O adeus do mestre: Para a pintura brasileira, ficam as mulatas, o morro, o mar e a Semana de Arte Moderna
Alegre, generoso, bom: Emiliano Di Cavalcanti, um dos mestres da pintura brasileira, é de uma afetividade imediata e constante. Trata com a mesma delicadeza um garçom de restaurante e uma duquesa européia. Engraçado, contador de casos e piadas espirituosas, prende seus ouvintes horas a fio numa conversa desordenada mas sempre cheia de calor humano e de uma malícia brejeira e inocente. Quer criar no Rio, com seu amigo, o ensaísta Francisco de Assis Barbosa, um Museu da Paisagem Carioca, para conservar pelo menos nos quadros a natureza que o homem massacra dia a dia justamente onde ela é mais privilegiada.
Com vocação para sheik de muitas favoritas num harém sempre mutável, em Paris, no largo do Catete ou em São Paulo, desinteressou-se de uma bela mulher que lhe apresentaram num hotel em que estava hospedado em Lima porque “ela era erudita demais e falava da cultura europeia a noite toda sem parar”. Supersticioso, não aceita o saleiro passado de mão em mão: pede que ponham sobre a mesa, “porque, senão, sabe a crendice italiana?, quem recebe o sal no ar é o primeiro a morrer naquela mesa”.
Quando - raramente - sua memória esquece algum nome ou data, diz que pode ligar para Luísa Guedes, a instituição mais importante de sua organização doméstica: ela é sua governante, quituteira, secretária, benzedeira contra mau-olhado dos invejosos (com potentes ramos de arruda amarrados no cavaletes e detrás das portas) e também uma eficiente afastadora de pessoas inconvenientes, com a frase indefectivel, à porta ou ao telefone: “Quer falar com seu Di? Acontece que ele agora está dormindo”. Acha que falta imaginação aos governantes brasileiros e tem um plano para salvar a velha igreja dos Martírios, no Recife, transformá-la numa ilha para pedestres, arborizada, e deixar o trânsito de automóveis circundá-la. Elogia a pureza e a dignidade do militar porque teve no pai, oficial do Exército, um modelo de honradez e de inteligência, commbatendo os que “quebravam lampiões” para não serem vacinados contra a febre amarela no governo de Rodrigues Alves.
Aos 74 anos, achando-se hoje mais apaziguado no seu arrebatamento erótico e político graças à pintura, que lhe deu estabilidade emotiva, chama no entanto a atenção para toda moça bonita que passa na rua e está fazendo atualmente desenhos admiráveis em que mistura o erotismo de sua pintura (e de sua riquíssima coleção de livros-cochon) e o surrealismo de tantos de seus quadros menos conhecidos do público. Hóspede tradicional de um hotel de São Paulo há doze anos, é chamado de “Maestro” pelos garçons, pelo gerente, e recorda os apertos de seu amigo, o poeta italiano Ungaretti, que aos oitenta anos de idade refugiou-se em seu quarto, perseguido por uma jovem bonita e apaixonada, surda a seus gritos que ecoavam pelos corredores do hotel: “Ma, signorina, io sono un anziano!” (Mas, senhorita, eu sou um ancião!). Nos últimos meses, em luta contra uma cirrose aguda, perdeu 15 quilos (pesava 108), parou com bebidas, ficou pálido, abatido. Conservou no entanto seu bom humor. Lembra imediatamente fisionomias e nome de pessoas que encontra nesses dias em que está em São Paulo para sua monumental retrospectiva. Ri muito, sempre que duvida do valor de alguém (“Monteiro Lobato? Que mediocridade!”), mas logo corrige com efusão afetiva (“Mas era humanamente um ótimo sujeito”). Ora com seriedade triste, ora em tom de brincadeira, ameaça constantemente ir para Pasárgada, no seu caso, Paris: “Vou em busca do meu tempo perdido”.
