Astuto ou generoso. Mas sempre amoral

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1978-07-22. Aguardando revisão.

Como ficção em prosa Macunaíma integra com os contos gauchescos de Simão Lopes e Grande Sertão: Veredas aquele triângulo de obras-primas abandonadas pelo grande público logo às primeiras linhas, com o bocejo abrangente de Macunaíma a exclamar:

“- Ai! que preguiça!…”

Em todas as três criações erguem-se como obstáculos intransponíveis para o nível de leitura rasado do brasileiro médio, dificuldades peculiares.

Em Grande Sertão: Veredas a floresta espessa, luxuriante de vocábulos arcaicos, indígenas, específicos de zonas de erudição como à botânica, a zoologia, etc - tudo erigido como hieróglifos em torno da visão religiosa, sacral, da vida como travessia para a Eternidade, saciada a mística busca de reunião com Deus, a Origem.

Igual reação de enfado se apodera do leitor que espera mera diversão do tipo Aeroporto e Arthur Hailey e depara com um liguajar abarrotado de dizeres dialetais gaúchos, sintaxes caipiras dos pampas e a necessidade constante de um dicionário de regionalismos para decifrar o que dizem os contos rio-grandense de mistério e suspense, sabedoria popular e profundidade de Lopes Neto, em muito semelhantes a certa parte da obra de Jorge Luís Borges.

E Macunaíma? Na “rapsódia” em que o contista, autoridade musical, poeta é o Pero Vaz de Caminha do “movimento modernista” de 1922 a descobrir para os brasileiros a “terra incógnita” do Brasil e a enlaçar episódios descosidos do “andarilho” não de Tormes mas de todas as regiões do Brasil? Aí o grande público, com tédio, fecha o livro. Pois se Macunaíma exige um vasto glossário de termos indígenas ou interioranos para sua compreensão vocabular e ainda demanda um amplo Roteiro elaborado por Cavalcanti Proença para seguir a trilha de origem de lendas aborígenas, de cantigas populares e superstições do povo para seguir as artimanhas dessa espécie de Pedro Malazartes brasileiro! É demais.

Macunaíma além disso não segue nunca um itinerário lógico. Nasce preto retinto e, de repente, por artes de magia, surge loiro e alvíssimo. O tempo e o espaço não existem para ele que numa página está em Minas e na próxima no Amazonas. Ou em São Paulo, Ou no Rio de Janeiro. Há transformações inesperadas e numerosíssimas como nos contos de fadas em que o sapo vira príncipe, a carruagem de Cinderela se transforma em abóbora num ciclo de metamorfoses estonteante.

Talvez se tenha atentado pouco para o traço central de Macunaíma e se tenha acentuado demais sua origem douta, baseada em estudos do follclore de tribos indígenas pelo etnólogo alemão Koch Grunberg em suas pesquisas no Amazonas. O que parece colorir toda esta visão do mundo de Mário de Andrade é um senso de humor abrangente, um riso irreverente a coexistir com uma visão melancólica do ser humano em sua rápida pantomina pelo palco sua trjetória terrestre. É uma visão da pequenez da condição humana que usa o folclore par melhor desmascarar as grandezas e misérias do homem. Se o brasileiro civilizado habitante das cidades podia ler a mitologia da Grécia antiga com o Deus supremo, Zeus, transformado ora em chuva de ouro, ora em touro, ora em águia, para melhor saciar sua lubricidade plurimorfa, se os deuses podiam, com seus poderes sobrenaturais transformar os homens em porcos ou em flores - por que as lendas indígenas permaneceriam meras obras para etnólogos e antropólogos?

Com esta lucidez, Mário de Andrade - como já tinham feito os artistas alemães com relação à arte da África negra, relegada a museus etnográficos - incorpora os mitos amazônicos, as crendices de origem africana e correntes entre o povo à sua vasta galeria nos diferentes episódios que compõem a fisionomia desigual de Macunaíma.

