Inferno em Auschwitz: resenha sobre o livro Isto é um homem? de Primo Levi

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1988/12/24. Aguardando revisão.

“Os personagens destas páginas não são homens” P. Levi

Nós todos, instintivamente, nos recusamos a ler um livro de campos de concentração. O Arquipélago Gulag, de Soljenitsin, sobre o inferno gélido da prisão soviética na Sibéria ou Treblinka, de Jean Steiner, sobre o massacre e tortura dos prisioneiros judeus no campo de extermínio criado e dirigido pelos alemães nazistas na Polônia parecem testemunhos demasiado eloquentes da bestialidade sádica do ser humano contra o ser humano. Nossa época, porém, mesmo que os novos livros não cheguem a ser traduzidos no Brasil, como History’s Carnival de Leonid Plyuschch, a respeito das hediondas clínicas “psiquiátricas” da União Soviética, de destruição de dissidentes, religiosos e homossexuais por meio de alucinógenos injetados na carótida, mesmo assim os relatos continuam a ser publicados. Constroem uma sinistra espiral de descrença em qualquer “progresso” espiritual do homem.

Não que a ditadura getulista não tenha também no Brasil deixado a sua marca em Memórias de Cárcere de Graciliano Ramos e O Louco de Cati de Dyonélio Machado. E agora a Editora Rocco nos propõe 175 novas páginas de ignomínia, de desesperança e carnificina com É Isto um Homem? de Primo Levi: por que reviver tudo isso agora que a Alemanha próspera tem um enxame de historiadores que recusam a culpa do povo alemão pelos Vernichtungslager, “campos de extermínio”, relativizando esses crimes, banalizando-os ao compará-los com a escravidão de povos conquistados, em Roma, e o cativeiro dos negros trazidos da África para as Américas? E indagam: dizimar as tribos indígenas nos Estados Unidos, no Brasil, na Argentina, aniquilar a cultura dos astecas, maias, toltecas e incas no México, na Guatemala e no Peru não são momentos tão selvagens quanto os causados pela loucura coletiva alemã durante a liderança de Hitler? Por que, insistem, as fogueiras do fanatismo da Santa Inquisição são tópicos que se esquecem e se fala sempre da Endlosung (a solução final) ordenada por Hitler de extirpar da Alemanha e dos países ocupados os “vermes subumanos” como os judeus, os eslavos, os homossexuais, os ciganos?

O que distingue estas páginas de Primo Levi é justamente a sobre humana objetividade, se se puder usar este termo com relação a tais situações, com a qual ele relata sua temporada no inferno de Auschwitz, de onde sobreviveu com apenas mais dois prisioneiros, dos 650 que para lá foram levados. Primo Levi, por razões mesquinhamente ideológicas e de “relações públicas”, é muito menos conhecido, até na própria Itália, do que Carlo Levi. Este Levi, extraordinário autor de sua prisão pelos fascistas italianos na região meridional da Lucânia, testemunhada no comovente Cristo si è fermato a Eboli (“Cristo se deteve em Eboli”), foi deputado comunista e seu talento literário foi até certo ponto “promovido”, sem que esse aumento de sua fama diminua minimamente seu valor artístico. E Primo Levi? Um obscuro químico judeu, formado pela Universidade de Turim, no Norte da Itália, espiritualmente não resistiu à lembrança de Auschwitz nem buscou jamais a celebridade nem da literatura nem da política. Primo Levi é sóbrio sempre, nunca dado a exageros: tem aquela funda marca de humanidade cálida dos italianos e não infunde a seu relato o propósito de acusar: restringe-se apenas, como indizível modéstia depois do que sofreu, a advertir o leitor no prefácio:

“Este meu livro, portanto, nada acrescenta, quanto a detalhes atrozes, aos que já é bem conhecido dos leitores de todo o mundo com referência ao tema doloroso dos campos de extermínio”

Mais enfaticamente ainda:

“Ele (este livro) não foi escrito para fazer novas denúncias: poderá, antes fornecer documentos para um sereno estudo de certos aspectos da alma humana”.