Como nasceu a Semana, os anos 20 em Paris e o futuro
Atribuem a mim a iniciativa da Semana de Arte Moderna de 1922, mas eu não tenho muita culpa dela. Foi o seguinte: o Graça Aranha veio para São Paulo e eu, como carioca que viajava sempre de lá para cá, sabia que ele estava organizando um grupo no Rio. Então nós realizamos aqui, na livraria O Livro, do Jacinto Silva, as primeiras discussões para ver as possibilidades de se fazer, não uma Semana de Arte Moderna, mas uma reunião de escritores, de pintores, de músicos de tendências modernas para iniciar um movimento contra o academicismo aqui em São Paulo, que era arrasante.
Praticamente não existiam pinacotecas, que eu me lembre, a não ser as que lecionavam só de maneira acadêmica. Existia um curso de El Ponce e Zadig, que eram homens mais adiantados, as frequentado só por quem podia pagar: eram modernos, impressionistas e expressionistas. Quando o Graça Aranha chegou, contei a ele o que nós estávamos fazendo aqui. Nós éramos: eu, Mário (de Andrade), o Menotti (del Picchia), o Guilerme (de Almeida), o Rubem Borba ALves de Morais, o Oswald de Andrade. O Paulo Prado, não: ele só veio mais tarde, com a Semana mesma. Nessa altura ele não era conhecido do nosso grupo ainda. (Nem a Tarsila, que era acadêmica: justamente, era do outro lado, depois de 1922 é que ela mudou.) Aí o Graça Aranha, à noite, encontrou-se comigo e disse: “Olha aqui um cartão: você vai à casa do Paulo Prado, porque eu já falei com ele e ele se entusiasmou e pode dar a ajuda financeira de que vocês necessitam”. E me perguntou: “Você não conhece o Paulo? É um intelectual formidável!” (Ele, Paulo Prado, não tinha publicado ainda livro nenhum.) “É um homem de muito gosto, fino, então você vai à casa dele.”
Eu fui, na noite seguinte, e o Paulo Prado me perguntou: “Qual é a ideia de vocês?”. Eu Expliquei: nós queríamos fazer isto, conferências e tal e ele dizia: “Mas isso aqui em São Paulo é perigoso: vira sarau, vão moças recitar!” Sabe, era o tom de vida intelectual naquela época, aparecia o Coelho Netom, não é?, que começava a recitar, improvisava contos, como um a que eu assisti uma vez, intitulado “O Alcantil”, imagine!, e foi um grande sucesso. Mas eu disse que não, que não ia ser assim, comecei a demonstrar que eu conhecia arte moderna, os autores modernos, as pinturas modernas, mas ele insistiu: “Não, aqui é muito difícil”. E me mostrou os quadros que ele tinha, um Bonnard, um Léger, tinha aquelas coisas assim e eu fiquei muito entusiasmado. E nessa conversa, como tinha revistas franceses por ali, a Marinetti, a mulher dele, lembrou que em Deauville estava-se fazendo uma Semana de Arte e de Moda, sabe, aquelas coisas da belle époque, 1921. Aí eu perguntei: “Então por que não se faz aqui uma Semana de Arte Moderna?” Foi uma frase que ele achou boa, todos que estavam ali também concordaram, já nem me lembro bem quem mais estava lá, mas a Semana tinha sido batizada, sem querer. Aí já começaram a discutir: mas uma Semana? Por que não se fazer no (teatro) Municipal? Eu achei bom o Municipal por causa da música. O Vila-Lobos, do grupo do Rio, estava muito ligado conosco, e nós, o Manuel Bandeira e eu, chamamos o Vila-Lobos. Ele ia sempre à casa do Manuel Bandeira e era da maior ignorância, nem sabia qual era a poesia que o Baudelaire fazia, dizia por exemplo: Estou fazendo umas composições muito finas, muito graciosas, sabe? São ilustrações dos poemas de Baudelaire! (ri) Mas era uma grande figura! Afinal, o Graça Aranha voltou ao Rio e organizamos a Semana de Arte Moderna.
As pessoas que cacarejaram, vaiaram e miaram no Municipal eram um grupo pequeníssimo, de estudantes dirigido pelo Pinto Alves, pelo Antônio Alcântara Machado. O paulista não é de vaiar nem de aplaudir, é um tímido, e as vaias começaram porque o Paulo Prado tinha um amigo aviador, o Cícero Marques, e achando tudo muito frio, então disse: “Começa a vaiar, Cícero”. Foi assim que os estudantes vaiaram também. Foi vaiado principalmente o discurso do Graça Aranha. Vairam as músicas também, tanto que a Guiomar (Novaes) não queria mais tocar.