Seria importante destacar também o parentesco nada remoto que a tessitura de Macunaíma tem com o Ubu-Roi e com o surrealismo francês na sua aceitação implicita de tudo que é ilógico, maravilhoso, inconsciente. O elemento mágico dos contos de fadas da tradição popular já apontado por Todorov decorre da imaginação infantil e popular que admite os milagres e mágicas como parte integrante da realidade. Por isso o fio condutor das transformações repentinas é um aspecto lúfico da narrativa: Macunaíma vira isso e aquilo para sobreviver aos ataques dos inimigos e para aplacar os dois deuses supremos do pensamento dito selvagem: o medo e o sexo. Sua atitude básica com relação à ação, o lânguido “Ai! que preguiça!…” não é só , como se poderia simplificar uma corroboração da tese exageradíssima de Paulo Prado que em seu destorcido Retrato do Brasil queria ver, no brasileiro, acima de tudo um libertino irresponsável, que quer açambarcar tudo para si do topo de uma sociedade que existe para servi-lo e para que ele se sirva dela a seu bel-prazer. “Ai! que preguiça!…” seria mais uma antevisão da teoria do lazer abraada pela sociologia dos países mais avançados em oposição ao trabalho estafante como precondição para a sobrevivência num regime assentado sobre o trabalho. Mais ainda: seria um ceticismo diante dos resultados parcos ou negativos que o cansaço da ação colhe: construir São Paulo para se respirar o ar envenenado da poluição? Destruir a paz litorânea dos caiçaras para erguer hoteis de luxo com praias e prazeres reduzidos a uma minoria de sibaritas parasitários do trabalho de muitos? “Ai! que preguiça!…”

Há como que uma descrença machadiana em Mário de Andrade, uma descrença da bondade e do sentido que deveria nortear essa bondade nos contatos entre seres humanos. No entanto, para o autor paulistano, não se trata de descaso: trata-se de uma impossibilidade humana de catalogar o Bem e o Mal, já que Deus é uma incógnita, é o incognoscível por critérios humanos. No trecho célebre de outra obra sua, O Empalhador de Passarinhos, já Mário de Andrade aludira melancólica e filosoficamente a essa imprecisão que do folclore se estende à ação humana: “O folclore é, na verdade, muito mais humano que a restrita ideia do Bem e por isso guarda exemplos de tudo quanto grandezas ou misérias, move a nossa fragílima humanidade”.

Amoral, segundo padrões rígidos de ética, Macunaíma é alternadamente bom ou vingativo, astuto ou generoso e aqui se denota uma semelhança insuspeitada entre este quase-romance brasileiro e um quase-romance igualmente amorfo no cenário da literatura em língua alemã, O Homem sem Qualidades (Der Mann ohne Eigenschaften). Ambos são herois sem caráter, se por caráter se entende o rótulo de “bem-pensante” da burguesia brasileira ou austríaca que aceita as hipócritas regras do jogo do “vale tudo” materialista pela sobrevivência à custa de outrem. Macunaíma por ser “um selvagem”, o anti-heroi vienense sem características próprias ela sua inércia, pela sua incapacidade de inserir-se numa sociedade de parâmetros mentirosos e esquizofrênicos: no comércio, na indústria, na “vida real”, o indivíduo é forçado a fazer todo o inverso daquilo que a religião lhe ensina e reduz o cristão “Ama ao teu próximo como a ti mesmo” ao mero egoísmo destruidor do próximo.

Macunaíma, por certo, perdeu muito - apesar dos cortes muito grandes que o autor fez nos manuscritos originais - com o passar do tempo. Notam-se mais claramente seus defeitos de estilo: um excesso erudito de termos indígenas, enumerações cansativas de apetrechos e alimentos de tribos silvícolas autóctones. Mas ganhou como arcabouço insuspeitado para o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, a quem por certo legou a lição de amalgamar sabiamente elementos linguísticos díspares retirados do folclore popular, indígena ou de arcaísmos cultos preservados em ilhas ermas do vasto sertão inatingido pelo rádio, pelo automóvel, pela televisão. Como no mestre mineiro, Macunaíma oculta versos em prosa de tocante lirismo como no trecho exemplar: “A água parara pra inventar um ponteio de gozo nas folhas do javari. O longe estava bonito com muitos biguás e biguatingas avoando na estrado do futuro.”

