Um encontro de Portugal e Brasil. Sobre a liberdade

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1984-10-26. Aguardando revisão.

Para um encontro entre escritores de Portugal e do Brasil, os longos discursos são o agrotóxico mais certo para matar a tenra planta que se quiser cultivar. Depois, é preciso que a platéia jovem tenha um mínimo de respeito democrático pelo direito de outros quererem ouvir o que os escritores dizem. Não é legal - em qualquer sentido do termo - que suas vozes sejam abafadas pelo burburinho de dezenas de estudantes falando mais alto, na platéia, que os convidados, de microfone em punho, e educadamente perplexos no palco.

Com exceção desses senões corrigíveis, a iniciativa da Faculdade Cásper Líbero, inaugurada com um excesso de pompa, na segunda-feira desta semana, poderá ser realmente o início de um intercâmbio fecundo e útil. Por enquanto, vieram a São Paulo dois dos romancistas e contistas portugueses - Baptista Bastos e José Cardoso Pires -, devendo juntar-se a esses nomes o de Joel Serrão, esperado para o encerramento, hoje à noite, no auditório do Masp, na avenida Paulista, deste sonhado intercâmbio. É pena que, no entanto, em parte, ele se transformou no atrito entre uma platéia deseducada e desinteressada e a tentativa de trazer ao Brasil alguma noção do que se passa na literatura e na imprensa portuguesas.

Este I Encontro Luso-Brasileiro de Literatura e Jornalismo teve outros atrativos, além da folclórica couleur locale da má educação juvenil: foi, seguindo a moda talvez do Grupo Sérgio, um churrasco corrido. Incluiu amuos pessoais de poetas que vieram a púlbico chorar a incompreensão e a injustiça de certos críticos de literatura; abarcou aulas sobre a própria grandeza (felizmente só balbuciadas diante de um microfone e uma corbeille de flores, que fizeram as vezes de lago improvisado para um Narciso míope). Deixou farpas delicioasas de escritores que consideravam um poema do Nordeste acometido da loucura de se julgar, grotescamente, um “Rimbaud tropical”. Até declamações ofereceu. E o calor humano, a espontaneidade de Lygia Fagundes Telles, falando sobre a origem de Ciranda de Pedra e As Meninas e a ligação desses seus livros com a sua vida. Foi o seu humor que despertou uma parte da platéia que gostosamente cochilava com os elmos de motocicletas carinhosamente a resvalar para o chão a qualquer momento.

Baptista-Bastos conseguiu logo deixar a timidez de lado para relatar a sua experiência de jornalista e escritor de mais de meia dúzia de livros muito bem recebidos em Portugal (Elegia para um Caixão Vazio, da Editora O Jornal, Cão Velho Entre Flores, da Editora Europa-América, e Cidade Fria, da Editora Futura). Referindo-se à sinistra “síndrome da censura salazarista”, se a pudermos chamar assim, recusou nitidamente “a liberdade escoltada, fardada”. Reconhecendo-se “um filho da liberdade do dia 25 de Abril”, a Revolução dos Cravos que instaurou a democracia em Portugal, depois de quase meio século de imbecilização intelectual dirigida pelo ditador e seus sequazes, rendeu uma homenagem ao Brasil, “pátria de refúgio e resguardo” para numerosos portugueses a fugir do império da estultice instituída. Em seguida reconheceu que o jornalista “arrisca nao só a sua opinião como a sua própria vida de 24 em 24 horas” em um regime tirânico.

É de opinião que os cronistas da era dos descobrimentos marítmos portugueses, como Fernão Mendes Pinto, são jornalistas de seu tempo e lamentou que os professores universitários em Portugal anda não tivessem estudado a história do país e do próprio jornalismo em textos como esse e nos de Herculano, Garret e outros. E fez rir diante de tanta cegueira o juízo que El-Rey D. Manuel fizera da carta de Pero Vaz de Caminha, um texto pornográfico, a relatar amiudadamente as nudezas das índias da ilha de Vera Cruz. Além de citar os grandes escritores jornalistas como Norman Mailer, de Os Nus e os Mortos, o Hemingway e seu diário de viagens pelos continentes salpicado de romances ambientados na África, da Espanha, em Paris, no Caribe, etc. Concordou com André Malraux quando este declarou que a imprensa tem de satisfazer a sede de imaginário do leitor.

José Cardoso Pires, mais conhecido do público brasileiro por sua intensa e reconhecidamente magistral série de livros como O Anjo Ancorado, O Delfim, Balada da Praia dos Cães e outros foi além de seu colega. Emitiu sua avaliação pessoal de tais encontros: permitem que os portugueses e brasileiros, como povos, não tenham um do outro imagens estereotipadas, pobres, que são precisamente as imagens inquestionáveis que certos interesses lutam para manter intactas, a fim de que não se conheça a realidade mais complexa de cada um.

Em 400 dos 500 anos de existência da imprensa de Gutenberg, sempre houve repressão cultural em Portugal.

O romance neorealista lusitano, sob o terrorismo da repressão salazarista, desenvolveu sinais semânticos próprios para oferecer uma resistência ao totalitarismo. Com pesar, pensou nas incontáveis obras mutiladas, jogadas na fogueira da Inquisição pelo Santo Ofício ou por ele esquartejadas em nome de Deus, da Pátria e da Família. Assim, as relações tanto da imprensa quanto da literatura portuguesas, para ele, caracterizavam-se por serem relações de medo, a relação entre o carrasco e a vítima, o que escreve e o que censura. A famosa frase de Salazar, segundo a qual em Portugal já não havia necessidade de censura, porque todos os jornalistas escrevem fiéis ao interesse nacional, lamentou, levou a uma auto-censura insana.

Criou-se ao lado da literatura ou jornalismo escritos toda uma interpretação secreta paralela. Não há distinção entre os dois gêneros, o jornalismo e a literatura, opinou: tal divisão é obra de catalogadores ociosos que forjaram esse Tratado de Tordesilhas falso entre os textos. Essa concepção elitista não corresponde à realidade, é um resto carcomido da querela dos gêneros, é um vício dos estereótipos que leva à necrose da linguagem. E citou João Gaspar Simões, possivelmente o maior crítico que Portugal já teve e suas críticas literárias divulgadas pelo Diário de Lisboa ou o Diário de Notícias, capazes de atingir um público imenso, espalhado pelas mais recônditas províncias e permitindo um consumo democrático, autenticamente popular da literatura e da cultura, sem rebaixar seu nível ao popularesco ou ao comercial/conformista.

Hoje, em Portugal, poetas novos publicam seus livros com tiragens de 10 mil exemplares, um feito não conseguido nem pelos poetas estreantes da Inglaterra, da França, da Itália ou de outros países europeus, ressaltou. Pires finalizou de forma lapidar: o jornalismo e a literatura, quando são bons, é lógico, descentralizam o monopólio da cultura exercido pelos grandes centros. Ajudam a debelar a “desimaginação ambiente”, pois representam, nos casos melhores, um eficaz e duradouro elemento de resistência ao obscurantismo mental, ao embotamento de mentes e corações, aos quais se nega o acesso à verdade.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1984) 2022. “Um encontro de Portugal e Brasil. Sobre a liberdade .” In Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns escritores portugueses, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 6. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.