Fernando Pessoa I

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1977-03-19. Aguardando revisão.

Não era - confessava em carta a dois psiquiatras franceses - totalmente um cadáver consciente.

Um histérico neurastênico, sim. E instável: “mudo de opinião dez vezes por dia”.

Emotivo, cerebral, sem força de vontade: quem sabe o curso de magnetismo pessoal por correspondência lhe permitiria desenvolver a vontade sem esmagar a emoção e sem prejudicar a inteligência?

Assim como não tinha opinião firme sobre nenhum de seus amigos, fora da Literatura suas convicções variavam constantemente: “Tento, duramente não ser a mesma coisa no decorrer de três minutos, porque isso é má higiene estética”.

Por isso, pasmava-se, com vergonha, por ter acreditado na juventude, na democracia, no povo, já que a humanidade não existia como acepção sociológica e apenas como congregação biológica da “espécie humana”, como se fala de batráquios, símios, mamíferos.

Não era fascista, porque a noção de “povo” não coincidia com a de classe social ou casta: “Muita gente das aristocracias de história e de dinheiro pertence mentalmente ao povo. Bastante operários, sobretudo das cidades, pertencem à classe média mental. Um homem de gênio ou de talento, ainda que nascido de camponeses, pertence de nascença ao escol”, à elite.

A multidão era temível-desprezível pela sua incapacidade de raciocinar, já que a inteligência é sempre individual, no máximo as emoções cegas podem ser coletivas. Freud, como homem de gênio, distiguira a força e o fanatismo da loucura: “assim se formam as religiões e as seitas reigiosas, compreendendo nestas, porque o são, as de misticismo político, como o fascismo, o comunismo e outras assim”. Mas a mesma estreiteza podia se aplicar à psicanálise e à sua submissão de tudo a um único critério: a sexualidade. E na vida nada se reduz “a uma coisa só, nem sequer na vida intra-atômica”.

Pelas religiões estabelecidas ele tinha desprezo, no entanto quando começa a traduzir do inglês os livros de teosofia de Helena Blavatsky sua tendência par tudo que é secreto, aristocrático, iniciático, subverte todos os seus valores. Um conceito espiritual da passagem humana pela Terra e uma acepção religiosa da arte como religação com Deus e com a evolução da humanidade o levam ao ocutismo, à defesa aberta da Maçonaria e a um agravamento de seu isolamento natural do convívio com os medíocres:

“Em ninguém que me cerca eu encontro uma atitude para com a vida que bata certo com a minha íntima sensibilidade, com as minhas aspirações e ambições, com tudo quanto constitui o fundamental e o essencial do meu íntimo ser espiritual. Encontro, sim, quem esteja de acordo com atividades literárias, que são apenas os arredores da minha sensibilidade. E isso não me basta. De modo que, à minha sensibilidade cada vez mais profunda, e à minha consciência cada vez maior da terrível e religiosa missão que todo homem de gênio recebe de Deus com o seu gênio, tudo quanto é futilidade literária, mera arte, vai gradualmente soando cada vez mais a oco e a repugnante. Pouco a pouco, mas seguramente, no divino cumprimento íntimo de uma evolução cujos fins me são ocultos, tenho vindo erguendo os meus propósitos e as minhas ambições cada vez mais à altura daquelas qualidades que recebi. Ter uma ação sobre a humanidade, contribuir com todo o poder do meu esforço para a civilização vêm-se-me tornando os graves e pesados fins da minha vida. E, assim, fazer arte parece-me cada vez mais importante coisa, mais terrível missão - dever a cumprir arduamente, monasticamente, sem desviar os olhos do fim criador-de-civilização de toda obra artística. E por isso o meu próprio conceito puramente estético da arte subiu e dificultou-se; exijo agora de mim muito mais perfeição e elaboração cuidada. Fazer arte, rapidamente, ainda que bem, parece-me pouco. Devo à missão que me sinto uma perfeição absoluta no realizado, uma seriedade integral no escrito”.

