A Ópera de três vinténs

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Diário de Notícias, 1960/2/14. Aguardando revisão.

Na série que hoje iniciamos, Documentos, transcreveremos, com regularidade, trechos de obras fundamentais da Literatura Ocidental, principalmente da época moderna. Dentre as figuras mais marcantes deste século, Brecht, ocupa, sem dúvida, uma posição de singular relevo, como um dos mais importantes e revolucionários dramaturgos contemporâneos. A síntese que fazemos a seguir, de uma de suas obras-primas, a Ópera de Três Vinténs, visa precisamente divulgar, entre os leitores de aminhos da Cultura”, alguns aspectos essenciais do mundo brechtiano, do qual voltaremos a falar oportunamente.

Conforme divulgamos anteriormente, a Ópera de Três Vinténs foi encenada exatamente dois séculos depois de Beggar’s Opera (Ópera dos Mendigos) do autor inglês John Gay, em que se baseara. Logo depois de sua apresentação, em 1920, a Ópera de Brecht conheceu um fulminante sucesso mundial. Ao passo que a obra de Gay parodiava, em em 1728, a ópera barroca de Haendel e ridicularizava a aristocracia inglesa, no fundo pouco diversa das “classes inferiores” que desprezava. Brecht utiliza a ópera como uma sátira ácidas das “convenções da e da hipocrisia burguesas”. A sociedade é analisada pela perspectiva de seus bordéis, dos seus mendigos e ladrões, pondo-se a nu ao mesmo tempo “a miséria moral dos elementos que ocupam altos cargos nessa estrutura social, cujos deuses são a segurança monetária, o conforto e a indiferença ao infortúnio alheio”.

Já no início da ópera, Brecht apresenta-nos uma cena que, em si, contém os elementos de “humor” e de desafio à sociedade que concretizarão toda a sua obra. Ao levantar-se a cortina, vemos uma feira em Soho, o bairro boêmio e pobre de Londres. Anotação da dramaturgia: “Os mendigos mendigam, os ladrões roubam, as prostitutas se prostituem”. Sobre esse fundo, um narrador canta, ao som de excelente música de Kurt Weill, a história de Mackie Navalha, o personagem central: “Mackie Navalha usa luvas que não guardam vestígios de crimes. Nas águas verdes do Tâmisa, caem de repente pessoas: não há peste nem cólera em Londres agora, mas Mackie passou por ali. Um grande incêndio em Soho: sete crianças e um ancião morreram, entre a multidão se encontra Mackie Navalha, que, interrogado, de nada sabe.… As prostitutas riem às gargalhadas e, de repente, do grupo se destaca um homem que atravessa, rápido, o palco. Uma das mulheres o reconhece e grita:”Mackie Navalha!“.

Já neste prólogo, com a sua marcação dinâmica, notamos a plasticidade do teatro brechtiano, as suas qualidades de cinismo e petulância propositais, destinos a ferir a sensibilidade vulnerável do público. No primeiro ato, utilizando a técnica dos letreiros, que narram a história desenrolada no palco, introduzida no teatro por Piscator, Brecht nos informa que “para fazer face ao endurecimento crescente do coração humano, cada vez mais cruel, o homem de negócios Peachum abriu uma loja na qual os mais miseráveis dos miseráveis podem adquirir a aparência que comove o coração mais empedernido”.

Desde o início da peça, a intenção de ironizar “os falsos conceitos cristãos da burguesia torna-se evidente: durante o desenrolar da ópera veremos as mais sórdidas ações e intenções humanas mescladas a citações da Bíblia. Peachum, dirigindo-se ao público, queixa-se de que o seu negócio, é difícil. É preciso despertar a compaixão dos homens, mas só quatro ou cinco frases da Bíblia conseguem comover o coração humano e elas perdem o efeito tão rapidamente!... Surge um cartaz, com a frase:”É mais venturoso dar do que receber”. Apontando para ela, Peachum diz: “Esta frase, por exemplo, gasta-se em três semanas e a Bíblia, afinal de contas, não é inesgotável!”.

Os “negócios” de Mr. Peachum consistem no seguinte: na sua imensa loja, ele aluga, a um verdadeiro exército de mendigos, roupas esfarrapadas e sujas, braços e pernas horrivelmente deformados: tudo que possa causar piedade aos homens e extorquir-lhes uma esmola. A classificação dos “uniformes” dos mendigos é, ao mesmo tempo, tétrica e divertida: há, por exemplo, o “equipamento de vítima do progresso automobilístico”: um mutilado alegre que mostra um toco imundo que lhe serve de antebraço, amputado até o cotovelo. O equipamento número dois intitula-se “vítima das artes bélicas” e é simbolizado pelo “aleijado importuno que com o seu treme-treme constante atormenta os transeuntes” ... Uma vez fechada a transação – uma cena hilariante – com um novo “cliente” que surge, Peachum e a mulher descobrem, com horror, que sua única filha, Polly, fugiu de casa. Peachum impreca contra o destino ao saber que o sedutor de sua filha é o famoso e temido Mackie Navalha. Enquanto isso, Polly e Mackie celebram seu casamento num estábulo. Os ladrões do bando de Mackie chegam, com móveis recém-roubados, para transformar o estábulo “num local elegante”. Um deles cumprimenta a noiva e esclarece, carregando um pesado instrumento musical: “Este cravo, minha senhora, pertencia há meia hora à Duquesa de Somersetshire”. Depois, notando que se esqueceram da mesa, para o banquete, os gatunos chefiados por Mackie decidem serrar as pernas do cravo, enquanto ainda se vêm às voltas com o relógio de parede e os talheres furtados ao Hotel Savigny. Depois de celebradas as bodas pelo pároco, chega o único amigo de Mackie: Tiger Brown, chefe da Polícia de Londres e seu sócio nos assaltos às casas dos ricos. Tiger Brown e Mackie foram soldados juntos na Índia e são, como declara o culto Mackie, “inseparáveis como Castor e Pollux”. O assaltante, depois de cada roubo, dá ao xerife, honradamente, a parte que lhe toca e este, por sua vez, nunca faz uma “batida” policial sem antes avisar seu amigo. Na Scotland Yord, naturalmente, não há ficha desabonadora de Mackie, que continua a ser “uma figura respeitável da sociedade, exatamente como Tiger. Diz um dos ladrões para a jovem esposa:”Sabe, Madama? Temos pistolão com as mais altas autoridades...”.