A concepção fundamental é a de detestarmos, preliminarmente, tudo que seja “diferente” de nós. É a convicção que ele sublinha de que

“Muitos, pessoas ou povos, podem chegar a pensar, conscientemente ou não, que cada estrangeiro é um inimigo”.

Levas às últimas consequências a arrogância de quem se sente “superior” a uma raça, um partido político, a uma minoria erótica ou a uma seita religiosa é ir, por meios tortuosos, ao Campo de Extermínio, argumenta convincentemente Primo Levi. O Campo de Extermínio

“é o produto de uma concepção do mundo levada às suas últimas consequências, com uma lógica rigorosa. Enquanto a concepção subsistir, suas consequências nos ameaçam. A história dos campos de extermínio deveria ser compreendida por todos como sinistro sinal de perigo”.

Teria Primo Levi tido notícia da reorganização dos neonazistas alemães atualmente, amplamente documentada pela revista semanal alemã Der Spiegel? Ele veria na ferida que infecciona toda a África do Sul, o ódio aos negros, os primeiros sinais de que novas Auschwitzs se desenham já no horizonte? Em entrevista, no ano de sua morte, em 1987, ao suplemento literário do jornal The New York Tomes, ele, sem nem remotamente inocentar os alemães do genocídio, revelava uma faceta insuspeitada do horror: quando as tropas russas ou norte-americanas chegaram, vencedoras, aos campos de concentração nazistas, libertaram, na realidade, em muitos casos, os encarcerados mais fortes, mais cruéis com seus companheiros de inferno, pois justamente os fracos, os que se compadeciam dos demais tinham já sido aniquilados por um processo de “seleção natural” dos mais aptos à sobrevivência…

Capturado, sob a única “acusação” de ser judeu, em 1943, em Turim, logo as primeiras imagens dantescas do “KZ” (em alemão: Konsentrationslager ou campo de concentração) abalam inesquecivelmente o leitor:

“Na manhã do dia 21, porém, soube-se que os judeus seriam levados no dia seguinte. Todos, sem exceção. Inclusive as crianças, os velhos, os doentes. Não se sabia para onde. A ordem era preparar-se para uma viagem de quinze dias. Se um prisioneiro faltasse à chamada, dez seriam fuzilados.

… De que deveríamos nos arrepender ou sermos perdoados?… Cada um se despediu da vida da maneira que lhe era mais convincente. Uns rezaram, outros se embebedaram; mergulharam alguns em nefanda, derradeira paixão. As mães, porém, ficaram acordadas para preparar com esmero as provisões para a viagem, deram banho nas crianças, arrumaram as malas, e, ao alvorecer, o arame farpado estava cheio de roupinhas penduradas para secar.”

Primo Levi filosofa a respeito da condição humana: todas as lides materiais se esgotam com o encontro inevitável com a morte. O futuro será esperança ou dúvida, mas a vida humana não contém o infinito. Dentro daquele Circo da absoluta Desumanização que foi Auschwitz, todos os domingos havia concertos de música clássica e partidas de futebol. A arbitrariedade mais sádica regia cada passo: descer de um lado rotulado de “errado” dos vagões de trem apinhados acarretava a morte, descer, por mero acaso, do lado “certo” permitia a sobrevida no campo de aniquilamento encimado pelas letras garrafais e irônicas: “Arbeit macht frei” (o trabalho liberta) e isolado por cercas de arame eletrificado.

“Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa: a aniquilação de um homem… Mas que cada um reflita sobre o significado que se encerra mesmo em nossos pequenos hábitos de todos os dias, em todos esses objetos nossos, que até o mendigo mais humilde possui: um lenço, uma velha carta, a fotografia do ser amado”.

