O teatro americano do inconformismo

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Diário de Notícias, 1961/10/8. Aguardando revisão.

Se Brecht simboliza a mais alta expressão criadora da metade comunista de nosso mundo ideologicamente bifurcado, a dramaturgia marxista caracteriza-se, após a sua morte, por uma impressionante uniformidade e por uma monotonia quase inacreditável. Aconteceu em Irkustks, considerada pelos críticos soviéticos uma das obras-primas do teatro da URSS e que consegue lotar as casas de espetáculos mais importantes de Moscou há mais de um ano, é, na realidade, um drama piegas e enfadonho, uma trama em que personagens-tipos, simbólicos de ideias, surgem em meio a uma carpintaria teatral sem imaginação e a um teatro simploriamente doutrinário e grandiloqüente, de gosto e tendências vitorianamente burgueses. Sendo o teatro na Rússia atual, em sua totalidade, oficial, pode-se concluir que ele representa, oficialmente, o gosto e as diretrizes imperantes naquele vasto território, pois como é de sobejo conhecido, não existe um partido de oposição nem muito menos um teatro de oposição dentro dessa estrutura monolítica de concepções e de tendências.

Se esta é a situação unanimemente reconhecida por todos os que entraram em contacto com a realidade artística soviética, desde André Gide e Truman Capote até Elmer Rice e Eric Bentley e confirmada pelos que visitaram a exposição de pintura russa em Veneza e na atual Bienal de São Paulo, qual será a situação do teatro norte-americano, que simboliza a outra metade da bifurcação ideológica a que nos referimos acima e que dilacera o mundo em dois campos contrastantes e inimigos? Inicialmente, constataremos que o teatro americano é apenas um dos círculos concêntricos na superfície do mundo ocidental, um dos círculos criados pelo choque do reconhecimento de uma situação desumana - a pedra que se atirou nas águas profundas da própria consciência ocidental. Henry Bonnier, em sua profunda análise da obra de Camus, diagnostica o tédio baudelairiano que caracteriza a vida ocidental, a par das injustiças sociais do capitalismo extremado: O Ocidente só nos oferece uma monotonia quotidiana. Trabalhar, comer, dormir nada disso tem interesse. O Ocidente não vive, mas sobrevive. Parece mesmo acomodar-se à sua letargia espiritual. Pensando bem, parece que um automóvel substitui facilmente a alma. Limitemo-nos a constatar que o drama do Ocidente, o único que tenha importância real e do qual todos os outros se derivam, reside no divórcio permanente entre o mundo e nós. Digamos que um abismo separa-nos desse mundo. E, perdidos nesse labirinto, que percorremos obstinadamente, o espetáculo que vemos enche-nos de horror.

Será fácil concluir também que estas décadas das guerras, desde 1914 até 1945 e daí até a sinistra guerra fria da atualidade, servem de moldura macabra para a era do exílio em que vivemos. Quase sem exceção digna de nota, os artistas de vários paises exilam-se de múltiplas formas do país com o qual têm as mais profundas afinidades humanas, afetivas e culturais. O Nazismo escorraçou violentamente não só os artistas expressionistas alemães em sua totalidade como as mais excelsas manifestações da inteligência e da sensibilidade germânicas Thomas Mann, Einstein, Franz Werfel, Leon Feuchtwanger, Bertolt Brecht, Gottfried Benn. A vitória de Franco desencadeou o êxodo maciço de intelectuais, editores, médicos e escritores da Espanha, depois de ter trucidado Garcia Lorca e Miguel Hernández. Na Russia Soviética suicidam-se Essenin e Mayakwsyky, ao passo que Pasternack sucumbe dentro do degredo interior que lhe foi imposto em sua própria pátria. Na América, a geração perdida insurge-se contra os Babitts predominantes em seu país: os que idolotram como deuses supremos o sucesso, o dinheiro, o prestigio, Cadillacs cada vez maiores e enfartes cada vez mais frequentes. Já Henry James e T. S. Eliot emigraram antes para o país que, agora, é o alvo da geração irada britânica - a Inglaterra de um Império que se desmorona e cujo isolamento secular se extingue perante o que os conservadores chamam de “humilhação da Inglaterra” - a sua entrada no Mercado Comum Europeu. Hemingway parte para Paris e para a Espanha, John Dos Passos torna-se socialista e vitupera acidamente contra seu país em suas obras fundamentais: Big Money e 42nd Parallel. A lista podia ser praticamente interminável.

