O teatro de Friedrich Dürremmatt
Friedrich Dürremmatt definiu a sua posição diante do teatro e diante de sua época ao justificar a sua não utilização da tragédia como gênero teatral:
“A tragédia pressupõe sentimento de culpa, miséria, uma compreensão ampla dos conhecimentos, responsabilidade, proporção. No caos do nosso século, nesta última valsa que a raça branca dança, não há mais culpado nem responsáveis. Ninguém pode mudar a situação em que nos encontramos e que ninguém desejou. Tudo acontece já sem a interferência dos indivíduos. Somos absorvidos pelo tumulto irresistível dos acontecimentos modernos, somos todos demasiado culpados coletivamente, demasiado enfronhados nos pecados cometidos por nossos pais e por nossos antepassados. Somos apenas os descendentes. É esse o nosso azar, não a nossa culpa – a culpa só existe como realização pessoal, como ação religiosa. O máximo que nós merecemos é mesmo a comédia”.
Poderíamos concluir que a comédia é então a expressão do desespero, mas essa conclusão não é necessariamente verdadeira. É claro que quem contempla o absurdo sem esperança do nosso mundo, pode perder o ânimo, mas esse desespero, esse desalento não são uma consequência do status do mundo, mas sim uma resposta a esse mundo. Naturalmente uma resposta seria não desesperar e resolver enfrentar esse mundo em que vivemos como Gulliver entre os gigantes. O nosso tempo instruiu o público de teatro a vislumbrar na arte algo de sacral, de patético para iniciados esotéricos. O gênero cômico se adapta às coisas inferiores, dúbias, tocas, que são aceitas porque ao rir delas nos divertimos como canibais, como quinhentos porcos reunidos. Mas a partir do momento em que o elemento cômico revela sob sua aparência um perigo, um desafio, uma revelação moral, todos logo o largam correndo como quem pegou num ferro quente, porque a arte pode ser tudo que bem quiser, mas deve permanecer agradável, gemütlich.
Esta definição agora, franca, adapta-se como vimos a todos os autores do absurdo que analisamos rapidamente nesta série desde Ionesco até Pinter e Albee por mostrar a antítese fundamental entre o teatro do absurdo e o teatro panfletário político, ambos feitos de encomenda como exaltação de um status quo inalterável e alienado de uma realidade social em constante efervescência e mutação; a tragédia não pressupõe somente a responsabilidade de protagonistas individualmente pelas suas ações, mas ela sem dúvida cristaliza durante alguns momentos um conflito, uma tensão fundamental ao passo que a comédia descreve uma situação fluida, indecisa nos seus contornos, adaptando-se por isso à nossa época de transição entre a revolução industrial e a eletrônica, a granada e a bomba atômica, como ele próprio diz, uma época pronta para arrumar as malas e desaparecer. Os tiranos gregos, a luta fratricida dos reis ingleses no teatro histórico de Shakespeare – essas situações refletiam indivíduos poderosos por detrás das maquinações de um Estado politicamente reconhecível, mas, no mundo de hoje, em que o Estado tornou-se burocrático, anônimo tanto em Moscou quanto em Washington: “Os secretários de Creonte se encarregam do caso de Antígona”, os pequenos funcionários de Kafka e de Pinter liquidam as suas vítimas sem que apareça o Godot temido pelos mendigos de Beckett. Eichmann declarou no processo em Israel que “obedecia meramente a ordens” quando ordenou o massacre de milhares de judeus, ele er somente uma pequena peça obediente dentro de uma vasta maquinaria do horror e da bestialidade. Para este mundo mecanizado até mesmo na sua crueldade de autor anônimo convém não a gargalhada niilista de Ionesco nem a participação ingênua e utópica de Brecht, reformulador de relações sociais entre os homens, mas sim uma comédia de humor negro, uma careta grotesca que é uma forma diferente de documentar o absurdo. O seu teatro é como o de Max Frisch o palco para suas mordazes meditações sobre o convívio humano e para reflexões filosóficas sobre a condição humana à beira do abismo eternamente latente – a agressividade mútua dos homens que conduziria à explosão nuclear, niveladora de todos os valores absolutos.
