exemplo: no domínio religioso há uma síntese entre o paganismo e o cristianismo. Já o classicismo, que é um valor do tempo, implica uma real imitação de modelos anteriores, portanto, o Camões não podia fugir ao seu tempo. Ele imitava transformando, justamente essa é uma das características do classicismo: a imitação mas através da transposição para a afirmação do indivíduo: é no Renascimento, até chegarmos à destruição desse indivíduo, a aquela pulverização do Fernando Pessoa. Por que se imitava um autor clássico? Porque se julgava que ele tinha melhor captado simbolizado, os valores individuais, de tal maneira que, ao contrário do que acontece na Idade Média, vemos que os vários artistas do Renascimento português, que é de quem estamos a falar, se distinguem muito bem uns dos outros. Isso não acontece na poesia trovadoresca, por exemplo, quando uma poesia tanto podia ser de um quanto de outro autor. Em contraste com esta situação atente-se para a impossibilidade de se confundir um Camões com um Sá de Miranda. E não podemos esquecer que com toda a sua originalidade o Pessoa copiou, copiou muito, imitou muito, eu já o peguei várias vezes em rapinagens. Por exemplo, a sua frase: “A minha pátria é a lingua portuguesa”, isto é do Eça (de Queirós), está na carta nº 4 do Fradique (Mendes), quando ele diz que na língua é que reside a nacionalidade. Em meu próximo livro, o terceiro Diário, aponto inúmeras dessas aproximações, que já foram também, em outros trechos, anotados por estudiosos alemães especializados na obra de Fernando Pessoa… E finalmente, por estar mais perto de nós, o Fernando Pessoa se torna aquilo que eu disse (na alocução que inaugurou os “Encontros Portugueses” em São Paulo da semana finda): aquilo que mais está perto de nós é realmente o que menos vemos… O que está mais próximo de nós são os nossos olhos e não os vemos.”

Para falar dos seus romances: Vergílio Ferreira se opõe, na sua literatura, à corrente do neorealismo português que reduz o homem a conceitos apenas materialistas, sócio-econômicos. Seus livros - principalmente Aparição, Alegria Breve, Manhã Submersa, entre muitos outros - opõem a essa visão reducionista uma visão filosófica mais abrangente do ser humano, com o seu quê de inquietação metafísica camusiana ou malrauxiana nesta metade deste século trágico. Estaria certa esta aferição?

“Está certa. Em primeiro lugar, porém, temos que refletir um pouco sobre as razões que nos levaram (digo nos porque eu também estive metido nisto) à adoção desse neorealismo, que é o realismo socialista com pretensões, digamos assim, políticas, da adoção, portanto, da expressão estética de uma doutrina como a do comunismo, pois isso é o neorealismo.”

Ou de um socialismo democrático?

“Não bem a de um socialismo democrático, havia afinidades mas estou convencido de que, afirmou-se à época, havia afinidade é com um socialismo dito”científico”.”

Soviético?

“Soviético.”

Quer dizer que o Álvaro Cunhal (do Partido Comunista Português, de linha moscovita) era a matriz de tudo?

“Sim, sim, sim e mesmo ele interveio em certas discussões de caráter teórico com pseudônimo, mas hoje foi declarado publicamente que ele era o autor de muitos desses artigos. Portanto não há dúvida nenhuma de que havia uma interferência de uma orientação política comunista na doutrinação neorealista portuguesa. Isso não quer dizer evidenemente que TODO escritor neorealista fosse comunista ou tivesse consciência dessa interferência. E então o que aconteceu? Aconteceu que nós vivíamos num regime ditatorial dito fascista ou fascizante e, como é normal, procurava-se um antídoto numa orientação francamente oposta.”

Mas eram tendências tão bipolarizadas assim: para fugir a um fascismo de direita vamos então para um fascismo vermelho?

“Sim e é normal que aconteça. Veja que quando se deu o 25 de Abril essa bipolarização sentia-se muito e um Partido Socialista democrático, como o de Mário Soares, levou tempo para se afirmar. Nós tivemos um período; aí, por 75, em que o comunismo foi uma ameaça imediata. E foi necessário que o Partido Socialista chamasse a si toda a sua força de combate para que realmente as coisas fossem ultrapassadas. Hoje já não é assim.”

Então o Álvaro Cunhal, em termos, teria tido mais influência cultural em Portugal do que o Georges Marchais na França?

“Tinha, com certeza, porque a França não vinha de um regime de extrema direita e sobretudo com a duração de 4o anos como em Portugal.”

Mas dentro do neorealismo o sr. foi sempre uma voz dissidente?

“O neorealismo tinha uma intenção política, mas não tinha, paralelamente, um fito literário, estético. Daí termos tomado emprestado a autores brasileiros cuja temática, achávamos, se parecia com a nossa: Jorge Amado, Graciliano Ramos. Marginalmente, a de um Érico Veríssimo também. Claro, José Lins do Rego foi muito lido, mas não constituiu um modelo.”

