Trágica, lúcida, renovadora. Doris Lessing

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1976/11/13. Aguardando revisão.

E, mais uma vez, a Roleta Sueca de Literatura parou no número errado. Caprichosa, a bolinha do Prêmio Nobel caiu diante do nome do novelista norte-americano Saul Bellow. Cega, a Loteria Sueca oscila como a espada da Justiça entre o gênio e a mais poeirenta mediocridade, todos iguais perante a Academia de Estocolmo.

Por isso esse pêndulo, hoje desacreditado, às vezes, por acaso, confirma a grandeza atemporal de um Thomas Mann, de um William Faulkner, de um Samuel Beckett. Como, também por acaso, escava profundas camadas de insignificância para delas exibir ao mundo a obscuridade invencível de não-autores como Laxness ou Lagerkvist.

De fato, só a roda indecifrável da Fortuna pode explicar o esquecimento a que o Prêmio Nobel de Literatura relegou, não se sabe segundo quais critérios da Fantasia, os perenes renovadores do romance e do teatro modernos e da poesia do século XX como Ibsen, Tólstoi, Joyce, Proust, Kafka, Virginia Woolf, Rilke.

O Prêmio deste ano da Graça de Nosso Senhor, de 1976, porém, levanta novas dúvidas: além de cego, o Prêmio Nobel de Literatura seria também consciente ou inconscientemente machista?

Não é uma pergunta impertinente. Desde 1901, ele revelou apenas mulheres que se distinguiram por sua excelsa ausência de ter o que dizer e como dizê-lo. Ignorando as mulheres que trouxeram para a Literatura linguagens e temas tão novos e revolucionários como a bomba atômica ou a pílula anticoncepcional, o Nobel se obstina em reconhecer méritos em poetisas e escritoras aparvalhadas. E vem o Prêmio Nobel aureolar de uma glória inexistente uma mulher que é mais mãe piegas do que poetisa, como a chilena Gabriela Mistral. Ou elevar à categoria de valor uma romancista de retórica Kitsch muito próxima do best seller hollywoodiano como a americana Pearl Buck ou mediocridades patrióticas como a sueca Selma Lagerloff ou latinas, como a italiana Grazia Deledda. Depois que a ONU comemorou o Ano da Mulher com fanfarras inúteis, em 1976 critérios (quem sabe chauvinistas?) deixaram de lado nada menos que Doris Lessing. Embora a Literatura não seja um jogo de pôquer ou de figurinhas raras, ela tem critérios de aferição, e, se houvesse justiça, a decisão unâmime reconheceria que Saul Bellow é um escritor importante, não há dúvida possível. Mas reconheceria igualmente que Doris Lessing é a continuadora da esplêndida renovação literária iniciada com Virginia Woolf (nunca contemplada com o Nobel) e que hoje em dia prossegue com a norte-americana Joyce Carrol Oates, a italiana Elsa Morante e a brasileira Clarice Lispector.

Por enquanto, no Brasil, para o grande público, Doris Lessing é apenas um nome. No entanto, para os que conhecem a sua perturbadora criação literária, o seu estilo vibrante e inédito de dizer, o Nobel só pode causar irritação ou escárnio.

Como de praxe, os editores brasileiros começam a revelar os grandes artífices da Nova Literatura deste século divulgando primeiro seu último livro. Por esse motivo, nas estantes de nossas precárias livrarias, é possível encontrar com uma capa imbecil, as Memórias de uma Sobrevivente (Editora Nova Fronteira, 207 páginas, tradução de Clarice Lispector), de Doris Lessing, romance altamente autobiográfico que ela publicou há dois anos em Londres. Essas magníficas Memórias de uma Sobrevivente são a soma final de toda a sua longa criação literária, décadas a fio. Culminam os temas abordados em livros anteriores como o topo de patamares atingidos antes em Briefing for a Descent into Hell, The Summer before the Dark e a sequência que focaliza os Filhos da Violência como Martha Quest, A Proper Marriage, A Ripple from the Storm, Landlocked e The Four-Gated City.

No original inglês, The Memoirs of a Survivor (edição inglesa da Pan Books Limited, na coletânea subintitulada Picador) contém a quintessência do cosmos trágico e lúcido de Doris Lessing. Sua preocupação com a barbárie que se apoderou da civilização planetária aflorou em seus livros muito antes de chegarem às manchetes dos jornais as notícias dos sequestros aéreos, dos crimes do terrorismo de direita e de esquerda que empilham cadáveres da Argentina ao Líbano, da Irlanda à Angola.

Muito antes de a parapsicologia merecer os foros de “ciência” e chamar a atenção da douta Academia Soviética de Ciências, em Moscou, ou da pioneira Universidade de Duke, nos Estados Unidos, já Doris Lessing aludia, nos contos de The Habit of Loving ou de The Black Madonna, a aquele plano metafísico do ser humano. Como ela indaga nestas fascinantes Memórias: haverá seres incorpóreos, talvez extraterrestres, entidades que observam os seres humanos e suas ações sem sabermos se somos estudados por inteligências e percepções maléficas, benéficas ou neutras?