Aquel ser esvaziado de lembranças torna-se uma palavra e um número: Häftling (prisioneiro) 174.517. Ele se torna o número tatuado em marcas azuladas sob a pele. E como é difícil reconhecer seu próprio número, durante as constantes chamadas berradas num idioma que ele desconhece: o alemão!…

Dentro da macabra organização minuciosa germânica, havia o Comando-de-Descascar-Batatas, havia as “piadas” ameaçadoras: “Daqui só se sai pela chaminé” e as respostas brutais: Warum? (por quê?) Hier est kei Warum (aqui não existe por quê!) e ele compreende que tudo é proibido, não por motivos inexplicáveis, mas porque a razão de ser do Campo é essa: ali tudo se codificou alucinadamente com o intuito expresso de instituir a morte, a loucura, o chicote, o trabalho forçado, a fome permanente. Assim, por que admirar-se de que o sentido alemão da ordem mantenha um Frauenblok, um Bloco das Mulheres, o prostíbulo do Campo, servido por moças prisioneiras polonesas e reservado aos Reichsdeutsche (alemães do ariano Reich hitlerista). As proibições abarcam todo um universo: é proibido ter ou usar tesouras, portanto os pés se tornam uma parte torturante do corpo, pois as unhas crescem e só podem ser cortadas com os dentes, quando forem as das mãos; as dos pés se decepam com o atrito diário dos tamancões pesados e cortantes.

“A morte começa pelos sapatos. Eles se revelaram, para a maioria de nós, verdadeiros instrumentos de tortura que, após umas horas de marcha, criam feridas dolorosas, sujeitas a infecção na certa. Arrastam-se como podem aqueles integrantes de um exército de fantasmas vivos, apanham por qualquer motivo verdadeiro ou inventado na hora e ainda não falamos do trabalho que por sua vez é um emaranhado de leis, tabus e problemas, nem da sopa e da alimentação: como comer se não havia colheres? A tudo se somava a confusão das línguas, quase todas mutuamente incompreensíveis, e o único valor de troca passa a ser o pão, ‘moeda’ daquele Hades”.

Dentre os inúmeros momentos pungentes, magníficos deste livro inesquecível em toda a literatura carcerária do Ocidente, destacam-se, se for possível selecionar apenas dois dentre tantos, a afirmação da dignidade e de resistência a quem os condenou a serem uma “sub-raça”.

“Justamente porque o Campo é uma grande engrenagem para nos transformar em animais, não devemos nos transformar em animais; até num lugar como este, pode-se sobreviver, para relatar a verdade, para dar nosso depoimento; e, para viver, é essencial esforçar-nos por salvar ao menos a estrutura, a forma da civilização. Sim, somos escravos, despojados de qualquer direito, expostos a qualquer injúria, destinados a uma morte quase certa, mas ainda nos resta uma opção. Devemos nos esforçar por defendê-la a qualquer custo, justamente porque é a última; a opção de recusar nosso consentimento. Portanto, devemos nos lavar, sim; ainda que sem sabão, com essa água suja e usando o casaco como toalha. Devemos engraxar os sapatos, não porque assim reza o regulamento, e sim por dignidade e alinho. Devemos marchar eretos, sem arrastar os pés, não em homenagem à disciplina prussiana, e sim para continuarmos vivos, para não começarmos a morrer”.

E quando, em meio à neve, ao frio, à exaustão de carregar ferros imensos para a “fábrica”, o autor tenta explicar a um prisioneiro francês, Jean, o que foi a Idade Média e, para que ele aprenda italiano, recita em meio à barbárie cotidiana, os versos de Dante da Divina Comédia:

“Considerante la vostra semenza:

Fatti non foste a viver come bruti,

Ma per seguir virtude e conoscenza”,

que o tradutor interpreta como:

“Relembrai vossa origem, vossa essência;

Vós não fostes criados para bichos,

E sim para o valor e a experiência”

