Cecília Meireles

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Inédito, Sem data (provavelmente meados dos anos 60). Aguardando revisão.

Cecília Meireles aparece como um galho divergente do Movimento Modernista da Semana de 22 em São Paulo. Ela estava mais integrada à chamada corrente esiritualista de Tarso Silveira e Andrade Murici. As revistas Árvore Nova, Festa e Terra e Sol diferiam por exemplo das revistas dos modernistas como Klaxon e a Revista de Antropofagia. Enquanto os paulistas queriam uma arte nacionalizante, abolindo a métrica, a rima e impondo uma anarquia individualista de criação embora com propósitos coletivos, o Movimento Espiritualista de inspiração nitidamente católica defendia ao contrário aqueles que ele considerava os valores imutáveis da psique brasileira: a elaboração estilística do poema mesmo se necessário utilizando a métrica e a rima ou usando o verso livre dos modernistas. Em seguida: uma perscrutação filosófica não imediatista do poeta diante da vida da natureza e dos seus semelhantes e por fim o reconhecimento de que o Brasil não estava e não podia estar divorciado do mundo daí esse movimento ter se chamado também totalista ou universalista em oposição à irreverência dos paulistas que pretendiam destruir todos os ídolos anteriores. Não: o Movimento Espiritualista queria uma continuidade e é significativo que se tenha inspirado inicialmente no Movimento Simbolista de quem Cruz e Souza tinha sido no Brasil ao lado de Alphonsus de Guimaraens a expressão suprema.

Cecília Meireles nunca pertenceu no entanto a uma escola definida de poesia. Ela está filiada à tradição da lírica portuguesa, dos cancioneiros da ajuda e do vaticano com os cantares medievais do português e com os romanceiros galegos de queixumes de amor. A marcante influência lusitana revela-se até biograficamente, descendente de imigrantes açorianos Cecília Meireles ela própria reconhece que teve uma identidade ímpar com Portugal e com a morte. Três meses antes de seu nascimento em 7 de novembro de 1901, morre seu pai, aos três anos de idade ela perde a mãe e passa a ser criada pela avó materna, que lhe conta casos da Ilha da Madeir e canta cantigas de ninar para a menina precocemente órfã, como ela declarou numa entrevista:

“Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais mas ao mesmo tempo me deram desde pequenina uma tal intimidade com a morte que docemente aprendi essas relações entre o efêmero e o eterno que para outros constituem aprendizagem dolorosa e por vezes cheia de violência. Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei em perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade. Creio que isso explica tudo quanto tenho feito em literatura, jornalismo, educação e mesmo folclore. Acordar a criatura humana dessa espécie de sonanbulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhe a vida em profundidade, sem pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante.”

Da sua infância que ela mesma considera mágica e maravilhosa ela guarda uma recordação cristalina, proustiana:

“Tudo quanto naquele tempo vi, ouvi, toquei, senti, perdura em mim com uma intensidade poética inestinguível. Não saberia dizer quais foram as minhas impressões maiores. Seria a que recebi dos adultos tão variados em suas ocupações e em seus aspectos? Das outras crianças? Dos objetos? Do ambiente? Da natureza?

Recordo céus estrelados, tempestades, chuva nas flores, frutas maduras, casas fechadas, estátuas, negros aleijados, bichos suínos, realejos, cores de tapete, bacia de anil, nervuras de tábuas, vidros de remédio, o limo dos tanques, a noite em cima das árvores, o mundo visto através de um lustre, o encontro com o eco, essa música matinal dos sabiás, lagartixas pelos muros, enterros, borboletas, o carnaval, retratos de álbum, o uivo dos cães, o cheiro doce da goiaba, todos os tipos populares, a pajem que me contava com a maior convicção histórias do Saci e da Mula sem cabeça (que ela conhecia pessoalmente), minha avó que cantava rimares e me ensinava parlendas…

Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão.

