Semprun, destruindo mitos

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1983/08/13. Aguardando revisão.

A notícia havia caído como uma bomba: o general De Gaulle tinha morrido! O boato daquele imprevisto e brutal desaparecimento logo correu por toda a Paris já enlouquecida pela rebelião estudantil, em maio de 1968. Os estudantes em algazarra crescente tinham declarado “zonas liberadas” a Universidade, o Panteão, a estação de metrô. Suas cores e lemas se espalhavam por todo o bairro universitário, o Boul’Mich (Boulevard Saint-Michel): até a estátua do versejador monótono do raquítico Renascimento francês, Ronsard, estava avivada com o cartaz de letras vermelhas garrafais preseo a seu pescoço de metrificador medíocre que conta sílabas de um verso com oquem conta favas para uma sopa: “É proibido proibir!” Aquele alegre tumulto jovem, prestes a tornar-se uma autêntica revolução, chegara ao Museu do Louvre – ali nos jardins do Carrossel uma estátua (equestre desta vez?) trocara seu sabre triunfante por uma bandeira negra e vermelha dos Anarquistas e o peito, antes coalhado de medalhas, proclamava agora em letras descomunais, irreverentes, peremptórias: “A Imaginação no Poder!”

E esta agora, comentavam os revolucionários improvisados, como se os paralelepípedos que jogavam contra a infame polícia acabasse de repente como munição para construção de um mundo melhor: o general teria morrido num acidente de helicóptero, voltando de uma visita inexplicável ao general Massu, na Alemanha Federal? Ou teria sido assassinado por agentes nefandos da odiada CIA dos Estados Unidos para atiçar fogo da rebelião e permitir aos norte-americanos intervirem no solo da Pátria como salvadores do caos em que se desempenhava a République? O jornal humorístico Le Canard Enchainé não acreditava nem mesmo nas palavras do ministro da Cultura, André Malraux, e publicava uma foto intrigante de alguém muito parecido com o chefe da nação, de braços abertos como se falasse ao oceano imenso das praias do sul da Inglaterra, mas infelizmente o retrato o mostrava de costas, portanto, impossível de ser reconhecido categoricamente.

E agora?! Um Muro – certamente mais expugnável do que o de Berlim se erguera entre a ubíqua ZUP (Zona a ser Urbanizada Prioritariamente) e o local frequentado não mais pelas tropas de atiradores de elite dos “gorilas” (como os jovens chamavam os policiais então), mas pelos temíveis bandos de noiteadores. Sem o general – morto talvez – e sem o arrebato dos primeiros dias, com o ator Jean-Luc Barrault inflamando-se com a juventude e declarando “seu” teatro também zona liberada e diante do silêncio dos sindicatos comunistas, cujos operários cruzavam os braços diante daquela barricada, o que seria da rebelião de maio de 1968? Paris ainda arde sob as chamas da nova Liberação?

Os noiteadores – palavra cunhada assim às pressas, noctard em francês, quem sabe por imitação de clochard – em si retomavam traços de uma ordem já passada: a dos terroristas ou a dos gangsters da Chicago de Al Capone. Interessado nos noiteadores estava o cineasta Boris Villeneuve, que filmava as incursões desses grupos de salteadores baseado num filme de Frederic Brown que descreve justamente Nova York apavorada pelo nighters que a brutalizam, saqueiam e aterrorizam, depois de um cataclisma mundial. Quando, justamente, esse problema linguístico delicado de nighters e noiteadores se apresentava como tema erudito para um Roland Barthes ou um Lacan ou um debate fonético ou de semiologia, eis que Auguste Le Mao irrompe em cena, como se dizia nos romances de antigamente. Grande Timoneiro do Grupo Yenan, apesar do fracasso inicial da Primeira Campanha do Exército Camponês do Finistère. Le Mao exige de todos os intelectuais da ZUP uma escolha entre o revisionismo e a teoria revolucionária pura, como a mantida pela ex-atriz, êmula de Evita Perón às margens do rio Amarelo, a Camarada-Consorte (ou sem sorte?) de Mao Tsé-Tung.

De fato, era crucial saber se a importação de um modelo ianque não significava nova capitulação da consciência burguesa diante dos valores culturais importados ou era uma adaptação estratégica a novas realidades. Na intimidade, o diretor de cinema deu de ombros: para ele, Le Mao há muito era sinônimo do “pensamento mao tsé-tsé”: onde aquelas “reflexões passassem” morria a inteligência picada pela mosca africana que induz à doença do sono. Inegável, acima de quaisquer “rachas” entre os Mestres de Como Pensar era a existência dos noiteadores que, instalados no antigo estacionamento subterrâneo do Boulevard Saint-Germain, assaltavam a mão armada, pilhavam e destruíam com nomes retumbantes como Combatentes do Oriente Vermelho, Vingadores da Palestina ou Libertadores da Libido.

