A amargura humana, em linguagem culta

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1988/1/3. Aguardando revisão.

Abarrotados de subliteratura dos Estados Unidos e da Europa atuais, aos leitores brasileiros passou despercebida, quase, a extraordinária literatura italiana do pós-guerra. A não ser em círculos acadêmicos especializados ou meio de língua italiana, são vagas as noções aqui predominantes sobre Cesare Pavese, Elio Vittorini, Primo Levi, Alberto Moravia, Dino Buzatti, Elsa Morante. Portanto, é uma audácia inédita a da Editora Rocco, que entrega ao nosso mercado aquele que justamente é o maior escritor contemporâneo da Itália e, simultaneamente, o mais intraduzível. Pavese, sob forte influência de Faulkner e de Melville, esculpia um destino de esperança para o seu país, preso a uma ideologia de esquerda, mas jamais abjurando da Arte como apoio e realização suprema do homem. Primo Levi, egresso de Auschwitz, relata com sobriedade – se o horror pode irmanar-se a essa palavra – o inferno criado por seres humanos para outros seres humanos. É sintomático que os dois escritores se tenham suicidado: com tal lembrança do passado e com as evidências do presente, poderia haver lugar para uma sobrevivência vivificada pela esperança?

Buzzati apreendia o medo, as incertezas do coração em uma grande metrópole como Milão, enquanto Moravia um pouco espalhafatoso queria ser o cronista das duas Romas: a da alta sociedade do jet set e a da campagna, o interior e seus rústicos habitantes, enquanto Elio Vittorini retraçava a fisionomia clássica da Magna Grécia que fora a sua Sicília natal. E Elsa Morante? Abstraindo-nos do volumoso, ambicioso e talvez frustrado romance La Storia, Elsa Morante conseguiu dois milagres literários autênticos com Menzogna e Sortilegio e principalmente L’Isola di Arturo: o milagre de unir histórias sumamente tocantes construídas com o material doce, embora aparentemente áspero, hermético, do dialeto napolitano.

A ela se une, em intenção e virtuosismo insuperável, esse enigma de nome Carlo Emilio Gadda. Como Guimarães Rosa no Brasil, na Itália se brinca, ao perguntar: “Você fala Gadda?” Esse milanês reservado, homossexual, nascido em 1893, escreve literalmente o que jamais – ou dificilmente – se traduzirá: romances como Quer Pasticciaccio de Via Merulana, onde reproduz foneticamente três dialetos de Roma e de suas regiões adjacentes, Adalgisa, onde o dialeto milanês, quase indevassável para quem não o conhece a fundo, surge como desenho psicológico das personagens, em contraste com o idioma que domina a Península inteira, o italiano.

Mesmo na obra belíssima, inconclusa, de Gadda que nos chega agora, O Conhecimento da Dor, já sofreu o processo de facilitar para o leitor a sua prosa no próprio título, que no original italiano é La Cognizione del Dolore, mas certamente as pessoas não se sentiriam atraídas por um título como A Cognição da Dor, que se refere, em filosofia, ao ato de adquirir conhecimento. Gadda prende-se sempre, voluntariamente, ao barroco, ao indireto, às circunvoluções da mente e da fala. Não há realmente exagero em reconhecer da tríade Joyce, Guimarães Rosa e Gadda os inventores de uma linguagem própria, autônoma, erudita, cheia de trocadilhos, de alusões a arcaísmos clássicos, a neologismos, a palavras técnicas e vozes dialetais: de Roma, de Milão, da Irlanda, Minas Gerais. Para muitos críticos excelentes, Carlo Emilio Gadda, que morreu em 1973, permanece como um escritor a ser lido e degustado por outros escritores, tal a complexidade da sua escritura ora obscena, ora irresistivelmente cômica, sempre mergulhada no filosofar constante sobre a tragicomédia humana.

O Conhecimento da Dor, que ele deixou inacabado, é uma amostra típica de seu estilo, retirados os recursos dialetais. Passada num país inventado, da América do Sul (não se esqueça que Gadda trabalhou, como engenheiro eletricista, na Argentina, durante algum tempo), essa criação exige de quem se propuser a lê-la um vocabulário riquíssimo que o tradutor Mário Fondelli maneja com destreza, com termos tirados da filosofia aristotélica, da botânica, da medicina, da História etc. Em torno há a nação irreal de Maragadal, vizinha de outro país, o Parapagal, que guerrearam entre si em 1924. Gadda traça um quadro fantasioso, mas mergulhado no sarcasmo: os países, povoados por imigrantes da Europa, se jactam de, cada um deles, ter ganho a guerra. Em torno há a eterna degradação dos índios, desfeitos pelo álcool, presos a reservas territoriais desumanas; há os vigias noturnos que cobram impostos para vigiar as casas dos fazendeiros perdidos naquela lonjura; há os camponeses entregues à faxina de extrair da terra e do clima colheitas que matem a fome que os ronda sempre em sua miséria. Esse é o quadro exterior.