Essa foi sempre a área da minha vida. Área mágica onde os caleidoscópios inventaram mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo e as bonecas o jogo do seu olhar…

A esse mundo restrito de solidão e silêncio iria somar-se logo o mundo dos livros que são como que uma ampliação da sua área de sonho e devaneio.”

E na biblioteca da avó ela fez descobertas singulares: os livros importantes: os que tinham ilustrações ou o dicionário. Mesmo antes de saber ler a avó e uma preta babá, de nome Pedrina lhe incutia o amor do povo com suas lendas, superstições e certezas, dúvidas e encantamento. Essa Pedrina não só contava histórias do lobisomen, do Saci, da sereia, como representava, cantava, teatralizava todas as narrações de modo que a menina tinha que ir ver na clara do ovo seu futuro, tinha que resolver charadas, quadrinhas e adivinhações até que prematuramente essa constante na vida de Cecília Meireles, a morte, arrebatou-lhe também cedo essa doce e artística Pedrina.

Desse mundo de fábulas e de transmissão de conhecimentos pela fala Cecília Meireles decidiu-se pelo magistério. Sua mãe tinha sido professora. Ela também cursaria a Escola Normal. Uma paixão pela música - a música que é a coluna mestra de seus poemas, os mais musicais da poesia brasileira - a levaria a matricular-se também no conservatório de música, pois uma de suas ideias de adolescente era compor uma obra dedicado ao apóstolo São Paulo. As partituras de música com seu pentagrama, suas anotações de leitura fechada aos que não conhecessem o alfabeto musical lhe pareciam objetos de magia capazes de fazer brotar de um piano, de um violino melodias cifradas ali naqueles pingos e retas repousando sobre aquelas cinco linhas horizontais. Mas a palavra, aliada a uma essencial musicalidade é que predominaria. Desde criança ela sem saber ler ainda tocava os livros como objetos de brinquedo, como gênios da lâmpada de Aladim que era suficiente chamar para que eles contassem histórias deslumbrantes das mil e uma noites, da sereiazinha que morreu de amor por um príncipe humano e de Narizinho e da boneca Emília que faziam reinações no sitio encantado de Dona Benta.

Empenhada na educação, que considerava o problema de cuja solução dependeriam todos os outros problemas do Brasil, elada década de 30 inicia uma página no jornal carioca Diário de Notícias sobre educação, matéria de salvação nacional.

Ao mesmo tempo, difundia o livro infantil criando bibliotecas especializadas para crianças. Dedicava-se ao folclore. Descobria exxtasiada o Oriente, seu misticismo, indo até à Índia, a Israel, ao Paquistão e ao Ceilão.

Cecília Meireles novamente teria um encontro imprevisto e trágico com a morte. Uma de suas três filhas de seu primeiro casamento descobre o pai morto, enforcado no banheiro, presa de depressão psíquica profunda. Anos mais tarde Cecília Meireles, viúva, se casaria com um agrônomo paulista, Heitor Grilo e como que se encastelaria em sua casa nos flancos do Corcovado à sombra da estátua do Cristo Redentor de braços abertos sobre a cidade natal dela, o Rio de Janeiro.

Ela mesma responde a um questionário sobre si mesma antes de morrer em novembro de 1964.

Se este foi o itinerário da vida de Cecília Meireles, uma vida rica de viagens, de traduções de Rilke, do Orlando de Virgínia Woolf, da Canção de Amor e de Morte do Poeta Estandarte Cristovão Rilke, de Bodas de Sangue de García Lorca, de poemas do grande poeta indiano Rabindranath Tagore, de Pushkin e de Dickens, de Ibsen e de Maeterlinck, qual foi o roteiro poético desde o livro inaugural Viagem escrito em 1919 e só terminado dez anos mais tarde coligidos os poemas que a partir de 1922 vinham aparecendo esparsos em revistas literárias?

Desde o primeiro momento a poetisa acentua sua visão quase pagã da vida e da morte como sua consequência natural. Ela poderia ser um poeta da Grécia Antiga que celebrava no canto a fugacidade de tudo, da beleza, da cor, do amor, do sofrimento como da alegria, não num grosseiro conselho de aproveitar o dia que passa que amanhã estaremos mortos, mas irmanando-se com esse rio que flui e muda sempre como definia a vida Heráclito.