De momento, a Semana de Arte Moderna teve como influência essa reação de choque. E depois, para as pessoas que se interessavam por literatur, foi a posição do Graça Aranha na Academia Brasileira de Letras, no Rio. Aliás, a repecussão no Rio foi talvez maior, porque os meio de repercussão aqui eram pequenos: o Estado, o Correio Paulistano e o Jornal do Comércio eram muito pouco lidos. O Rio era mais aberto: quem era conhecido no Rio, era conhecido no Brasil.
Quando eu fui a Paris pela primeira vez, em 1924, quando terminava meu trabalho para o Correio da Manhã, ficava mais ou menos livre, mas não tinha dinheiro para ter um atelier. Morava num quartinho e procurava cursos no Vieux Colombier, aquele teatro antigo, que tinha cursos de tudo: Jouvet dava um curso de interpretação, aquele outro, o Roger Martin du Gard, dava de literatura, um grande diretor ensinava teatro, etc. Eu queria me matricular para matar o tempo, e o único curso que tinha vaga era o de palhaço. Curso prático, dado pelo Frateellini, tenho até livros que ele me ofereceu. No curso tinha uma porção de gente, todos aprendendo a ser palhaço e eu também, então ele contava aquelas coisas, só ensinava o que ele fazia no palco: na entrada do picadeiro o palhaço não deve se comover, deve observar muito o público. Eu fiquei amigo dele e à noite eu ia ao circo, era justamente a época em que o circo estava na moda, o Cirque Métrano, os modernistas o frequentavam, Cocteau, Rouault, foi minha iniciação da vida em Paris.
Outra coisa interessante que aconteceu foi que o velho Bittencourt do Correio da Manhã, me mandou supervisionar os telegramas avançados para combater o governo, estava brigando com o Bernardes e acabou na cadeia. Eu ia então para a Agência Havas. Lá, quem trabalhava ao meu lado era o Campigli, aquele pintor italiano, mas o Massimo (Campigli) não sabia que eu era pintor nem eu sabia que ele era, estávamos ali como dois redatores e correspondentes de jornais. E naquele tempo Valéry era um dos grandes homens da Agência Havas. Só se falava em Monsieur Valéry e ninguém sonhava que era o grande poeta Paul Valéry…
A vida que eu levava em Paris sempre foi dividida entre boêmia e livros. E pintura, depois. Eu recebia muito dinheiro naquela época, era pago de três em três meses, o câmbio era muito bom, dava para viver muito bem. Mas, quando o jornal fechou, eu, como era muito imprevidente, não tinha dinheiro e pensei: como é que vai ser? Mas através de um amigo francês eu comecei a trabalhar na feitura de cartazes. Porque antigamente não se imprimiam os cartazes enormer, não: eram todos feitos à mão. Eles pagavam os pintores para reproduzir as figuras Bébé Cadam, Sabonetes, Dubo, Dubom, Dubonnet, eu ia pintar lá na maison Duphael, recebia 15 francos por dia por esse trabalho.
Fui morar fora de Paris, em Saint Dennis. Vem daí a minha ligação com o socialismo comunista: o maire de Saint Dennis era comunista. Foi nessa época que morreu o Lenine, houve o enterro simbólico de Lenine na França. Eu não sabia muito dessas coisas naquele tempo, fiquei impressionado, de fato era impressionante aquele desfile, Paris toda de preto. (Agora, quem está falando da casa em que nasceu Lenine é o Brezhnev, esse funcionário gordinho, cheio de dinheiro.) Depois não aguentei: o dinheiro ganho co os cartazes era pouco, eu já tinha mulher, voltei então para o Brasil. Aí já era 1925, o período em que fervia a política. Tinha acabado a Revolução de 1924 e começado a Coluna Prestes, que colegas meus faziam, não é? Cordeiro de Farias, o próprio Prestes, de modo que eu tive logo uma ligação, mas sempre pintando e trabalhando, em jornais aqui em São Paulo. Daí veio minha fase de ilustração, no Diário de São Paulo, com caricaturas, minha fase urbana.
