Sciascia. A palavra radical

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1989/11/25. Aguardando revisão.

Ele encarou como missão existencial lutar com palavras e fatos por um ideal humanista. Neorrealista sem dogmas, o escritor italiano Leonardo Sciascia desafiou a máfia como superpotência e, ao morrer, segunda-feira passada, deixou uma obra em que aprofundou a defesa do homem defraudado de sua sagrada liberdade.

Desde os tempos dos dois excelentes intermediários entre a cultura italiana e a cultura brasileira, há já vários anos, um silêncio sepulcral desceu sobre a difusão das duas literaturas através do Instituto Italiano de Cultura. O intelectual e scholar Edoardo Bizarri conseguiu, trabalhando com afinco e arte, anos a fio, traduzir Guimarães Rosa, dando uma identidade italiana a Grande Sertão: Veredas, que logo alcançou um sucesso estrondoso nos meios cultos peninsulares. Depois, o professor Angeleri, diretor do Instituto, patrocinou, com uma editora brasileira, a Fontana, a publicação de vários livros de Leonardo Sciascia, sem dúvida o grande escritor italiano contemporâneo, falecido esta semana.

É verdade que editoras brasileiras, principalmente a Rocco, têm divulgado por conta própria um autor excelso como Carlo Emilio Gadda (pelo menos em sua obra que não está escrita em vários dialetos, de Roma, do Vêneto, de Milão etc., a sua obra-prima talvez para sempre intraduzível: Quer Pasticciaccio brutto de Via Merulana): La Cognizione del Dolore (em português: O Conhecimento da Dor).

Traduzidos pela professora Aurora Bernardini, Mário Fondelli, Per Johns e Solange Lima Caribé da Rocha, com boa vontade o leitor encontra, provavelmente em sebos, os volumes de Sciascia: O Dia da Coruja, O Conselho do Egito, A Trama, A Cada Um o Seu: haverá mais?

Para os que estão familiarizados com a criação literária de Sciascia (pronuncia-se chá-cha) ao lado do romancista admirável obcecado pelo problema da Máfia e sua rede capilar de assassinos na Ilha, transformando seus romances no que se chama em italiano de gialli (livros policiais, porque a capa é quase sempre amarela deste gênero literário na Itália), há o finíssimo ensaísta, que através de um estilo elegantíssimo, erudito e profundo, analisa sob diversos ângulos a sua obsessão: a sua Sicília. La Corda Pazza, com o subtítulo de “Escritores e coisas da Sicília”, é o melhor exemplo da sua fascinante ensaística e do qual damos um trecho no box.

A Trama (em italiano Il Contesto) delineia já a preocupação que caracteriza a escritura de Sciascia: a Máfia, o terrorismo que mata impunemente, diante do silêncio cúmplice da omertà: os que sabem, mas temem represálias dos bandidos e se fecham num mutismo aterrador. Sciascia considera sua tarefa inexorável lutar, com palavras e fatos, por um ideal humanista, em defesa do cidadão contra um Estado prepotente e sempre oculto pela impunidade. Dá a seus romances uma feitura efetivamente “policial”, deixando pistas que levam ao porquê do crime e a seu assassino e/ou a seu mandante.

Leonardo Sciascia já na epígrafe de A Trama escarnece da teoria pan-bondosa de Jean-Jacques Rousseau e sua visão otimista do ser humano.

Citando quase que marotamente Montaigne, transcreve do magnífico pensador francês:

“É preciso fazer como os animais, que apagam qualquer vestígio diante da sua toca.”

Vertendo seu sarcasmo sobre Rousseau:

“Oh, Montaigne! Você sempre faz alarde de fraqueza e veracidade, seja sincero e verdadeiro, se é que um filósofo pode sê-lo, e diga-me se há na terra um país onde cumprir as promessas e ser clemente e generoso é crime; onde o bondoso é desprezado, e honrado o maldoso”.

Acrescentando apenas:

“Oh, Rousseau!”

E no epílogo explicita claramente: a Sicília onipresente, “onde os princípios – mesmo sendo ainda proclamados e exaltados – eram diariamente desrespeitados, onde as ideologias não passavam, na política, de meras denominações no jogo de papéis que o poder se atribuía, onde só contava o poder pelo poder”. Daí um romance que é uma paródia e também “uma alegoria sobre o poder no mundo, sobre o poder que cada vez mais se rebaixa para a impenetrável forma de uma corrente que poderíamos chamar de mafiosa.”

A Sicília. Sempre a Sicília: uma extensão da Magna Grécia antiga, um reduto de árabes e normandos, massacrada pela Igreja, pelos latifundiários, pelo desleixo, pela Máfia, pelo isolamento do continente, pela influência marcante da Espanha? Do tráfico de drogas e outros crimes que ligam as “famílias” que controlam o submundo da prostituição e do jogo, da cocaína e da heroína nos Estados Unidos? A Máfia como superpotência, ombro a ombro com os mísseis russos e norte-americanos e o poderio econômico do Japão e da Alemanha Ocidental? De qualquer modo, não mais a Sicília protegida pelos deuses da mitologia da Grécia Antiga, mas a ilha onde o cano de uma lupara (espécie de espingarda) aniquila vidas inocentes ou tidas como perigosas, tudo em meio ao deslumbramento da paisagem paradisíaca cercada por todos os lado pelo Mediterrâneo.