Em seu livro mais recente, A Algaravia (editora Nova Fronteira, 461 páginas), Jorge Semprun, o magnífico escritor espanhol radicado na França, amplia mais ainda a sua faceta devastadora de destruir de mitos. Durante oito anos secretário do Partido Comunista Espanhol em Paris no exílio; prisioneiro do campo de concentração nazista de Buchenwald assim que a Gestapo se apoderou do território francês; membro destacado da Resistência francesa às hordas invasoras de Hitler, Semprun em livros anteriores já não deixara dúvidas quanto a ser o escritor político mais profundo, mais hilariante, mais irreverente da nossa época. Entre os SS-20 russos e o Pentágono, a Europa atual politizou-se a tal ponto que Semprun, Goytisolo, Sciascia criam esplêndidas reflexões literárias e ideológicas válidas hoje, imediatamente. Versam sobre o rumo das ideologias, o papel da liberdade, a tarefa, truncada pelo partido único polonês, da missão do Solidariedade de Lech Walesa e mais 10 milhões de associados; o enxerto exótico de cultura e literatura política de que Semprun é o máximo representante neste século.

Jorge Semprun, além de colavorar como roteirista com Costa-Gravas e seu filme passado em Atenas, Z, ou A Confissão, passada na Tchecoslováqiua amordaçada pelos tanques russos ou A Guerra Acabou, com Alain Resnais, sobre a Guerra Civil Espanhola, é um maravilhoso leitor de Proust, de Joyce, um finíssimo apreciador da pintura de Goya, de Vermeer. É um multitalento renascentista que milagrosamente se mantém vivo em nosso tempo de sectarismos esterilizadores. Se em Autobiographie de Federico Sanchéz ele despejara suas bazucas contra o altar das múmias que embalsamam o Partido Comunista Espanhol, como La Pasionária e Santiago Carrillo, em A Segunda Morte de Ramón Mercader ele traça as relações mais sutis imagináveis entre o método narrativo de Proust e seu desfilar recordações que vivificam o presente, a associação entre arte e vida que as torna como que analogias simbólicas uma da outra, ao elaborar essa biografia do assassino de Trotsky no México. Blasfêmia! Ato contínuo, as eficientíssimas hostes stalinistas decretaram a morte civil de Jorge Semprun: não se sabe quem é, nunca se ouviu falar dele, portanto não existe nem pode ou deve existir. E no index da Inquisição stalinista Semprun tornou-se impublicável, impronunciável. Antes dele já tinham caído outros “hereges”: Bob Dylan, porque se converteu ao Catolicismo (!); Joan Baez por ter ido ao Vietnã levar apoio aos boat people, os que de barco fugiam do paraíso póstumo de Ho Chi Minh; Ariano Suassuna por escrever romances cristãos (já se viu?) e de descrença em dogmas políticos inquestionáveis.

Sobrevivente, ferido, é verdade, mas vivo de uma entrevista na tevê do Brasil, Semprun, estoicamente resistiu. Como talvez nenhum de seus arguidores parece jamais, nem mesmo na parada de um sinal de trafego, ter lido uma linha ou “orelha” sequer de seus livros, Jorge Semprun, par delicatesse concordou em perder numa das tevês brasileiras, semi-salvo pelas perguntas menos mundanas de coquetel frívolo que lhe dirigia somente Fernando Gabeira.

A Algaravia tem mais um elemento inacreditável: mesmo sem um confronto com o texto original francês (L’Algarabia) é uma tradução (de Margarida Salomão) excelente, ágil, rica de saídas brilhantes para os constantes trocadilhos que o autor faz em francês e que precisam de grande vivacidade e talento para serem traduzidos em português sem serem desfigurados.

Um último fator tornará este romance insuportável para os novos inquisidores do Sagrado Evangelho Segundo Marx: Semprun, a par da agilidade de suas observações e previsões, destaca-se por um vigoroso, às vezes sutilíssimo, sendo de humor. Nesta Paris devastada por aquilo que o general De Gaulle chamou de chienlit, defrontam-se imigrantes espanhóis anárquicos, que tiveram a experiência prática do anarquismo na Catalunha anterior ao franquismo, corsos e bretões que querem, à força de bombardeios dos monumentos culturais da França, impor seu separatismo e suas línguas maternas contra “o despotismo centralizador francês”. O que teria ocorrido se o Movimento de Mario de 68 tivesse vencido, com a simultânea e nunca esclarecida morte oportuna do general De Gaulle?