“Peço encarecidamente que não reconheçam em mim um representante de uma determinada tendência dramática, como se eu fosse um vendedor ambulante que fica diante de portas da dramaturgia moderna em busca de uma cosmovisão, de uma Weltanschauung facilmente rotulável – existencialista, niilista, expressionista, irônico ou como se chamem esses vidros de compota etiquetados pela crítica literária. Não tento refletir uma filosofia, mas as ações, os pensamentos, a filosofia dos homens que retrato na sua múltipla variedade. Não preparo anteriormente uma peça com uma tese definida, mas os próprios personagens surgem espontaneamente durante a criação. Sinto decepcionar os que buscam uma mensagem profunda em minhas peças se falo não como um artista, mas sim como um alfaiate falaria sobre a confecção de roupas. Se não sei falar bonito sobre a arte e sem seguir as regras da alta cultura, falo então aos que cochilam quando se começa a falar de Heidegger”.
Esta dupla ironia – contra a crítica literária e contra os intérpretes pedantes e herméticos de uma obra literária – tipifica a visceral desconfiança que Dürrenmatt demonstra com relação às elaborações cerebrais estéreis humanamente. Exatamente como para Sartre houve uma valoração exagerada do escritor, do criador artístico, principalmente no mundo de língua alemã, que transforma o crítico, o Herr Professor, o literato num demiurgo à la Stephan George que vê na arte um sacerdócio elevado, um profeta de raízes profundas do homem. De formação humanística sólida, de instrução religiosa protestante como filho de pastor em Berna, Dürrenmatt não refuta evidentemente a cultura, mas nega a sua adaptação a um meio dinâmico humano vivo como o teatro. As peças preparadas antecipadamente para provar uma teoria político-social, uma crença religiosa, ou para demonstrar profunda erudição cultural e histórica, pecam fundamentalmente pela insuficiência artística de seus criadores, com exceção de um talento da proporção de um Brecht, de um Claudel, mas o teatro é, como o define justamente o escritor suíço, uma elaboração literária de uma matéria prima através da linguagem e dos recursos do palco – iluminação, acompanhamento sonoro etc. Sem defender evidentemente um teatro da arte pela arte alienado da condição social do homem ou dos seus valores teimosamente religiosos ou do contexto cultural em que ele vive, Dürrenmatt propõe, porém, que esses elementos constituem o teatro, integram-no, mas não é para eles que o teatro tende, pois uma peça é independente, é a soma autônoma de elementos engajados. Da mesma forma, Brecht é um grande dramaturgo não porque seu teatro político-social seja incomparável. Ao contrário, é até monotonamente linear, mas porque ele, Brecht, conseguiu insuflar-lhe a vivacidade do seu extraordinário talento, a sua extraordinária percepção de verdades sociais que coincidentemente eram também verdades plenamente utilizáveis pela dialética do teatro.
No mundo de língua alemã do qual ele é tributário como suíço alemão, o teatro assumiu, ao contrário, um aspecto de museu bem-organizado e bem-comportado no qual grandes diretores e intérpretes, toda uma brilhante maquinaria teatral, revive textos do passado – Shakespeare, Sófocles, Calderón de la Barca – mas não surgem autores que renovem o vocabulário e os recursos cênicos apelando para a reprodução estrangeira. É como renovação do teatro formulado em alemão que ele e seu compatriota Max Frisch surgem retirando a poeira que cobre o museu de cera do teatro fossilizado da Alemanha pós-hitlerista – numa palavra ele integra o teatro do presente, oferece-lhe uma temática contemporânea.
Qual seria essa temática contemporânea se ele refuta o teatro político de esquerda, o teatro naturalista da reforma social, o teatro religioso de Ghelderode e os modelos do passado que têm uma validez relativa para a nova humanidade depois da Segunda Guerra Mundial, depois de Oppenheimer, Fermi e Einstein? A sua resposta é a de considerar o teatro como um campo experimental, à semelhança das experiências levadas à cabo na França por Ionesco e Beckett, na Inglaterra por Osborne e Pinter, um teatro que reflita as inquisições do homem atual, massificado e atônito, um teatro experimental quer dizer um teatro de indagação conjunta com os partícipes da inédita situação humana a do século XX, inédita não só pela massificação, pela coletivização de Estados onipotentes que mais e mais incidem sobre a vida individual, inédita pela explosão demográfica sem precedentes e que força os governos a essa arregimentação odioso, mas necessária, na nossa época em que inclusive certos fatores de progresso social se revestem de aspectos de terror e ameaça – num mundo de menor mortalidade infantil a sombra de Malthus desenha-se sobre as colheitas insuficientes da Índia, sobre as favelas incapazes de conter o êxodo rural rumo às grandes aglomerações humanas. E nos países desenvolvidos em que o analfabetismo praticamente fio eliminado ou reduzidos a percentagens ínfimas, qual é a função do artista nesse mundo novo, barroco, contrastante? A análise literária não se tornou acessível a todos os que sabem ler? Os professores de literatura, os críticos e exegetas do teatro não se arvoram em árbitros do bem escrever, do estilo perfeito? A solução que Dürrenmatt encontra é a do artista que descobre a arte justamente onde a burguesia pedante, culturalmente nouveau riche não a reconhece. E aplicando a sua teoria à prática, ele começa a escrever novelas para a rádio – gênero até então desprezado pela intelligentsia -, a escrever magistrais romances policiais. “Pos só quando a literatura não pesar mais nada na balança dos críticos é que ela assumirá novamente valor e peso”.