Há assim subdivisões entre os próprios livros: Se inicialmente os três livros afins, O Dia da Coruja, A Cada Um o Seu e O Conselho do Egito circunscreviam-se ao delito na Sicília, o cataclisma que significou para os anseios democráticos do povo italiano a morte covarde de Moro, Sciascia vê daí por diante, como uma mancha de óleo que se espalha aos poucos, o delito abandona os contornos da ilha e lentamente começa a “mafiosar” regiões da Itália continental, atingindo Roma e até Bolonha e Florença. A Máfia inseriu-se na realidade italiana inteira hoje.

Os que vêm, mandados a serviço do Norte “civilizado”, deparam com uma realidade de todo incompreensível para a sua mentalidade. Para eles é irracional que os deveres e direitos legítimos dos cidadãos sejam considerados privilégios que recaem só sobre certos indivíduos. Desmantelar a Máfia não é louvável nem prioritádio, afinal “f… é melhor do que dar ordens”, no dialeto italiano “cumanari e megghiu che futtiri”, a libido (herança grega ou árabe, não importa) não se sobrepõe aos tribunais, aos processos, às investigações: não é, pagãmente, o corpo que vence sempre. Deixemo-nos de lorotas e larguemos essa papelada por aí, para acumular poeira, o sexo é que é inferior ao mando.

Enquanto isso, os poderosos formam o anti-Estado (“Isso de Leis são coisas de vocês lá do Norte! Esqueça tudo isso!…”), secundados pelos rituais sicilianos de autoridade: os fâmulos, os sicários, fazem parte da famiglia, da cosa nostra e aí de quem cometer uma traição. A especialista em Leonardo Sciascia e diversas vezes sua tradutora, a professora Aurora Bernardini, da Universidade de São Paulo, conclui taxativamente, que é na Sicília que Maquiavel, com toda a sua aética pragmática, foi reconhecido como verdadeiro. Uma vez cometido o assassinato, aplausos para quaisquer meios usados para esse fim: “O importante é vencer: e os meios serão sempre louváveis”. Reconhecido pelas “autoridades máximas” da Máfia, o siciliano está sacramentado, está na órbita do poder: para sempre estará incólume, protegido pela “Organização”.

Para Solange Lima Caribé da Rocha, também tradutor do ínclito autor italiano, há uma linha que une Sciascia a outro grande, insigne romancista italiano-siciliano: Giovanni Verga, autor de I Malavoglia e Don Mastro Gesualdo, duas obras-primas da literatura ocidental. Que relação há entre os dois? Nem Verga nem Sciascia fazem propaganda partidária, colocam acima dos dogmas políticos os humildes, a piedade pelo sofrimento alheio. Afinal, foi um integrante das temíveis Brigadas Vermelhas que sentiu clemência pela “coisa” a que se reduzira o homem Moro e decidiu trair sua Causa e seus companheiros, mas ceder à sua ética e anunciar a morte de Moro, sequestrado pelas Brigate Rosse. O poder é superado pelo sentimento humano, fraterno, o dogma vencido pela solidariedade entre os homens.

Sciascia é o grande neorrealista, infenso a dogmas partidários, que faltou, em 95%, à literatura portuguesa e floresceu, com ele, na Itália junto com o esplêndido cinema neorrealista italiano. A reivindicação social, a justiça, sim, muitas vezes sim, mas a verdade também, a luta pelo homem privado de seus direitos humanos elementares, sem dúvida, mas sem deixar de reconhecer que o homem não é só um instrumento ou protagonista de liças políticas: é, antes de tudo, um ser humano dotado de liberdade.

Por isso se compreende a desilusão de Sciascia com o marxismo que ele define como “uma utopia dentro de uma utopia, um sonho, uma ilusão” que vai ruindo, como dominós que tombam, em todos os países ontem sob a bota do comunismo no Leste da Europa e na cada vez mais Desunida Conglomeração Imperial Soviética.

Sciascia, ex-membro do Conselho Municipal de Palermo pelo Partico Comunista, sentiu-se frustrado com o stalinismo, o Gulag, as mentiras escondendo sempre a penúria moral, intelectual e física.

Que adjetivos definem sua conclusão?:

“A vida é um sonho realmente: o homem quer ter consciência dele e só faz inventar cabalas; cada época, a sua cabala, cada homem a sua… E fazemos constelações de números, do sonho que é a vida: pela roda de Deus ou pela roda da razão”.

E aduzia sempre, com seu ar entre cético e melancólico:

“É verdade que precisamos contar também com o imponderável…”

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Sciascia. A palavra radical .” In Perscrutando a alma humana: A literatura italiana do pós-guerra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 8. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.