Ao lado do canto e da mude futura entre os dois relampagos indecifráveis do nascimento e da morte ela se interroga como interroga a própria natureza: constata nos espelhos que a vida fincou-lhe mudanças no rosto, que a vida não a deioxu incólume. Ela percebe que a mudança perene de tudo incluiu a ela mesma de imagem serena da infância de vivacidade estouvada para sempre desaparecida como que confirmando a visão romântica de Wordsworth de que na infância o céu se fecha aos poucos sobre nós; depois nos tornamos adultos e o céu se tolda de pensamento, de consciência em vez de sentimentoe de aderência à natureza e a seus fenômenos múltiplos.

Abstrata a sua poesia não admite ilustração por imagens. Musical, reproduz a musicalidade de Verlaine que pedia “de la musique avant toute chose” antes de qualquer outra coisa - a música. Poesia de renúncia e de estoicismo seus poemas falam de ausências, de amores tristes, findos prematuramente, não falam de sensualidade, falam de celebração fúnebre de afetos mortos antes do tempo, a memória é evocada constantemente como som menos do que como cor e forma. Daí um outro livro seu ter significativamente o título de Vaga Música, pois Cecília Meireles é a grande poetisa ou o grande poeta do incorpóreo, do imaterial, do que não permanece e que paradoxalmente se inscreve no mármore do verso. À pompa do mundo ela contrapõe a transitoriedade do mundo, como Quevedo, o grande poeta espanhol ou como a poetisa inglesa Edith Sitwell ela vislumbra na aurora o crepúsculo, na borboleta a vida breve. Nunca surgem imagens prosaicas nem corriqueiras em seus poemas hieráticos, esplêndidos de percepção sensorial logo elaborada em uma filosofia do transitório com certa dose de tristeza adoçada pela adoação e o encantamento da vida que passa, a rosa que explode em beleza cor e perfume e logo fenece, a lembrança do que já foi como aspecto complementar do ser. Tudo induz ao mesmo tempo à louvação da vida e à visão resignada de que esse espetáculo se esvai, perante os sentidos que morrem antes que o ser humano morra, a louvação da vida está feita das fibras da melancolia de ver o verme na fruta colorida, a queda do gesto que apenas se esboçou no espaço e já se evaporou no tempo. Não há propriamente uma inquietação religiosa nem uma fé. A vida é sem esteios, a poesia é vã. Viver é uma centelha de consciência, poeira mortal dentro da eternidade indiferente. Cecília Meireles não invoca Deus nem deuses. A vida sensível, perceptível pela sensibilidade e pela fantasia criadora do artista só é material de reflexão poética:

“A vida só é possível reinventada”

Nada pode ser explicado, só sentido e gravado no granito do verso que talvez também ele seja apenas areia que o tempo desfaz. Muitas vezes em seus versos e epigramas o cotidiano se insere mas já transformado pela visão poética como ni curto poema “Encomenda” ou então Cecília Meireles se aproxima de uma vida finda de um inocente e inofensivo inseto que sem querer ela extinguiu e a quem ela dirige ma elegia de irmanação com o efêmero com aquilo que não chegou acidentalmente a durar nem mesmo um dia.

Esta humana insuficiência desembocaria na fase final da maravilhosa criação poética de Cecília Meireles na evocação histórica de uma insuficiência humana malograda na história: o movimento da Inconfidência Mineira esmigalhada em sangue, de degredo, em prisão, em denúncia, em medo, em covardia.