Por que essa ojeriza pronunciada à crítica literária? Não por incultura de Dürrenmatt, mas por seu critério de autenticidade e pela sua perspicácia. Principalmente na Alemanha e nos Estados Unidos por influência alemã a interpretação da literatura e, portanto, do drama também que dela deriva, passou a ser considerado um objeto científico, acrescentou-se à palavra literatura o apêndice inesperado e insólito de “ciência”, daí derivando a solene Literaturwissenschaft ou ciência literária, monstro elaborado nos laboratórios universitários alemães. Em vez da interpretação literária de um crítico sensível, culto, que demonstrasse percepção e afinidade com relação a um determinado autor e sua obra, surgiu uma série de métodos físico-químicos para aferição da temática de um escritor. Passaram a ser contadas as repetições de palavras para, através dela, fazer um raio X psicológico de autor. Quem usasse constantemente a palavra terra, ventre ou raiz deveria ter complexos freudianos com relação à própria mãe e, portanto, vinha classificado como um autor obcecado pelo complexo de Édipo. Até mesmo na análise menos absurda os cientistas literários propunham-se a classificar um autor segundo leis científicas que o definiriam sem apelação. Trata-se de um fenômeno semelhante à coqueluche do freudianismo que produziu na Alemanha e na Áustria pesados volumes de interpretação de todos os personagens literários de acordo com suas taras psicológicas – Hamlet, um homossexual latente, Iago, um impotente, o rei Lear, um masoquista como os personagens de Dostoievsky da mesma forma que era sádico Hemingway e necrófilo Baudelaire.
Hoje em dia vivemos ainda a coqueluche da análise puramente política que conseguiu reduzir a duas as atuações: alienados, reacionários, vendidos ao capital americano ou engajados, surgindo talvez outra bifurcação agora com o duelo Mao Tse-Tung e União Soviética, ou seja, lacaios porcos revisionistas e fanáticos liberais, bárbaros e primitivos conforme se mimoseiam mutuamente o Pravda e a Voz do Povo de Pequim. A literatura obrigada violentamente a colocar-se debaixo do estetoscópio e do microscópio, do telescópio e do raio X da ciência literária perdeu sua dimensão própria – afirma Dürrenmatt – hoje em dia se estuda literatura, mas as circunstâncias não permitem quase que se crie literatura, o parasita quase asfixiou a árvore.
Ele não se propõe a trabalhar para o teatro, a elaborar peças para o teatro, mas se propõe muito mais decididamente a trabalha com o teatro, meio e não fim, instrumento da sua interrogação e não quadro negro sobre o qual escrever as suas frias demonstrações.
A origem da dramaturgia de Dürrenmatt é certamente expressionista, no que o movimento expressionista tiver de semelhante à visão barroca da vida que justapõe caoticamente o grotesco e o sublime, o trágico e o absurdo, o cômico e o monstruoso, a sua leitura de Wedekind o impressiona vivamente: acontecimentos absurdos que se sucedem, numa acumulação crescente de crueldade e de humor macabro e ironia ácida aos costumes vigentes na sociedade humana. A Visita da Velha Senhora poderia, por exemplo, ser considerada uma alegoria expressionista moderna que confirma o diagnóstico cínico da Ópera dos Três Vinténs de Brecht: o ser humano para fugir à pobreza aceita pactuar com tudo, inclusive a sua consciência. É a concessão, não o ideal, acrescenta Dürrenmatt, que conduz o progresso da humanidade.