Tinham “regalias” no campo como ser lavador da panela de sopa, o que angariava ao “candidato” poder raspar o fundo em busca de restos de alimentos, se nomeado Scheissmeister (Inspetor de Latrinas, ou, literalmente, Mestre da Merda) ou Bademeister (Encarregado dos Banhos) aquele exíguo punhado de médicos, alfaiates, sapateiros, músicos, cozinheiros, os homossexuais jovens e atraentes, os amigos ou conterrâneos de alguma pessoa influente no Campo, e, “além deles, alguns indivíduos, especialmente forte e desumanos, que alcançaram o cargo de Kapo, de Chefe do Bloco ou outro, por designação dos SS que, nessa escolha, demonstravam possuir um conhecimento satânico dos homens.”

Primo Levi não é, tudo indica, um crente. As palavras de fé religiosa não se encontram nesse livro. Quando um judeu de convicção fervorosa reza em voz alta, agradecendo a Deus por não ter sido selecionado naquele dia para ser eliminado logo, ele reage com veemência interior:

“Do meu beliche, no terceiro andar, vejo e ouço o velho Kuhn, rezando em voz alta, com o boné na mão, meneando o busto violentamente. Kuhn agradece a Deus porque não foi escolhido. Insensato! Não vê, na cama ao lado, Beppo, grego, que tem vinte anos e depois de amanhã irá para o gás e bem sabe disso, e fica deitado olhando fixamente a lâmpada sem falar, sem pensar? Não sabe, Kuhn, que da próxima vez será a sua vez? Não compreende que aconteceu, hoje, uma abominação que nenhuma reza propiciatória, nenhum perdão, nenhuma expiação, nada que o homem possa fazer, chegará nunca a reparar?

Se eu fosse Deus, cuspiria fora a reza de Kuhn”.

Ele consegue, com uma serenidade quase inimaginável, refletir sobre o Campo de Extermínio: valeria a pena consigná-la, essa experiência para que futuramente os homens livres extraíssem dela experiência sobre o ser humano? De que adianta saber que a esmagadora maioria dos seres humanos perde praticamente tudo o que o distingue como ser humano, e que diante de necessidades prementes como o sofrimento físico nós, quase todos nós, cedemos perante a selvageria do verdugo?

Tira conclusões políticas e sociais de sua passagem por aquele lugar habitado pela morte, pelo assassínio, pela fome, pela dor: entre os seres livres, “considera-se tanto mais civilizado um país quanto mais sábias e eficientes são suas leis que impedem ao miserável de ser miserável demais, e ao poderoso de ser poderoso demais”.

Com a decisiva mudança no curso da guerra, os aviões aliados sobrevoam com frequência as proximidades do Campo de Auschwitz: aos prisioneiros é proibido abrigar-se dos bombardeios cada dia mais intenso nos abrigos exclusivos dos alemães arianos. Os doentes literalmente apodrecem literalmente apodrecem lentamente nos beliches, quando a “enfermaria”, atalho para a câmara de gás, é abandonada e o lúgubre Campo de Extermínio cumpre sua missão e faz jus, plenamente, a seu nome.

Será impossível ler as últimas páginas sobre a libertação de Auschwitz de três homens apenas sem refletir no mal, na dignidade humana, no sofrimento atroz, na coisificação final de um ser humano por outro ser humano.

Nem Primo Levi resistiu. Segundo as versões mais atendíveis, a desesperança na humanidade, no estágio bruto em que se encontra, o levou ao suicídio em sua casa, inútil a vitória aliada sobre o nazifascismo? Inútil a retomada da vida “normal”? Inútil o exercício de sua profissão de químico? Inútil ter vivido depois de tal aniquilamento físico e espiritual?

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Inferno em Auschwitz: resenha sobre o livro Isto é um homem? de Primo Levi .” In Perscrutando a alma humana: A literatura italiana do pós-guerra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 8. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.