Para isso, pressentia dentro de si uma confusa consciência de ser vários ao mesmo tempo. A disparidade de opiniões, o entrecho-que íntimo de convicções contraditórias e fugidias, as flutuações de anseios, entusiasmos, asco, redundam no reconhecimento da sua pluralidade psiquica.

“Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.”

Dessa multiplicidade brotam estilos e poetas diferentes. Fernando Pessoa, apagado correspondente comercial de uma firma lisboeta, desdobra-se em seus heterônimos: Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos. Eram produto da sua “tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação”. Seriam a maturação daquele misterioso Chevalier de Pas que, quando ele tinha seis anos, mantinha correspondência consigo mesmo? Eram como que personagens que emanavam dele, da mesma forma, justificava-se, que se um deles, Álvaro de Campos, era o mais histérico de todos e outro, Alberto Caeiro, se distinguia por sua blasfêmia e seu antiespiritualismo, isso acontecia pelo mesmo processo de imaginação e empatia pelo qual Shakespeare podia criar mulheres absolutamente convincentes, como Cleópatra e Lady Macbeth, sem ser mulher, ou demônios estúpidos como Caliban sem nada ter de demoníaco.

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Fernando Pessoa: Alguma prosa (Editora Nova Aguilar)

Apresenta algumas facetas dessa personalidade mais complexa e singularmente fascinante de toda a literatura portuguesa. Constitui uma seleta do volume consideravelmente maior, Obras em Prosa, encadernada, da mesma editora, com 722 páginas dos artigos de Fernando Pessoa. Mesmo assim, são percepções extraordinárias dessa atividade menor, a teoria estética, política, ética, que subjaz à obra do supremo poeta polifacético. Peneiraram-se aspectos irônicos, sutis, profundos, proféticos da vária personalidade pessoana. Com antevisão inacreditável, já por volta de 1925 a 1930, ele caracteriza o Comunismo com uma acuidade que só hoje pode ser concretamente aquilatada nas prisões de Cuba à União Soviética e Pequim e nos depoimentos claríssimos que do Comunismo nos fornecem os signatários da Carta de 77 e os bandidos soviéticos, do matemático Leonyd Pliutsch ao historiador Andrei Amalrik, do escritor Soljenitsin a Vladimir Bukovsky, recebido em audiência pelo Presidente Carter recentemente:

“Ao contrário do Catolicismo, o comunismo não tem uma doutrina. Enganam-se os que supõem que ele tem. O catolicismo é um sistema dogmático perfeitamente definível e compreensível, quer teologicamente quer sociologicamente. O comunismo não é um sistema: é um dogmatismo informe da brutalidade e da dissolução. Se o que há de lixo moral e mental em todos os cérebros pudesse ser varrido e reunido, e com ele se formar umma figura gigantesca, tal seria a figura do comunismo, inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como o é tudo quanto dorme nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós.

O comunismo não é uma doutrina porque é uma antidoutrina ou uma contradoutrina. Tudo quanto o homem tem conquistado, até hoje, de espiritualidade moral e mental - isto é, de civilização e de cultura -, tudo isso ele inverte para formar a doutrina que não tem”.

Precedendo de muito os ecologistas, que advertiam sobre a desertificação da Terra e a extinção de suas espécies e recursos naturais, substituindo-os por uma civilização técnica e destruidora, ele reflete:

“Ora, a civilização consiste simplesmente na substituição do artificial ao natural no uso e correnteza da vida. Tudo quanto constitui a civilização, por mais natural que nos hoje pareça, são artifícios: o transporte sobre rodas, o discurso disposto em verso escrito, renegam a naturalidade original dos pés e da prosa falada”.