O teatro americano, como indicamos, não foge a esta maré crescente de protesto, que atinge paroxismos grotescos na seita dos beatnieks, que confundem ensinamentos Zen com promiscuidade sexual e filosofia chinesa com entorpecentes e uma vida sem propósitos. As peças da década de 1950 focalizam principalmente o problema-chave da psique americana, espelhado também por sua literatura em prosa e pela sua poesia: o problema da adaptação à “maneira de viver americana” depreciada acerbamente por Henry Miller em seus livros proibidos em seu próprio país. O teatro americano atual é sobretudo um teatro de isolamento do indivíduo dentro de sua sociedade em que imperam os valores materiais e os valores da grege. Esse isolamento é não só moral pela repugnância com relação aos mores instituídos pela convenção social e com relação à mendacidade onipresentes que impera no mundo americano, como a denuncia Brick, o anti-herói de Gata em Teto de Zinco Quente. Esse isolamento é determinado também pela anormalidade - pela marginalidade - dos indivíduos que compõem a galeria de personagens americanos contemporâneos. Desta maneira, a América integra-se na corrente ocidental que a partir de Baudelaire e Rimbaud, dos expressionistas alemães e de Dostoievsky, de Sartre e de Kafka passara a exaltar os vencidos pela “terrível maratona capitalista-burguesa” como a chama Gerog Luckás, o mais arguto crítico marxista de nosso tempo. Com insistência monocorda e unânime, os dramaturgos americanos apresentam figuras acossadas pelo inconformismo, um inconformismo que muitas vezes assume a forma de anomalias patológicas derivadas de seu choque com a maquinaria poderosa e esmagadora do mundo exterior, organizado, frio e todo poderoso economicamente. Todos os que fogem à exceção, todos os que fogem à norma - tarados, homossexuais, vítimas de entorpecentes - são merecedores da piedade e da identificação espiritual do dramaturgo americano. Em sua última peça, Tennessee Williams, expressando o horror visceral que lhe causa o mundo, descreve a vida como “uma vasta enfermaria para neurastênicos e psicopatas” (Period of Adjustment). Os espectros que povoam as mentes e as consciências americanas surgem sob a forma de seres divorciados da realidade ambiente e obcecados pela solidão e pelo mórbido convívio com suas próprias frustrações. Em Chá e Simpatia, de Robert Anderson, assume-se uma posição otimista e sumamente simplista com relação no problema homossexual: o aluno universitário extremamente sensível e vilipendiado pelos colegas que o tacham de “efeminado” é “salvo” professora compreensiva e altruísta que lhe oferece seu corpo em adultério, a fim de “protegê-lo” do homossexualismo latente. No entanto, no inferno em que se movem os personagens de Tennessee Williams o dístico monstruoso que se lê à entrada é o da frustração, a frustração mais trágica e sinistra que possa existir para o individuo, prêsa da sociedade, da família, de tabus e injustiças infinitas, infinitas máscaras da crueldade humana. Praticamente, todos os seus heróis e heroínas sucumbem vítimas da mesma miragem interior, do mesmo idealismo americano em choque com a realidade que nada tem da aura romântica e de sonho que envolve esses seres marginais, insatisfeitos e como que amaldiçoados pelo Destino inexorável. Pode-se dizer que Tennessee Williams só tenha criado, na realidade, dois personagens fundamentais que se repetem, sob formas diferentes, em todas as suas peças, desde a primeira, Glass Menageries (A Margem da Vida, em Português) até às últimas: Sweet Bird of Youth e Orpheus Descending. Esses personagens cristalizam-se da maneira artisticamente mais perfeita na obra-prima Um Bonde Chamado Desejo, sem dúvida uma das peças mais importantes de nossa era. A frágil, etérea Blanche du Bois e o bestial Stanley Kowalsky são como que os símbolos dessa morality plays modernas, do choque entre a sensibilidade e o instinto, a fantasia e a realidade crúa, a ternura e a violência. Em A Margem da Vida, tanto a filha aleijada, Laura, que vive separada do mundo, com sua coleção de bichinhos de vidro e tocando velhos discos quanto a mãe imperiosa e sonhadora, Amanda, vivem num mundo irreal, que já passou ou que jamais existiu, até surgir “o cavalheiro que vem visitar a família”, o representante do mundo quadrado e real, que precipita a ação, determina a fuga do irmão e rompe a coleção frágil e simbólica de pequenos animais de Laura, o unicórnio que vive isolado dos outros bichos seus semelhantes, “mas que não têm chifres”. Esses seres que simbolizam virtudes cardinais - a pureza, a sensibilidade, a generosidade, etc. - passam a simbolizar também todas as aspirações elevadas, espirituais, do homem: como exclama Blanche, antes de sucumbir vítima de seu cunhado sem escrúpulos e animalizado: “Existem coisas como a arte, a poesia e a música, estas novas luzes vieram iluminar nosso mundo depois da era das cavernas! Em algumas pessoas sentimentais mais ternos (do que os dos habitantes das cavernas) começaram a fazer-se sentir! É isto que nós devemos fazer crescer nos seres humanos, e agarrar-nos a estas coisas, como se fosse nossa bandeira, nesta marcha obscura em direção ao que quer que seja que nos espera...”.

Se, portanto, por um lado constatamos a resolução unânime dos dramaturgos americanos, cada um à sua maneira, de destruir o “mito americano”, será necessário convir que essas incursões dolorosas pela via do reconhecimento das falhas de um sistema de vida e de um sistema ideológico criam, ao mesmo tempo, obras de extraordinária densidade e importância para a dramaturgia mundial. Longe, portanto, de ser uma crítica sem objetivos, sem apontar correções ou diretrizes construtivas, as peças americanas da atual Renascença Literária dos Estados Unidos revelam possuir uma sinceridade, uma autenticidade e sobretudo um crítério ético e social bastante mais elevado e digno do que as que meramente se propõem a louvar indiscriminadamente e sem o mínimo critério crítico qualquer instituição, modo de vida ou ideologia politica considerada ingênua ou estupidamente como panacéia dos males inerentes à difícil condição humana, Como declara ainda a patética Blanche em uma cena crucial de sua tragédia: “A tristeza torna as pessoas sinceras; o pouco de sinceridade que existe no mundo pertence aos que já conhecem o sofrimento”.

Reuso

Citação

BibTeX
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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “O teatro americano do inconformismo .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.