Só os mais atentos conseguem encontrar esta maçã no escuro

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1975-05-7. Aguardando revisão.

A Maçã no Escuro, Clarice Lispector (Editora Paz e Terra, 4a edição)

Clarice Lispector é uma ilha de admiração cercada de incompreensão de todos os lados. Sua obra, forma, com a de Guimarães Rosa, a mais polêmica cisão entre o público ledor e a crítica lúcida. Para chegar até ela, há o marasmo intelectual dos preguiçosos, a obtusidade dos lentos, a falta de imaginação dos que se prendem a uma literatura arcaica e imutável em sua estrutura.

A Maçã no Escuro brotou do exílio geográfico imposto à grande escritora pela missão diplomática do marido, que durante a escritura desse romance ocupava um cargo na Embaixada do Brasil em Washington. É duplamente surpreendente, portanto, constatar como Clarice Lispector não perde uma comunicação sensorial com a língua portuguesa. Desde o primeiro capítulo assaltam o leitor construções ousadas: “O modo como, tranquilo, o tempo decorria era a lua altíssima passando pelo céu”. Ou: “Ali, pois, deixou-se ficar, dócil, atordoado, como a sucessão de quartos desocupados atrás de si. Sem emoção aqueles quartos vazios repetiam-no e repetiam-no até se apagarem aonde o homem já não alcançava mais”.

Tecendo círculos concêntricos em torno de sua personagem central, Martim, a romancista pernambucana urde toda uma rede de abismos de angústia, nos momentos em que a realidade parece balouçar como a ilusão humana e ele perdeu a bússola dos sentidos e do raciocínio:

“Era como se o tivessem depositado solto num campo. E enfim ele acordasse de um longo sonho do qual haviam feito parte do hotel agora desmanchado, num chão vazio, um carro apenas imaginado pelo desejo, e sobretudo tivessem desaparecido os motivos de um homem estar todo expectante num lugar que também este era expectativa.”

“É um clima densamente kafkiano, próximo de O Processo em que Joseph K. Em fuga para o Brasil escapasse de um crime misterioso pelo qual tinha que ser punido até a cena da expiação final, de admirável indagação religiosa do homem que aceita a esperança como um fardo paradoxalmente libertador. É também curiosamente kafkiano, mas em tom brasileiro, o diálogo dilacerante com o pai rigoroso e implacável, em que o filho busca o conhecimento, e o pai lhe nega o acesso à Fé ou a um reino interior agustiadamente desejado.

Os romances de Clarice Lispector não têm a perfeição redonda de seus contos. Há momentos de passageira perda de sentido no emaranhado luxuriante das palavras, selva do Nome que explicará a vida do ser humano e justificará sua condição precária. No entanto, A Maçã no Escuro é de indispensável leitura para quem quiser compreender como um livro, escrito em 1956, instaurou no romance brasileiro o advento de um novo e decisivo estilo narrativo. Para os que não se adentrarem por suas páginas, evidentemente, o resultado será o de enxergar uma maçã no escuro: suas cores e sua luminosidade estarão apagadas. E é sempre mais fácil comprar um best-seller, muito mais comestível e deglutível que esa difícil maçã anoitecida, eco de um paraíso perdido e evocado pela palavra.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1975–5AD) 2022. “Só os mais atentos conseguem encontrar esta maçã no escuro .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.