Em casa, o pai de Polly está desesperado, considerando a perda da sua filha não do ponto de vista emocional, mas como a ruína completa do seu negócio. Com a mulher, ele resolve combater Mackie e denunciá-lo à polícia. Mas a filha, que volta pouco depois, para comunicar o casamento aos pais, explica que seria inútil, além do que, argumenta Polly: “Meu marido me oferece uma vida segura, papai! Ele é um excelente gatuno, de grande experiência e ideias largas. Com algumas empreitadas bem-feitas, poderemos logo retirar-nos em uma casinha de campo, exatamente como o Mr. Shakespeare que você admira tanto...”. No entanto, a recompensa oferecida a quem delatar o autor de audaciosos roubos comove mais o coração de Peachum e ele se prepara para ir à Chefatura.

No segundo ato, depois de encerrado o ato antecedente com a Canção da Insegurança da Condição Humana, cantada pela filha, por Peachum e a mulher, vemos Mackie Navalha que se prepara para fugir, avisado que seu sogro pretende denunciá-lo. Ele lamenta não poder participar das grandes atividades da Coroação iminente da Rainha, que lhe parecem tão promissoras: “Durante o dia, o povo está nas ruas, todas as casas estão vazias, de noite a haute volée está bêbada: magníficas chances de roubo!”. Mas seu amigo Tiger Brown, ameaçado pelo chefe dos mendigos com algo de terrível, caso Mackie não seja capturado, a fim de não perder o emprego, resolve trair o amigo. Mackie é preso num bordel, mas logo depois consegue escapar da prisão com a ajuda de outra prostituta que o ama e que ludibria o carcereiro. Ao descobrir que seu genro escapou, Peachum ameaça o chefe de Polícia novamente, relatando, numa cena sumamente engraçada, que “no ano de 1400 antes de Cristo, durante a coroação da Rainha Semiramis, a participação demasiado viva das camadas inferiores da população causou uma série de catástrofes e o chefe de Polícia de Nínive foi castigado... creio que com cobras que se alimentaram no seu peito...”. Peachum prepara os mendigos para uma parada medonha em frente à Rainha, uma parada que causará escândalo durante a Coroação: 1.432 mendigos, de aspecto asqueroso, pintam catazes alusivos como: “perdi a vista em honra do Rei” e se aprontam para desfilar seus aleijões e sua imundície perante a Soberana, para desespero de Tiger Brown. E encerrando esta cena, o “amigo dos pobres” e a prostituta Jenny cantam o Dueto da Moral Humana:

“Oh, Senhores, que nos ensinais a viver bem comportados

E nos aconselhais a evitar o pecao e as más ações!

Depois podeis falar... Pois não importa como se vire e veja a questão:

Primeiro vem a comida e depois a moral”.

Uma voz pergunta detrás do palco: “Pois de que vive o homem?” E o duo responde:

O homem vive somente de crimes nefandos...”

Finalmente, preso mais uma vez, Mackie Navalha é levado para ser enforcado. E ridicularizando o happy end desejado pelas plateias burguesas, “que só vão ao teatro para divertir-se”, Brecht cria um deus ex-machina: um arauto da Rainha surge inopinadamente e concede o perdão a Mackie. Para aumentar o absurdo, ele é tornado nobre, ganha o Castelo de Marmarel de presente e uma pensão vitalícia de dez mil libras. Mackie exclama: “Salvo! Salvo! Sim, eu sinto que agora quando a necessidade é extrema, a ajuda divina está próxima”. E todos os personagens dessa deliciosa blague mordaz cantam o Coral dos mais Miseráveis dos Miseráveis, com que se encerra a Ópera dos Três Vinténs:

“Não persegues demasiado a injustiça!

Breve os pobres gelarão por si, pois na terra faz frio,

Pensa! Na escuridão e no frio imenso,

Neste vale de lágrimas em que vivemos todos.

Tende mais indulgência com os pequenos

E menos com os grandes ladrões,

Que vos levam à guerra e à vergonha

E vos fazem jazer sobre pedras ensanguentadas

E vos conduzem ao assassinato e ao roubo...”.

A Ópera dos Três Vinténs constitui um dos melhores exemplos do teatro eminentemente popular e voluntariamente vulgar e petulante de Brecht, que mais tarde atinge à sua plena maturidade artística com as obras finais, os esplêndidos afrescos de A Alma Boa de Se-Tsuan, A Mãe Coragem, O Senhor Puntila e Seu Escravo e O Galileu, talvez a mais profunda e a mais bela de todas as peças desse dramaturgo, que simboliza toda uma época e amplia as dimensões da dramaturgir atual, mesmo se ela está intrinsicamente ligada a uma linha política definida e declarada abertamente.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “A Ópera de três vinténs .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.