Uma velha senhora bilionária – a mulher mais rica do planeta, especifica-se – chega a uma cidadezinha anônima desprovida de recursos, esquecida do progresso que agita o resto do mundo, o lugarejo chamado Guellen. Esta misteriosa milionária que viaja com trens próprios, que controla ações de petróleo das mais ricas do mundo promete transformar Guellen numa comunidade nova palpitante de industrias de cromo de vidro, cheia de automóveis, geladeiras, televisões, de progresso enfim. Os habitantes exultam e custam a reconhecer nela a mesma moça Clara Zachassian que há muitos anos os habitantes que Guellen indignados tinha expulsado da sua cidade natal por ter sido seduzida por um rapaz local e ter se tornado prostituta depois de sua sedução. Ela, a mulher mais poderosa, quase diríamos a mulher onipotente exige agora como única condição para derramar seus milhões de dólares, francos e libras em Guellen que seu sedutor o medíocre Ill seja assassinado para apaziguar a sua vingança pessoal. Consternação geral, discursos inflamados do mestre escola contra aquela desumanidade, afinal, senhora Zachassian, a senhora pode controlar todo o petróleo do mundo por ter sido casada nove vezes com milionários, mas ainda estamos na Europa, no Ocidente, no berço da civilização moderna, a vida de um homem não se comercia em troca de vem estar material: ela é acusada de assassina sanguinária, de monstro sem coração. Mas pouco a pouco os habitantes de Guellen esperançosos de que se encontre uma solução pacífica que poupe o pobre Ill e lhe proporcione o mesmo tempo riqueza material, começam a endividar-se, a comprar móveis, automóveis, roupas, o conforto que desconheciam até então. E, parodiando o sarcasmo de Brecht no final da Ópera dos Três Vinténs que contém um coro de júbilo coroando um happy end falso, Dürrenmatt faz a população de Guellen cantar no final um mesmo coro de alegria, pois Ill foi morto e Clara cumpriu sua promessa: a prosperidade material regada com sangue circunda agora a cidadezinha antigamente pacata e da qual ela fora expulsa na sua longínqua juventude.
O próprio autor se recusa a classificar-se como um moralista que mostra a fragilidade do convívio humano feita da absoluta falta de ética entre o homem e o seu próximo, quanto de materialismo, de carência de crença religiosa, minam as relações sociais, independentemente de qualquer regime político. “Embora filho de um pastor protestante – declara – sou um escritor que respeita a fé alheia porque eu próprio perdi a minha...”.
Suas peças recordam então as imagens negras de Goya ou alguns quadros de Bosch com todas as deformações de uma caricatura impiedosa. Essa velha senhora que vem duplamente como a salvadora de Guellen e o anjo exterminador de seu sedutor Ill poderia ser interpretada simbolicamente como o bezerro de ouro adorado pelas massas ignaras irresponsáveis. Ou ela é o símbolo eterno da Eva que trai o homem comerciando com o Paraíso e a sua curiosidade pessoal? Plenamente integrada no vocabulário e nos critérios monetários do nosso tempo, ela fala uma linguagem capitalista de poderosíssima acionária, uma mulher atual que perdeu num desastre de avião uma das pernas e usa um braço artificial feito de marfim depois de um desastre de automóvel. Essas mutilações serão também alegorias do preço que o homem paga na sua conquista de velocidade de poderio de bem-estar? Ou puramente a sua vingança é pessoal contra o homem que a ludibriou e com isso esterilizou em seu espírito desde cedo a noção de que possa existir o amor entre os seres humanos? A sua ilusão é paga então com a vida do que destruiu o seu mito amoroso, que a cidade enriqueça com as migalhas que caem de sua mesa opulenta e espiritualmente vazia não lhe importa: banida qualquer possibilidade de transcendência – religiosa, amorosa e artística – permanece somente a vida metálica, animalesca, primária da fome saciada, da casa aquecida, do carro de vidro e cromo à porta, as imagens da televisão destilando na calam noite familiar e doméstica.
Comparada com A Visita da Velha Senhora, a sua peça ora apresentada no Rio, Os Físicos, constitui uma intensificação dos meios de crueldade e de ironia a que Dürrenmatt apelara anteriormente.