E uma escritora como Clarice Lispector?

“De todos que conheço da literatura brasileira é de fato a maior escritora. Posso-lhe dizer também que em Portugal, passada a influência dos Jorge Amado e Graciliano a que aludi, um autor que a continua, mas com um apuro estético muito maior, é o Guimarães Rosa. Embora ele não escreva em português, escreve em guimarês…” (Risos)

O que tocou mais a sua sensibilidade com relação a Clarice Lispector?

“Generalizadamente eu diria que a sua margem, a sua tonalidade existencial. Ela não é uma autora de indagações do psicologismo, como Proust, embora culturalmente de nível muito elevado. Costumo dizer: a psicologia responde à pergunta: como somos? A metafísica nos responde quem somos.”

Quanto à sua trajetória como romancista, um de seus fios condutores seria a de um ceticismo, quase de um niilismo diante da condição humana, física e metafisicamente?

“Em parte creio que está certo, mas mesmo reconhecendo que o escritor é o que menos pode falar de si, vejo que evoluí. A princípio eu cria que bastava dar solução aos problemas sócio-econômicos e políticos do homem: isto é, dar-lhe o pão. Depois vi que o pão o estômago saciado são apenas o ponto de partida, não o ponto de chegada. Convenci-me de que a condição humana, saciada a fome, não tem a garantia de uma crença ou de um sistema de valores ou mesmo de uma religiosidade. Depois de Aparição fiz a decoberta do”tu” que é o “eu” objetivado e, sendo agnóstico vi a condição do homem hodierno em meio a um mundo em esgotamento e no fim da civilização européia a que Valéry aludia: moral pelo Cristianismo, cultural pela Grécia e jurídica, na constituição do Estado, por Roma. O comunismo não substituiu o “sim” da civilização cristã como a História dos países comunistas nos demonstra na Hungria, em Praga, em Berlim Oriental, etc. O homem não vai suicidar-se mas não sabemos como sobreviverá. A civilização foi, historicamente, européia: a China veio buscar a tecnologia e o comunismo na Europa, o Japão de hoje haure forças de tecnologia da Europa, enquanto a Europa está velha, cercada econômica e culturalmente: importa matérias-primas e bens culturais, legou a outros povos e outras culturas a sua voz e o seu saber.”

Nesse mundo de hoje de perda de valores, de mutação para não se sabe o quê, o sr. diz num de seus livros que “as palavras são pedras”. A palavra se alterou ou ainda tem um sentido atualmente?

“Pois. Não é por acaso que hoje a filosofia linguística vem dizer-nos que tudo se reduz à palavra. Críamos tradicionalmente que a palavra servia para transmitir o pensamento. Hoje a filosofia linguística diz:”Não, a palavra é que é o pensamento”. Portanto, a função da palavra, vemos, se esvaziou nela própria. Quando afirmei “as palavras são pedras” eu acreditei que a palavra tivesse um poder de comunicação…”

De cristalização?

“Sim, pusemos em causa a própria palavra, já nem falemos no”eu”. Pensamos a palavra porque não temos nada a dizer. Conta uma história do Zen-Budismo que um sapo indagou a uma centopéia: “Ouve lá, como te mexes assim com tantas patas que tens?”. A centopéia parou para pensar e começou a emaranhar as patas sem poder andar. É o que acontece conosco: temos o romance do romance, a poesia da poesia, o cinema do cinema, uma auto-reflexão inibidora da espontaneidade original. Veja a televisão: forma o jovem na superfície das coisas; a palavra profunda, a palavra interior está muda. A tecnologia pode ser positiva, neutra ou francamente negativa, basta pensarmos na hipótese de um louco apertar o botão nuclear e fazer saltar o mundo pelos ares. Vivendo de exterioridades, nós tornamos a palavra muda, vazia. Estou terminando um livro cujo tema é justamente este: a significação da palavra no mundo d’hoje. É o narrador que chega ao fim da vida e diz:“Eu não tenho uma palavra que me diga tudo, seja no que for”. A epígrafe deste volume que vai sair este ano são dois versos de um grande poeta, irmão do José Régio, o Saul Dias, que dizem mais ou menos isto: “Uma vida inteira para dizer uma palavra/ Feliz daqueles que disseram uma palavra duranta a sua vida”. Mas diante desta palavra de momento, vazia e inútil, diante desta perspectiva negra, não podemos esquecer que o homem acabará por vencer todas estas limitações. Simplesmente, esta vitória, essa reconquista de um mundo novo é que não se pode prescrever: há de realizar-se por si. De que maneira, não faço ideia, mas estou convencido de que evidentemente o homem, se nao desiste de ser homem, não desiste de ser livre, há de superar tudo isto. E a arte, a cultura, hoje em crise, haverá, amanhã, de recuperar a sua vida e continuar a aventura do homem.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1983) 2022. “Entrevista a Vergílio Ferreira .” In Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns escritores portugueses, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 6. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.