Na Inglaterra, Doris Lessing, há no mínimo vinte anos, é reconhecida unanimemente como a maior escritora viva que escreve em inglês. Mas até em Londres os seus traços biográficos se perdem sempre em resumos de poucos linhas. Sabe-se assim que Doris Lessing nasceu em 1919, na Pérsia (atual Irã) e que cedo foi para uma fazenda na Rodésia em que a minoria branca “liderada” por Ian Smith tenta perpetuar seu domínio racista sobre a maioria negra, a Rodésia, ex-colônia britânica encravada entre Angola, Moçambique e a África do Sul.

Doris Lessing foi, na juventude, militante da esquerda. Seus artigos como jornalista e ensaísta engajada estão dispersos, embora desde 1957 ela tenha soado o alarme para um mundo surdo, na reportagem enfurecida que escreveu sobre o domínio branco escravocrata da Rodésia intitulada Going Home.

O rótulo simplista de socialista ou comunista, porém, não abrange a multiplicidade de facetas que coexistem na personalidade prismática de Doris Lessing. Senão, como explicar a sua profunda análise psicológica de personagens complexos, geralmente reduzidos a bonecos do tipo “mocinho” e “bandido” nos autores supostamente “engajados” e frequentemente enganados simplesmente? Como conciliar seu “comunismo” sui generis com sua afirmação constante, de livro para livro, , de que há um aspecto transcendente, metafísico, da dimensão humana, os fantasmas e ambientes de outros mundos que surgem até nas Memórias, com sua parede que se abre para uma atmosfera não regida nem pelo Tempo nem pela Morte?

Exigindo do leitor uma atenção concentrada, ela narra nestas Memórias acontecimentos aparentemente triviais, mas que são focalizados simultaneamente em vários níveis. Em Doris Lessing se encontram afinidades com grandes escritores de língua inglesa. Com Carson McCullers ela se detém nos marginais da sociedade, neste caso as crianças, os miseráveis, os boêmios. Mas seu horizonte não se limita absolutamente a um diagnóstico seco de uma situação de injustiça social, de uma justaposição de classes opulentas e classes espoliadas e miseráveis.

Ela enriquece a perspectiva sociológica com uma descrição psicológica digna de um Henry James. Os fantasmas, a desmesurada ambição humana pelo poder, pelo dinheiro, pelo luxo, pelo privilégio, obtidos ao custo da morte moral, da ausência total de escrúpulos – são todos “personagens” insistentes e instigantes de seus livros. Com outro novelista (totalmente desconhecido no Brasil), William Golding, ela compartilha a noção inquietante de que a civilização é sempre e apenas uma fachada, um verniz inconsistente, que se rompe ao mínimo contato com o instinto, fazendo explodir a selvageria potencial em todo ser humano logo que as convenções sociais se afrouxam, em tempos de crise, de guerras, de revoluções, de fins de uma era histórica. Portanto, estas admiráveis Memórias de uma Sobrevivente têm muito a ver com The Lord of the Flies, de William Golding. Na semana passada a Editora Nova Fronteira lançou dele O Deus Escorpião, tipicamente sem se referir à sua obra-prima, The Lord of the Flies (O Senhor das Moscas).

Em The Lord of the Flies Golding transmite ao leitor a sua sombria visão de crianças que, vítimas de um naufrágio, passam a viver numa ilha deserta e logo transformam a coletividade numa comunidade do terror, da violência, do crime gratuito e não punido. Doris Lessing, em Memórias de uma Sobrevivente, esmiúça também em páginas apavorantes a desagregação de uma sociedade precárias, cercada por guerrilheiros negros, talvez pelo colapso do reconhecimento mundial de validez para uma “nação” em que uma minoria branca impõe leis monstruosas à maioria de tribos africanas nativas. Doris Lessing, como Golding, comunica uma leitura macabra da teoria da sobrevivência do mais apto anunciada pela teoria da “evolução” de Darwin. Macabra porque o supostamente mais apto, o que sobrevive é quase sempre o mais cruel, o que tem menos critérios éticos, o que é mais ignorante e primitivo, o mais insensível e mais infra-humano.

As Memórias de uma Sobrevivente abordam, consequentemente, um local que se encontra geograficamente nos mapas da África Austral e uma época atual: a Rodésia de hoje colocada em cheque pela intransigência das minorias brancas em dividirem o poder com a esmagadora maioria de negros sem direitos e considerados intrinsecamente “incapazes” de sequer compartilhar o poder com seus “senhores naturais”, os brancos.