A mesma figura arquetípica da mulher monstruosa, da Clara Zuchassian, surge em Os Físicos, mas desta vez aumentada dezena de vezes. Agora, ela não é apenas a mulher mais rica do mundo, dona de poços de petróleo, de estradas de ferro, de zonas de bordéis de Hongkong – ela é a satânica médica que dirige um hospício e que ambiciona apoderar-se não da mísera Guellen, mas de todo o planeta terra porque ela ambiciona possuir o segredo científico da bomba atômica. Um segredo que só um dos seus pacientes, o físico Dr. Moebius, possui; convivendo com ele há dois outros físicos de grande renome mundial e que asseguram ser respectivamente Einstein e Newton. No decurso da peça revela-se que nenhum dos três físicos é louco fingindo insanidade mental apenas para apoderar-se do segredo. Trabalham para duas ideologias, dois superpoderes econômicos diferentes, ávidos de arrebatar a fórmula do físico Moebius que a descobriu e ficou aterrorizado com o poder que a bomba da destruição colocaria em mãos dos homens. Como que ecoam as palavras do Galileo Brecht quando este diz, profeticamente “a ciência tem de ocupar-se duas batalhas. Uma humanidade trôpega, a arrastar-se pela neblina de milênios, incapaz de utilizar plenamente as próprias forças, não poderá tirar partido das energias da natureza que os cientistas descobrem. Creio que o único propósito da ciência é este: aliviar a fadiga da existência humana. Se homens de ciência contentam-se com acumular conhecimentos e gozar o prazer do saber por si, então a ciência não passará de uma pobre coisa efêmera. Vossas máquinas só servirão para novos tormentos; com o tempo, poderíeis descobrir tudo que há ainda por descobrir e, no entanto, o vosso progresso vos afastaria cada vez mais da humanidade. O abismo entre elas e vós pode tornar-se tão grande que a cada vossa nova conquista corresponda um grito de horror universal!”.
Confirmando plenamente a intuição dos artistas, os documentos históricos recentes mostram os bastidores da descoberta e utilização feitos pelos EUA da bomba atômica jogada sobre Hiroshima e Nagasaki. Andre Fontaine no seu livro História da Guerra Fria relata:
“Até o último minuto Hitler e os seus sequazes acreditaram numa arma milagrosa que permitiria à Alemanha alterar fundamente o rumo da guerra. Essa arma já existia por certo e em grande parte graças aos próprios alemães, mas ela se encontrava em campo inimigo. Foram realmente os resultados das pesquisas dos físicos alemães que levaram o presidente Roosevelt, alertado por Einstein e pelo presidente do Instituto Carnegie, Dr. Bush, a acionar o mecanismo de fabricação da bomba atômica no mesmo momento em que a Wehrmacht penetrava em Paris. E são sem número os cientistas judeus que tendo abandonado o Reich contribuíram para o sucesso da bomba atômica.
“Mas certos cientistas indagaram se não seria melhor impedir a fabricação de engenhos cujos efeitos apavorantes ele melhor do que ninguém sabiam aquilatar. Os militares, porém, não quiseram ouvir tais argumentos. Seguiu-se um debate dramático e ultrassecreto entre todos esses intelectuais que até então só tinham pensado em seus problemas técnicos e que agora, de repente, descobriam os abismos da política e da moral (relacionados com a mais mortífera arma de que dispunha o homem, a verdadeiro apocalipse bélica do mundo. O célebre cientista alemão James France, prêmio Nobel de Física em 1945 redigiu junto com seis colegas da universidade e de Chigaco um relatório magnífico dirigido ao ministro da guerra norte-americano, Henruy-Stimson, um relatório de esplêndida humanidade de consciência e de clarividência pedindo que não se utilizasse a bomba atômica e se chegasse a um acordo efetivo que impedisse a proliferação nuclear. Mas a decisão militar argumentou com o prestígio dos Estados Unidos com o perigo da concorrência russa já claramente delineada e conforme declarou com amarga ironia o próprio Einstein: Gastou-se tanto dinheiro para fabricar a bomba atômica que era preciso demonstrar que aqueles dois bilhões de dólares não tinha sido gasto em vão.”
Seguiu-se a eliminação de uma cidade de 350.00 habitantes, Hiroshima, seguiram-se a Cortina de Ferro, a revolta da Hungria, a sinistra Guerra Fria e há dia a explosão da terceira bomba atômica chinesa que ameaça com suas nuvens radioativas o céu do Japão e a Indochina.