Interiormente, e de maneira abusivamente esquemática, trava-se a luta contínua, sem vencedores, do amor da mãe pelo filho irascível e que a repele, até o misterioso e trágico final. Irônico, Gadda desdenha da burocracia adiposa sul-americana: “E, portanto, já acreditavam piamente na importância daquela coisa toda: uma vez que na América do Sul a boa reputação ou a notoriedade de um funcionário nem sempre dependem da inutilidade de seus encargos. Os campônios incultos atribuem o desaparecimento do surto de amarelão ao entupimento do cano de uma latrina e sempre que uma tempestade se aproxima empurram para fora de casa, jogando-o no jardim, o piano, por ser um instrumento extremamente perigoso, que se crê atrair sobre si os raios”. E o próprio autor deixa clara, inúmeras vezes, a sua crença numa desigualdade implícita entre os homens: “Da ideia fixa de uma igualdade moral dos bípedes, que é, talvez, um efeito da visão ética, provinha neles o hábito de praticar o amor e a benevolência: mesmo que desse para escutar os bípedes, com aqueles tamancos, como se fossem quadrúpedes”.

A solidão da velha senhora, a errar como um fantasma pela casa, à busca de um afago do filho solteirão, raivoso, ensimesmado, vai num crescendo de desespero: Por quê? Por que haveria aquela indizível incomunicabilidade entre mãe e filho tão amado?

“Vagueava: e às vezes entreabria as venezianas para que o sol entrasse no grande aposento. A luz encontrava então suas vestes humildes, quase pobres; os pequenos remédios com que pudera medicar, resistindo ao pranto, o hábito humilhado da velhice. Mas o que era o sol? Que dia trazia? Ele conhecia suas dimensões e âmago, a distância da terra e dos outros planetas quase todos: o ir e revolver-se dele; muitas coisas aprendera e ensinara: os matemos e as quadraturas de Kepler que perseguem na vacuidade dos espaços sem sentido a elipse de nossa dor desesperada.

Vagueava pela casa, como que procurando a misteriosa senda que a levaria a encontrar alguém: ou talvez apenas uma solidão, despida de qualquer piedade e de qualquer imagem. Da cozinha já sem fogo aos quartos já sem vozes, ocupados por raras moscas. E ainda via a campina à volta da casa, e o sol.

… Era o choque, era o escárnio de forças ou de seres não conhecidos, e ainda assim inexoráveis em perseguição: o mal que surge novamente, novamente e sempre, depois das manhãs claras de esperança.”

É comovente a cena em que os dois contendores se defrontam e ela crê ter adivinhado aquela charada que era o filho resvaladiço, casmurro, fechado em si:

“A pobre mãe lentamente havia compreendido. Agora ela via a escuridão daquela alma. Lentamente, por ter tão longamente lutado, com sua esperança tão ardente, com sua alegria: antes de abandonar-se à compreensão. Um sentimento não caridoso e dir-se-ia um rancor profundo, muito antigo, tinha-se avolumado na alma do filho: aquele único que ainda aparecia, às vezes, ao encontro, sorrindo-lhe e chamando-a de ‘mãe, mãe’, caso não fosse sonho, nos caminhos da cidade e da terra. Esta perturbação dolorosa, mais forte do que qualquer instância moderadora do querer, parecia ressurgir, conforme a ocasião, o pretexto de uma zona profunda, inexpiável, de verdades ocultas: de um padecimento sem confissão.”

Muitos e muitos outros trechos de sensibilíssima beleza e comovedora emoção poderiam ainda ser citados desta terrível batalha trágica entre mãe e filho, principalmente na segunda parte do livro. Mais íntimo, com uma área enfocada mais restrita do que a de seus demais livros, O Conhecimento da Dor tem o valor de um ensaio profundo, erudito, de Montaigne. Evidentemente, decifrá-lo exige o preço alto da consulta a dicionários de inúmeros termos cultos, em desuso em nossa linguagem raquítica, hoje quase reduzida a grunhidos e interjeições monossilábicas.

Mas o contraste dessas duas solidões justapostas, a tristeza sem eco que deixam como resto de si, a misantropia como superioridade suprema demonstrada diante da imbecilidade e da mediocridade da quase totalidade da raça humana – tudo neste romance amargo, já além da revolta inútil, consigna um dos momentos supremos de uma literatura sempre empenhada na perscrutação do humano, como a italiana. É um dos derradeiros tributos que uma civilização agônica, a europeia, lega aos pacientes, aos indômitos, que se queiram adentrar seriamente por suas páginas tantas vezes herméticas mas afinal solúveis, o adeus final de Mestre Carlo Emilio Gadda e a seu segredo aqui levemente aludido.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “A amargura humana, em linguagem culta .” In Perscrutando a alma humana: A literatura italiana do pós-guerra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 8. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.