Da mesma forma, essa “rapsódia” brasileira prepararia o ouvido do leitor para o ritmo e a musicalidade dos sons indígenas. Se esta foi uma vitória muito mais duradoura do que a obtida por José de Alencar, ao qual Mário de Andrade se irmana graças a um indianismo impregnado de adimiração artística, de outra forma o “heroi sem caráter” serviria de praxis real da teoria modernista de incorporação de temas e situações brasileiros à nossa literatura, finalmente libertando as artes entre nós da sufocante prosódia lusitana, conquista cimentada por José Lins do Rego na oralidade de seus diálogos e na descrição da paisagem nordestina de todo o romance social do Nordeste, desde A Bagaceira, de José Américo, até caatinga de Vidas Secas, de Graciliano Ramos.

Possivelmente o apogeu de Macunaíma está em “Carta prás Icamiabas” em que o autor faz uma paródia hilariante do estilo besuntado de lusitanismos extremos de um Coelho Neto ao descrever a cidade de São Paulo em missiva escrita às índias Amazonas. Mário de Andrade não se limita a verificar que os chamados brasileiros civilizados “falam numa língua e escrevem noutra”. Aproxima-se do anarquismo de Oswald de Andrade para escarnecer de todos os aspectos praticamente da metrópole desumanizada: desde o culto dos heroicos Bandeiranteses até os descalabros atualíssimos da desertificação crescente do Brasil, suicídio coletivo exigido para o lucro de poucos. Mário de Andrade vai mais além, zombando, em tom de discurso recheado de retórica cediça dos políticos, do governo, da tecnologia, da polícia, tudo com cores de uma ironia feroz:

“Enfim, senhoras Amazonas, heis de saber ainda que a estes progressos e luzida civilização, hão elevado esta grande cidade os seus maiores, também chamados de politicos. Com este apelativo se designa uma raça refinadíssima de doutores, tão desconhecidos de vós, que os diríeis monstros. Monstros são na verdade mas na grandiosidade incomparável da audácia, da sapiência, da honestidade e da moral; e embora algo com os homens se pareçam, originam-se eles dos reais uirauaçus e muito pouco têm de humanos. Obedecem todos a um imperador, chamado Papai Grande na gíria familiar, e que demora na oceânica cidade do Rio de Janeiro - a mais bela do mundo, na opinião de todos os estrangeiros, que que por meus olhos verifiquei.”

O dístico que Macunaíma adota e reitera - “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são” - retrospectivamente revela a lentidão do progresso social nos 50 anos que decorreram desde que o livro foi escrito e hoje de 1978, com lances de ficção científica que vislumbra profeticamente na luta final entre os homens e os insetos, a derradeira etapa da sobrevivência das espécies mais aptas previstas sombriamente por Darwin.

No final, poeticamente, como em lendas gregas ou amazônicas, Macunaíma perde a condição mortal para se tornar a constelação da Ursa Maior, como na mitologia ateniense Berenice ascendendo aos céus boreais. Macunaíma desiste de lutar na Terra contra os ardis de um Brasil que ele pessimisticamente via como incorrigível pela inação dos governos, pelo desamparo do povo, pela ignorância e inércia da população. Não é uma conclusão política, porém, nem a denúncia ideológica de um sistema ou regime que Mário de Andrade reserva como capítulo final de seu livro germinal, embora artisticamente inferior a seus contos. É uma atitude filosófica que abrange toda a ação e toda a omissão humanas em sua constatação do sofrimento humano. Da mesma forma, não há o menor vestígio de uma feição religiosa na sua negação da condição humana. É uma freudiana e talvez involuntária autobiografia do intelectual que se confrange diante do contraste entre a pequenez dos homens e a magnitude da natureza e dos problemas do Brasil. As frases finais são um retrato de Macunaíma e também do próprio Mário de Andrade que em versos já se identificara, em outro trecho de sua vasta obra, com o multiforme anti-heroi humaníssimo e suas andanças:

“A Ursa Maior é Macunaíma. É mesmo o heroi capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1978) 2022. “Astuto ou generoso. Mas sempre amoral .” In Alguns artistas da Semana de Arte Moderna de 1922: Entrevistas, depoimentos e ensaios, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 5. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.