O cientista de Dürrenmatt que encarna como Einstein, como Frank, como Oppenheimer a consciência humana diante do crime e da hecatombe, o físico chamado da peça Dr. Moebius e que finge-se louco para não revelar a fórmula da bomba atômica que seu gênio lhe permitiu descobrir, dialoga numa cena simbólica com os dois espiões a serviço das duas ideologias em conflito:
“Somos três físicos. A decisão que temos de tomar é uma decisão entre físicos; precisamos agir de forma científica. Não podemos nos deixar guiar por opiniões pessoais, mas sim por conclusões lógicas. Precisamos tentar encontrar o elemento racional. Não podemos permitir-nos um erro de cálculo, porque uma decisão errônea poderia nos levar à catástrofe. O nosso ponto de partida é claro. Todos três temos o mesmo objetivo, mas as nossas táticas são diferentes. O nosso objetivo comum é o do progresso da Física. O sr. quer manter a liberdade, massa isola da responsabilidade. Enquanto o sr. engaja a Física em nome da força política de um determinado regime. É engraçado, ambos elogiam ideologias políticas diferentes, mas na realidade, o que ambos me oferecem para continuar minhas pesquisas é uma prisão. Primeiro então o hospício. Pelo menos me dá a segurança de não ser explorado por regimes políticos. O sr. diz que sempre temos que correr certos riscos, mas eu lhe respondo - há certos riscos que ninguém pode correr: a destruição da humanidade é um deles; já sabemos o que o mundo faz dispondo das armas que já possui, imaginemos o que faria com as armas que eu lhe possibilitaria ter com a minha fórmula! Submeti minhas ações a essa previsão. Eu era pobre. Tinha mulher e três filhos. A universidade me acenava com a glória, a indústria com o enriquecimento, ambos os caminhos achei perigosos. Eu deveria publicar o resultado das minhas pesquisas, causando assim o desmoronamento de toda ciência anterior e da estrutura atômica que a acompanhavam. A responsabilidade indicou-me outro caminho. Deixei a carreira universitária, não levei em consideração as ofertas da indústria e deixei que minha família se arranjasse por si mesma. Preferi fingir que era louco. Inventei que o rei Salomão me aparece de noite e isso bastou para que me encerrassem num manicômio. E se não foi uma solução pelo menos foi a única que a razão aprovou. No campo da ciência nós chegamos às fronteiras do conhecimento humano. Conhecemos algumas leis concretas, algumas relações fundamentais entre fenômenos incompreensíveis isoladamente, é tudo o que sabemos, o resto imenso nos permanece secreto, inacessível à nossa compreensão. Chegando à estação final de nosso itinerário, a ciência tornou-se apavorante. Nossa pesquisa tornou-se perigosa, nossas fórmulas mortais para o gênero humano. Para nós físicos só existe a capitulação diante da realidade”.
Mas seguindo a mesma tendência da comédia trágica da visita da velha senhora, a peça Os Físicos termina de maneira sinistra. A diabólica médica do hospício consegue apoderar-se da fórmula que o físico humanitário, o Dr. Moebius, tentara destruir. Ela, a velha solteirona corcunda e descendente de uma família de anormais passa a controlar os países, os continentes, o sistema solar, a galáxia de Andrômeda: ordena exultante a produção em massa da bomba atômica enquanto os três físicos voltam cabisbaixos, aniquilados para seus quartos e para as suas ficções: Newton recitando seu papel de Newton, presidente da Royal Society, autor da base matemática das ciências naturais e da teoria da gravidade; Einstein formulador da teoria da relatividade que alterou a Física basilarmente, autor da fórmula E = m. c2, a chave para a transformação de matéria em energia.
E na alegoria final do cientista que vê o poder destrutivo da ciência nas mãos mercenárias, ambiciosas, irresponsáveis e lunáticas da ambição humana?
O físico Moebius encerra esta peça que é uma profunda reflexão filosófica sobre a condição humana da era atômica monologando entre as barras do seu quarto:
“Eu sou o rei Salomão. Sou o pobre rei Salomão. Antes eu era imensuravelmente rico, sábio e temia a Deus, os poderosos tremiam diante do meu poderio. Eu era um príncipe da paz e da justiça. Mas a minha sabedoria destruiu meu temor a Deus, e como eu já não temia a Deus, minha sabedoria destruiu minha riqueza. Agora jazem mortas as cidades sobre as quais reinei, meu reino está vazio, o reino que me foi confiado, agora um deserto de reverberações anuladas. E em algum lugar do universo, gira em torno de uma pequena estrelinha amarelecida e sem nome, gira sem sentido, mecanicamente sem interrupção a terra radioativa. Eu sou Salomão, eu sou Salomão. Eu sou o pobre rei Salomão”.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {O teatro de Friedrich Dürremmatt},
booktitle = {Aspectos do Teatro Contemporâneo},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {11},
date = {2024},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-11/02-o-teatro-doutrinario-marxista-na-alemanha-precursores-e-sucessores/08-o-teatro-de-friedrich-durremmatt.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Texto inédito (11 páginas datilografadas), Sem data.
Aguardando revisão.}
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