Por meio de paradoxos, mas com uma lógica interior que lhe serve de fio condutor contínuo, prega, ao defender Antonio Botto, o poeta execrado pelos bem-pensantes em Portugal de sua época, um paganismo abeberado nos gregos antigos e anticristão ou anti-hinduísta, pois o espírito religioso, cristão ou do hinduísmo, do budismo ou do islamismo, parte da premissa da alegria: Deus existe, não importa se a vida é vil e “um vale de lágrimas”. Ao contrário, o ideal helênico corrige pela arte, as imperfeições da vida: a estética é o consolo da mortalidade. Da mesma forma a imitação de tudo que é provindo do estrangeiro arruína o espírito nacional, mata no germe tanto a expressão popular, captada pelos talentos individuais de componentes dessa massa amorfa chamada povo como a autonomia expressiva e criadora da aristocracia intelectual da nacionalidade:

“Ora, um povo sem aristocracia não pode ser civilizado. A civilização, porém, não perdoa Por isso esse povo civiliza-se com o que pode arranjar, que é o seu conjunto. E como o seu conjunto é individualmente nada, passa a ser tradicionalista e a imitar o estrangeiro, que são as duas maneiras de não ser nada. É claro que o português, com a sua tendência para ser tudo, forçosamente havia de ser nada de todas as maneiras possíveis. Foi neste vácuo de si-próprio que o português abusou de civilizar-se. Está nisto, como lhe disse, a essência da nossa crise.”

Daí a indignação com que, nacionalista arrebatado, ele amaldiçoa a mediocridade e a podridão de uma Europa desfibrada, incapaz de um pensamento e uma ação autônoma no campo da cultura, da política, do espírito. É seu aterrador e extremamente lúcido Ultimatum à desagregação da Europa como potência intelectual. Os “luminares” da Europa crepuscular do seu tempo são o objeto de seu desprezo mais veemente:

“Mandado de despejo aos mandarins da Europa! Fora!

Fora tu, Anatole France, Epicuro da farmacopéia homeopática, tênia-Jaurès do Ancien Régime, salada de Renan-Falubert em louça do século dezessete, falsificada!

Fora tu, Maurice Barres, feminista da Ação, Chateaubriand de paredes nuas, alcoviteiro de palco da pátria de cartaz, bolor da Lorena, algibete dos mortos dos outros, vestindo do seu comércio!

… Fora tu, mercadoria Kipling, homem-prático do verso, imperialista das sucatas, épico para Majuba e Colenso. Empire-Day do calão das fardas, tramp-steamer da baixa imortalidade!

… Fora tu, George Bernard Shaw, vegetariano do paradoxo, charlatão da sinceridade, tumor frio do ibsenismo, arranjista da intelectualidade inesperada, Kilkenny-Cat de tu próprio, Irish Melody calvinista com letra da Origem das Espécies!

Fora tu, H. G. Wells, ideativo de gesso, saca-rolhas de papelão para a garrafa da Complexidade!

Fora tu, G. K. Chesterton, cristianismo para uso de prestidigitadores, barril de cerveja ao pé do altar adiposidade da dialética cockney com o horror ao sabão influindo na limpeza dos raciocínios!

E tu, qualquer outro, todos os outros… todos os estadistas pão-de-guerra que datam muito antes da guerra! Todos! todos! todos! Lixo, cisco, chloldra provinciana, safardanagem intelectual!

E todos os chefes de Estado, incompetentes ao léu, barris de lixo virados para baixo à porta da Induficiência da Época!

Tirem tudo da minha frente!

Arranjem feixes de palha e ponham-os a fingir gente que seja outra

… Falência geral de tudo por causa de todos!

Falência geral de todos por causa de tudo!

Falência dos povos e dos destinos - falência total!

Desfile das nações para o meu Desprezo!

Tu, ambição italiana, cão de colo chamado César!

Tu, “esforço francês”, galo depenado com a pele pintada de penas, (não lhes deem muita corda, senão porte-se!)

… Tu, cultura alemã, Sparta podre com azeite de cristismo e vinagre de nietzschização, colméia de lata, transbordamento imperialóide de servilismo engatado!

… Tu, escravatura russa, Europa de malaios, libertação de mola desoprimida porque se partiu!

… Tu, Estados Unidos da América, síntese - bastardia da baixa-Europa, alho de açorda transatlântica, pronúncia nasal do modernismo inestético!

