Este fala umas verdades
O passaporte de Harold Pinter pouco revela sobre o autor das duas peças The Lover e A Slight Ache que o Teatro Municipal de São Paulo acolhe hoje com a vinda da Companhia Britânica de Brenda Bruce.
Profissão dramaturgo.
Idade 36 anos.
Judeu. Nascido no East End, Londres.
Sua identidade não esclarece que East End é o Brás, a Vila Maria de Londres, o grande aglomerado proletário que contrasta com o bairro "bem" e "chic", o West End.
Como sinal característico deveria também assinalar: outsider por excelência, um solitário por vocação, um "marginal" que não se enquadra no grupo de "jovens coléricos" britânicos como John Osborne e Arnold Wesker, formuladores de candentes protestos contra os valores tradicionais da Inglaterra hierárquica e conservadora.
Harold Pinter tem muito mais afinidade com habitantes de outros "guetos" da angústia e da solidão humanas: como o irlandês Beckett e o romeno Ionesco, que vivem exilados em Paris, escrevendo em francês o seu teatro do absurdo. E principalmente com a literatura de estilo naturalista, mas densamente metafísica e surrealista de Kafka. Édipo que não decifrou o enigma que a vida lhe propôs e foi por ela devorado. O enigma indevassável e sem uma coesão lógica que “a vã filosofia humana possa entender”.
Em grande parte, os dramas de Pinter documentam a incomunicabilidade que ilha os homens entre si, na sua constante fuga ao diálogo que possa por a nu a sua condição de miséria e de desamparo. E como móvel de suas ações, a hostilidade mútua que atiça uns contra os outros, murados pela suspeita, pela desconfiança, pela indiferença recíprocas.
Seus atos desenrolam-se todos em ambientes fechados, enclausurados: The Room, uma sala, um quarto, símbolo do morno esconderijo larval de suas figuras baças, que vegetam na mediocridade consentida. Mas invadem seus mundos amorfos os estranhos, os não-convidados. “O inferno como diz um dos personagens do Hui Clos de Sartre são os outros.” Um dia, fatalmente, “o outro” vem julgar-nos e temos que prestar contas a um juiz desconhecido e inapelável. No entanto, o autor inglês não cria uma atmosfera de horror sobrenatural ou metafísico. Seus algozes nada têm de monstruoso ou de apavorante, no máximo são sórdidos, corruptos, vulgares, como os funcionários do Processo kafkiano. É como se Pinter quisesse assegurar-nos que o mistério e o pavor que nos circundam diariamente estão ocultos nas coisas e pessoas mais corriqueiras. Daí o frisson à lá Hitchcock de algumas de suas cenas, acumulando num suspense tecnicamente perfeito todo um crescendo de medos.
Geralmente, quando se iniciam seus dramas deparamos com uma situação de fato, com um convívio entre duas pessoas que já existia antes de erguer-se a cortina, Marido e mulher que se odeiam, como em A Slight Ache, dois casais, um heterossexual e outro homossexual, sobre os quais paira a dúvida de um adultério, como em A Coleção, ou dois irmãos que acolhem um velho mendigo em The Caretaker (O Inoportuno).
Desfazendo esse convívio que percorre toda a gama emotiva, da indiferença ao assassinato violento, surge, vinda do exterior, "a ameaça", corporificada no intruso - o negro cego em The Room, o sinistro e mudo vendedor de fósforos em A Slight Ache.
E como os personagens de Ionesco, os personagens de Pinter mantêm-se apavorantemente silenciosos ou falam por meio de frases convencionais, sons desconexos que nada dizem de significativo. A respeito da linguagem ele próprio declarou ao Sunday Times: “Há dois tipos de silêncio. O da ausência de palavras. E o da torrente de palavras ditas, sob a qual está prisioneira uma outra linguagem. Uma forma de encarar a fala humana é a de considerá-la como um constante estratagema para cobrir a nossa nudez.” E ainda: “Eu pessoalmente desconfio das palavras. Tal massa de palavras nos confronta dia a dia, palavras escritas por mim e por outros, que juntas somam uma terminologia morta, vazia, insípida. Idéias repetidas ou permutadas infinitamente tornam-se banais, piegas, sem sentido. Sentimos então uma náusea que pode nos levar à paralisia...”
A linguagem estereotipada não comunica mais, oxidada pelo uso. Além disso, de que linguagem estamos falando? Da que usa Einstein ou Maria Carolina de Jesus, Proust ou Ibrahim Sued? Porque há tantas linguagens quantos forem os prismas dos quais a nossa inteligência capta aspectos da realidade. Mas nem a realidade existe, denuncia Pinter. Para ele a verdade além de subjetiva é mutável, fugidia: “há pelo menos 24 aspectos possíveis de qualquer afirmação isolada, dependendo de onde você estiver colocado naquele determinado momento ou dependendo até mesmo do tempo que faz naquele dia...”
Não existindo uma linguagem comum aos seres humanos, “sob nossos pés há só o denominador comum daa areias movediças”. Perdidos nesse labirinto da incerteza total que envolve os nossos dois universos o mundo exterior e o que levamos dentro de nós defrontamo-nos com a condição humatia que Freud não pode decifrar, que a eletrônica não consegue programar e que os planos quinquenais nem a Aliança para o Progresso podem abolir: a angústia abissal do homem, a sua solidão intrínseca, a sua condenação a viver “no extremo limite da existência”, no nosso absurdo desconexo.
Dentro desse caos sem valores absolutos, todas as afirmações são relativas e, portanto, se equivalem. O trágico pode ser cômico e o humour pode ter como contraponto o macabro. Seria então inútil num mundo arbitrário escrever, preencher com palavras sem sentido uma página em branco?
Não. Como para Kafka, para Joyce, para Proust ou Guimarães Rosa, uma página em branco é a única bóia de que dispomos no oceano da nossa incapacidade de conhecer, a única forma possível de transcendência ou resposta:
“Uma página em branco é ao mesmo tempo emocionante e apavorante.
Você só saberá depois que tive-la enchido toda. E nada lhe garante que você chegue a saber no final. Mas é sempre um risco que vale a pena correr”.
Ao retratar uma humanidade escorraçada do Eden original e sem perspectivas de uma Canaã rumo à qual dirigir seus passos incertos, Pinter imbui seus personagens atônitos de uma simbologia profundamente atual. Seus marginais do palco representam milhões de seres humanos despojados violentamente de seus direitos e de sua identidade: os famintos da Índia e do Nordeste, os negros do Alabama e da África do Sul, os refugiados tangidos pela guerra e murados em Berlim. Pinter, porém, não se limita a fotografar a angústia humana: ele mostra o ser humano em busca ávida de muletas, de apoio, de um refúgio em meio ao vácuo espiritual da era de Hiroshima e de Dachau. E impregna-os todos da sua estranha dimensão de poesia, de lucidez, de violência e de tragédia.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Este fala umas verdades},
booktitle = {Aspectos do Teatro Contemporâneo},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {11},
date = {2024},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-11/04-o-teatro-da-decadencia-e-da-revolta-nos-paises-anglo-saxonicos/08-este-fala-umas-verdades.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1966/05/07. Aguardando revisão.}
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