Como que pressentindo que a morte já a ronda, Cecília Meireles submerge no mundo de Outro Preto. Aquela Vila Rica dos tempos coloniais do jugo português e deixa pronto m dos paineis sociais mais abrasadores de toda a literatura brasileira. Ela não busca o épico: afinal a Inconfidência foi traída e seu mártir supremo da liberdade, Tiradentes foi enforcado e depois esquartejado, sua cabeça fincada sangrenta num poste bem alto para qe todos os inimigos da coroa predatória das riquezas do Brasil soubessem que os soberanos lusos sabiam não só explorar a colônia como, se necessário, sufocar qualquer veleidade de independência e de liberdade. Inserem-se neste mural elegíaco e no entanto quase viril na sua denúncia da traição de ideais tão nobres o cenário mineiro: o trabalho escravo nas minas de ouro e diamantes. Os aventureiros que iam para Vila Rica para enriquecer de qualquer maneira. O contraste entre o país rico e a população pobre, entre a elite intelectual, alijada das academias literárias de Lisboa como meros provincianos e a cupidez dos reinos que meramente se serviam das minas brasileiras para erguer palácios em Queluz e Lisboa. Inserem-se os severos, bárbaros costumes da moral mineira como nos versos da donzela assassinada pelo pai que erroneamente pensou que o lenço que ela recolhia do varal era um aceno para um amante que lhe tivesse roubado a honra do nome. As violências com o derrame exigido por D. Maria I, a rainha louca, a cobiça do Conde de Valadares, a poma da mulata Chica da Silva que construiu um lago para nele navegar com um navio trazido de Portugal pelo seu amante o rico português João Fernandes que a ataviava em sedas e deixava que ela tivesse essa ilusão mineira de mar a singrar as águas do lago artificial construído por seu capricho diante de seu palácio.

Sob esse clima de opressão e luxo, com poetas e músicos, escultores como Aleijadinho e pintores, nessa pequena renascença cultural que Minas Gerais inaugura para o Brasil, fervilham as ideias liberais em política; leem-se os Enciclopedistas franceses: D’Alembert, Rousseau, Voltaire e Diderot. Murmura-se à respeito da indenpendência das colônias inglesas que conseguiram com o comando de George Washington libertar-se da tirania do rei George III da Inglaterra. Despacham-se inutilmente emissários para buscar em Benjamin Frank e em Thomas Jefferson, os paladinos da independência das 13 colônias da orla atlântica dos Estados Unidos, um apoio que esses idealizadores da Constituião americana negam ao Estado que quer nascer na América do Sul. Como que presságios de traição, sangue e morte assombram os passos da grande figura central - o Tiradentes, a quem um cigano prediz um destino funesto. Incompreendido pelos tropeiros de Alimaria que conduzia ouro Tiradentes é escarnecido pelos seus compatriotas enquanto uma espécie de Gestapo ou KGB portuguesa lhe segue os passos da figura misteriosa e sinistra do embuçado. Era o suicídio de Cláudio Manoel da Costa encerrado no cárcere da Casa dos Contos, era a denúncia daquela conspiração feita por poetas sem contato com a realidade dura e impiedosa que dá aos versos de Cecília Meireles aquele conflito entre a leviandade da palavra e a covardia da ação. Ironicamente o fado tece também seu escárnio: Marília vê partir para a África seu noivo amado, Tomás Gonzaga, que lá se casa com outra mulher depois de dedicar-lhe poemas de amor eterno. Marília aos oitentas e tantos anos de idade caminhando com passos incertos a mantilha na cabeça para a igreja na paróquia de Antônio Dias a recordar o amor fenecido antes de colhido, até a louca rainha de Portugal a quem os nobres cobiçosos faziam assinar penas e morte e de exílio sem que ela soubesse o que fazia entrar nesse romanceiro da Inconfidência, assim como o Conde assumir que como governador das Minas Gerais mandou incendiar as casas dos principais chefes da rebelião abortada. Sobretudo Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, perpassa vivo ou morto sendo condenado à força ou espalhando suas ideias perigosas de sedição em ouvidos discrentes ou surdos, assim como o outro Joaquim, Joaquim Silvério dos Reis, o calar daquela conjura, o delator que relatou ao Visconde de Barbacena pormenores dos projetos de rebeldia de que participara torpemente.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Cecília Meireles .” In Poetas brasileiros contemporâneos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 4. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.