E tu, Portugal-centavos, resto da Monarquia a apodrecer República, extrema-unção - enxovalho da Desgraça, colaboração artificial na guerra com vergonhas naturais em África!

E tu, Brasil, “república irmã”, blague de Pedro Álvares Cabral, que nem te queria descobrir!

… A Europa quer grandes Poetas, quer grandes Estadistas, quer grandes Generais!

Quer o Político que construa conscientemente os destinos inconscientes do seu Povo!

Quer o Poeta que busque a Imortalidade ardentemente, e não se importe com a fama, que é para as atrizes e para os produtores farmacêuticos!

Quer o Genral que combata pelo Triunfo Construtivo, não pela vitória em que apenas se derrotam os outros!

… A Europa está farta de não existir ainda! Está farta de ser apenas o arrabalde de si própria! A Era das Máquinas procura tateando a vinda da Grande Humanidade!

… Dai Homeros à Era das Máquinas, ó Destinos científicos!

Dai Miltons à Época das Cousas Elétricas, a Deuses interiores à Matéria!

Dai-nos Possuidores de si próprios, Forte, Completos, Harmônicos, Sutis!

… O que aí está a apodrecer a Vida, quando muito é estrume para o Futuro!

O que aí está não pode durar, porque não é nada!

Eu, da Raça dos Navegadores, afirmo que não pode durar!

Eu, da Raça dos Descobridores, desprezo o que seja menos que descobrir um Novo Mundo!

… Eu, ao menos, sou da estatura da Ambição Imperfeita, mas da Ambição para Sehores, não para escravos!

Ergo-me ante o sol que desce, e sombra do meu Desprezo anoitece em vós!…”

Neste Ultimatum espantoso, que nada perdeu de sua pertinência hoje, delineia-se o asco que despertaria em Fernando Pessoa o panorama não só da Europa mas do mundo atual. Que Ultimatuns cheios de vômito e do frêmito da revolta não lançaria ele contra o governo de Valéry Giscard d’Estaing que devolve incólumes terroristas autores de chacinas em troca da “compreensão petrolífera” dos árabes? Que Ode ele teceria a Idi Amin Dada, Libertador Perpétuo do seu povo? Com que Hino louvaria o renascimento do nazismo na Alemanha Ocidental e a hipocrisia de designações como “República Democrática” Alemã, com o muro de Berlim a atestar o túmulo da democracia e da liberdade? Que Cântico à Abjeção lhe brotaria espontaneamente da contemplação dos cárceres políticos de Fidel Castro, do Arquipélago Gulag, de Pinochet e Stroessner? Como designaria a exortação para que “se evite” o tema do não-cumprimento dos direitos humanos na próxima conferência de Belgrado pela signatária no Tratado de Helsinque, a União Soviética?

Mas não só na área política, que é obviamente a mais gritante e que mais facilmente salta aos olhos do leitor, que Fernando Pessoa demonstra a sua atualidade. Qualquer página aberta ao acaso revela centelhas de uma inteligência vigilante, original, multiforme, seja quando alude obliquamente à estupidez generalizada com relação a um tema específico como o da literature (“Por isto, chamo a atenção das pessoas criticamente competentes (a sua existência entre nós é uma hipótese da minha delicadeza)”, seja quando medita sobre essa especificidade da Literatura como Expressão global: “Toda a arte é uma forma de Literatura, porque toda a arte é dizer qualquer coisa… As artes que não são a literatura são as projeções de um silêncio expressivo…”

Demasiado complexo para ser objeto de um mero artigo, ele projeta neste pequeno volume de prosa como que a sombra da sua magnitude incomparável, a sua Poesia, esta atemporal, os escritos teóricos como manancial de uma inquietação intelectual sempre vital desafiadora em seus paradoxos mesmo os aparentemente mais alucinantes e inaceitáveis.

Ninguém, em língua portuguesa, encarnou como ele a conclusão de Shelley:

“Os poetas são, sem o saberem, os legisladores desconhecidos da humanidade”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1977) 2022. “Fernando Pessoa I .” In Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns escritores portugueses, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 6. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.