Partindo destes dados concretos, verificáveis, Doris Lessing tece considerações devastadoras sobre a adaptabilidade insuspeitada do ser humano ao advento da barbárie e da anarquia, do crime e da ausência de qualquer lei fora do instinto de conservação individual e grupal.

De sua janela na cidade dia a dia mais e mais cercada pela fome, pelo corte de eletricidade, pela ausência de esgotos, pela escassez de alimentos, ela vê o mito da “civilização” se esboroar como um prédio implodindo pelas suas próprias mentiras e pelo seu sinistro ritual de convenções e contradições impostas pelo racismo. Mas coexiste com esse desmoronamento da estrutura social a permanência de uma outra realidade paralela a ela: a ultra realidade? A hiper-realidade? Misteriosa e insondável que se manifesta cada vez que a parede de seu apartamento se abre e lhe dá acesso a salas, quartos e climas imponderáveis, uma espécie de Inferno gélido e que não é regido nem pelo relógio nem pelo conceito humano de espaço.

Justaposto ao pano social e ao plano surrealista faz-se sentir o plano psicológico, cifrado na adolescente Emily, que desde o início do livro é entregue à narradora por um desconhecido que deixa a cidade condenada. Emily é o símbolo de vários conceitos. Ela é Eva, ela é a Mulher como preservadora da espécie e dos rituais tribais. Ela é a tentativa frustrada de romper a hierarquia social e é também a decepção amarga de verificar que em qualquer sociedade histórica criada pelos seres humanos há sempre “os que mandam e os que obedecem”. Emily é no início uma esperança hippie ou anárquica de se abolir a propriedade privada, abolir o poder político, tirar a humanidade do beco sem saída de uma tecnologia que polui a paisagem e desumaniza brutalmente o convívio entre homens e mulheres, crianças e velhos, moços e pessoas de meia-idade.

Emily é jovem e, abandonados os rótulos de uma sociedade “civilizada”, agora em escombros, ela regride no tempo. Chega até a era das cavernas, quando seu companheiro caça e ela fica na gruta, cuidando das crianças e cozinhando os animais abatidos pelo macho. As diferenças sociais, impostas artificialmente pela camada de dominadores em fuga, se esboroam, mas ela procura uma ordem nessa estrutura por si só amorfa. Doris Lessing faz então observações extraordinariamente agudas sobre a paralela desagregação da linguagem que acompanha o retrocesso social. Se na sociedade anterior os pobres viviam à margem da palavra, com um vocabulário tão restrito quanto o número de proteínas e calorias ao alcance de sues salários, agora é toda a sociedade que volta ao estágio pré-verbal do homem. Numa coletividade desafiada pela tarefa diária e urgente de sobreviver, que importância pode ter a palavra? E que diferença pode haver entre os que nunca possuíram um vocabulário rico e preciso e as hordas nômades que se comunicam apenas para assegurar o dia a dia precário e imprevisível do estômago e do sexo?

Demasiado sutil e abissal em seu exame minucioso do animal homo sapiens, Doris Lessing não prega uma moral. Não prega nada. Não ensina nem se erige em juiz, apenas constate e adverte. O leitor é um coespectador dessa regressão histórica de uma comunidade humana da sociedade de consumo para sociedade tribal da pilhagem e do crime institucionalizado como norma, a fraude como meio de estar vivo amanhã.

Frequentemente, o estilo de Doris Lessing recorda, guardadas as devidas e inevitáveis proporções, o estilo de Virginia Woolf: pela sua multiplicidade de referências, pelo equilíbrio desafiador entre raciocínio e intuição, pela complexidade de sua textura narrativa, pelo seu lirismo baudelairianamente sombrio. Estas vibráteis Memórias de uma Sobrevivente documentam de forma clara a cabal a riqueza e a mudança de enfoque de sensibilidade que as mulheres têm trazido à Literatura neste século. Patenteiam até que ponto as escritoras mantiveram a Literatura viva, sobrevivendo, graças à intuição e à inteligência especulativa, ao cerco que o sexo dominante lhes impôs e ao qual elas, como artistas e como pensadoras, conseguiram escapar.

Logicamente, o Prêmio Nobel perde seu impacto e sua importância quando se faz o mais ligeiro confronto entre a mensagem – importante – de Saul Bellow e o recado – decisivo – de Doris Lessing, se é que se pode usar de uma terminologia tão banal na aferição de valores literários e éticos transmitidos por dois artistas tão diferentes.

De qualquer forma, ler estas Memórias de uma Sobrevivente é também uma forma de se ser contemporâneo e de concluir que a palavra sobrevive, não é uma arma arcaica diante da imagem televisiva ou cinematográfica, não é a inerte vítima da hecatombe eletrônica. Porque através da linguagem Doris Lessing escreve, precisamente, as memórias de todos nós.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Trágica, lúcida, renovadora. Doris Lessing .” In As três grandes damas da literatura europeia: Virginia Woolf, Marguerite Yourcenar e Doris Lessing, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 7. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.