Meu marxismo é mais um sentimento humano e emotivo do que partidário e de rigueur, realmente nunca fui o que se pode chamar de marxista. Eu li Marx muito depressa, muito fragmentado, porque eu não tenho cabeça para repousar nas cacetadas que o Marx dá. Mas eu fui um homem de formação anarquista, porque quando eu trabalhava aqui, na revisão de O Estado de São Paulo eu trabalhava com Everaldo Dias, que foi um grande anarquista conhecido, o Antônio Figueiredo. Nas redações dos jornais havia muitos anarquistas. Chamavam-se anarco-sindicalistas, aquele história de “Si hay gobierno, soy contra”. Em 1919 assisti à grande greve que houve aqui e o Júlio de Mesquita saiu à rua defendendo a passeata. O interessante é que naquela época a liberdade era fantástica, havia até jornais anarquistas. Foi na época da fundação do Partido Comunista Brasileiro, em 1922, no meu bairro lá do Rio, São Cristovão.
Eu digo que se sou o primeiro pintor que colocou o povo do Brasil nas telas isso não é por mim, é porque dizem isso de mim, dizem que é uma verdade histórica e eu repito. Há muitos anos foi grande amigo meu e era embaixador no Brasil o grande humanista Alfonso Reyes, mexicano. Em 1919 eu estava fazendo os murais do teatro João Caetano no Rio e ele então me disse: “Olhe, isso que você está pintando é uma humanização do que os mexicanos fazem de modo demasiadamente político. Você faz o povo dançando, assim você traz mais amor ao povo do que através de slogans políticos e tudo mais”.
O segundo número da revista Sur de madame Victoria Ocampo, em Buenos Aires, publicou essas fotografias dos meus murais com esses comentários do Alfonso Reyes. Sabe por que os pintores populisas mexicanos como Orozco, Rivera, e Siqueiros influenciaram a minha pintura? Porque foram os primeiros que eu vi que tinham comunhão com o povo, representavam o povo e o sofrimento do povo. Quando eu comecei a pôr mulatas e pessoas do povo nos meus quadros, naquela época em que a gente “de bem” encomendava retratos aos pintores, a reação foi péssima: no começo, vaiaram a minha exposição no Rio, jogaram bombas de São João, pós malcheirosos lá no Liceu de Artes e Ofícios, estavam muito contra mim. Aliás, a primeira reportagem que saiu sobre favela, sobre pretos, e tudo isso foi feita pelo meu grande amigo Osvaldo Costa no Correio da Manhã e eu ilustrei. Isto antes da Semana de Arte Moderna: nós subimos o morro, porque éramos muito amigos do Pixinguinha, do Donga, do Sinhô, na nossa boêmia íamos ao mesmo bar que eles, o bar Adolfo, no largo da Carioca, o Braço de Ferro, na rua da Assembleia, frequentado pelo Lima Barreto, o escritor de que eu gostei mais, sempre.
Eu acho que o governo atual, chamando para certos postos homens de grande competência e cuidando de certas coisas que eu não entendo mas que parecem boas, concorre para o desenvolvimento natural do Brasil em certos aspectos. Em outros poderia concorrer melhor, como no plano cultural. Ultimamente houve uma conferência na Escola do Estado-Maior, um chefe militar dizia justamente isso: que estava chegando o momento do alargamento cultural do Brasil de hoje. A censura, por exemplo (embora eu não seja censurado), podia ser aproveitada não para perseguições políticas individuais, mas para perseguir a ignorância violentamente, nos jornais. Os jornais não poderiam dar dez páginas sobre futebol e não dar nenhuma página sobre arte, o rádio e a televisão não poderiam encher seu tempo com novelas cretinas, nem notícias idiotas ou músicas americanas e sim criar, de fato, alguma coisa pela cultura do povo. Aliás isso parece que está no programa do atual ministro da Educação, segundo amigos dele que eu conheço. Outra coisa que é preciso repetir no momento atual e que vem em defesa do governo, em parte, é que os militares não são culpados desta situação, não: os culpados são os que se acovardam diante dos problemas políticos e vão logo procurar um militar para solucionar. Ora, a solução do militar é uma solução disciplinar e de guerra: o militar só aprende a solucionar as coisas considerando o inimigo que ele tem de enfrentar e vencer. Na política cultural não pode haver esse equacionamento, mas os políticos brasileiros, em todas as épocas da História, são de tal covardia, que a primeira coisa que eles procuram diante de qualquer problema é um militar.
Há uma coisa que eu gostaria de dizer para terminar e que é uma confissão muito pessoal: muita gente me censura por eu ter amigos em todas as facções e tendências políticas. Os sectários queriam que eu tivesse amigos só de uma ideologia. Mas isso vem do meu temperamento: eu por exemplo não sou um homem que possa ter uma mulher só, de maneira que não posso gostar só do Delfim Netto e do Ulysses Guimarães. E tenho grandes amigos entre os militares também, como o marechal Ademar de Queirós, que foi meu colega de colégio, o Cordeiro de Farias, o general Lyra Tavares, embaixador do Brasil na França, que conseguiu por intervenção pessoal e amiga que o Musée d’Arts Modernes emprestasse à minha exposição de agora, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o meu quadro que eles adquiriram, a Dança Popular. E Sou amigo também do Sobral Pinto, que é o eterno opositor.
É curioso, sabe? Eu falo tanto do Brasil, me preocupo tanto com a evolução da nossa cultura, mas com a minha doença agora eu já decidi: vou embora para a França. Estou acertando com galerias de amigos meus para cuidarem da venda dos meus quadros e eu fico lá, em Paris, pintando e esperando a morte. Pelo menos morro na terra que inventou a liberdade. Já calculou que delícia deve ser “mourrir dans les beaux lits de France?” (morrer nas lindas camas da França?)
Em 486 quadros, todo o lirismo de um artista da realidade
Até aproximadamente 1926, a pintura de Di Cavalcanti é ainda a de um artista inseguro, como demonstra desde a semana passada a retrospectiva idealizada e organizada pela diretora do Museu de Arte Moderna de São Paulo, Diná Lopes Coelho. São retratos de mulheres da sociedade, ruas de Paris que lembram Utrillo mais maciço nas formas, saltimbancos que recordam Rouault e De Chirico, uma mistura de penúria humana e de surrealismo. Depois de 1926 a pintura sobe o morro e a favela é retratada pela primeira vez numa série admirável. São cenas de samba, de formas levemente cubistas e excelente composição dos grupos de dançarinos e músicos. Os morros cariocas explodem como imagens de luz e de uma doçura só encontrável na pintura brasileira em certas visões barrocas de Ouro Preto interpretada por Guignard.
Quase ingênuas, outras telas mostram mulatas voluptuosas estendidas na cama, com violões abandonados ao lado e no fundo a bandeira brasileira na parede e uma nesga de mar percebida da sacada. Seu Nascimento de Vênus tem o agrupamento triangular típico das Pietà sacras de Bellini, mas a divindade que jaz no colo das mulheres é uma mulher carnosa, nua, na praia, ao lado de mulatas sestrosas que penteiam o cabelo ou vigiam a beldade surgida do mar. São os três M esplêndidos do pintor que comemora cinquenta anos de criação: as mulatas, o mar e o morro. Às vezes com a adição de um quarto M dedicado aos músicos dos blocos de carnaval ou das canções cantadas junto fogueiras de festas juninas. No calendário de empresas industriais, suas figuras surgem também nos desenhos, nas joias, nas caricaturas, nos cartazes.
“Criar é acima de tudo dar substância ideal ao que existe”, proclama uma frase do próprio Di pendurada no museu ao lado de suas 486 criações mgnificentemente expostas. É um itinerário ideal e concreto que o visitante percorre, num dos raros momentos em que a realidade é apreendida em toda a sua potencialidade de lirismo. Cada quadro parece uma repetição da célebre frase do poeta romântico alemão Novalis: “Só o poético é verdadeiro, quanto mais poético, mais real”.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {O adeus do mestre: Para a pintura brasileira, ficam as
mulatas, o morro, o mar e a Semana de Arte Moderna},
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Entrevistas, depoimentos e ensaios},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
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doi = {10.5281/zenodo.8368806},
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abstract = {Veja, 1971-11-3. Aguardando revisão.}
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