Em 1973, conhecido depois como o Ano da Normalização, o governo de Versalhes assinara acordos com a Comuna da Rive Gauche, sob a égide da ONU:

“Após a assinatura desses acordos – que passaram à História sob o nome de Tratado de Trianon – os contingentes de”capacetes azuis” se retiraram do território francês. Por uma picante ironia (que não era somente um ardil objetivo da razão histórica, sem dúvida Kissinger e Gromyko tinham dado uma mãozinha, aí se encontrando seu dedo e sua marca, embora esta última possibilidade seja um tanto impensável no caso do segundo dos supracitados), por uma ironia da História, pois a maior parte dos destacamentos da ONU, encarregados de manter uma aparência de ordem e de fazer respeitar as tréguas, armistícios e sucessivos cessar-fogo, foram constituídos, durante todos esses anos, por tropas negras. Que paraquedistas do Harlem, da Costa do Marfim ou do Zaire tivessem sido enviados para separar, através de um cordão sanitário, as facções rivais que se digladiavam no território da doce França, filha mais velha da Igreja, mãe das armas, das artes e das leis, parecera a alguns um sacrilégio, mácula nacional, uma vergonha inexpiável e inexplicável. A outros, terceiro-mundistas encarniçados e obtusos, esse fato parecera a mudança justa das coisas, talvez mesmo a possibilidade histórica de uma reversão dos valores burgueses.”

Um sem-número de acontecimentos surrealistas constitui a malha subterrânea dessa obra-prima: um coronel galês, Lloyd Louis, alcunhado o Bastardo, pois se suspeitava que ele fosse o produto adulterino de um dos Luízes da França, daí seu apelido, dado por seus soldados, de Luís XIX, o Bastardo, reivindica seus direitos ao Reino da França. É ardentemente seguido por toda a população do País de Gales, seduzida pela aventura, pelo lucro e pela possibilidade de tirar uma revanche do time tricolor de rúgbi que derrotara os jogadores compatriotas do ator Richard Burton, marido e ex-marido da atriz Elizabeth Taylor, no último torneio das Cinco Nações. Mais feroz ainda, o sacasmo de Semprun vai além: se o presidente da República, eleito após uma votação ignorada pela extrema esquerda, é o representante vigoroso da Ordem, sua primeira providência é transferir a capital da República para uma aprazível Brasília interiorana: Bourges, ainda não contaminada pelos germes da decomposição. O coronel galês que aspira ao trono não perde tempo: cerca Orleãs “num movimento estratégico que tinha por fim isolar a República de Bourges – como a chamavam, com uma comiseração amarga, o chanceler alemão, o presidente do Conselho Federal helvético e mesmo a grã-duquesa de Luxemburgo”. Ardiloso, o presidente contrata a vedete do cinema, Mireille Darc, para insuflar ânimo patriótico nos camponeses das regiões de Orleãs, Anjou e Loire: a mulher de curvas voluptuosas com a qual sonhavam, em suas barracas insones, os soldados de toda as tropas, consegue levar o presidente da República até Versalhes, onde durante uma semana se celebra o renascimento da grandeur francesa. Não se pode esquecer um detalhe importante: os chefes de Estado de Nações africanas francófonas serviram de úteis mediadores na refrega: sem um Houphoët-Boigy, um Sédar Senghor, presidente do Senegal e poeta da negritude ou mesmo um Jean-Bedel Bokassa, o imperador dos diamantes – antes do escândalo que o envolvera com o então presidente Valéry Giscard D’Estaing, é claro, a paz não seria selada tão rapidamente.

A chamada Teologia da Libertação é alvo de algumas de suas reflexões mais ferinas: “Pois nenhuma sociedade chegará jamais – e felizmente, hoje posso dizê-lo – a preencher de positividade esses vazios, esses turbilhões de negatividade onde se enraízam e se nutrem tanto a vontade de mudar o mundo quanto a necessidade de ornaog-lo. E a prova dessa historicidade de Deus é hoje patente. A religião, quer seja cristã, islâmica, ou de qualquer outra inspiração, continua a ser o ópio do povo, mas esse ópio não age sempre da mesma forma. Ela deixou de ser, ao menos quanto ao essencial, uma resignação fremente e indignada diante das injustiças deste baixo mundo. Tornou-se fermento ativo. Deus foi transformado numa droga criativa, em suma, numa anfetamina do espírito. Ele se lança à transformação da sociedade, à mudança do mundo. E o movimento dos cristãos em direção ao socialismo é sem dúvida a mais pérfida e perversa manifestação dessa historicidade operativa e sorrateira de Deus. Você pode deduzir a partir disso até que ponto os atuais marxistas metem o dedo no olho de Deus – o que é ainda mais estúpido e menos agradável que metê-lo no olho do... – quando restringem o debate ao domínio científico, sendo que a existência de Deus é cientificamente indemonstrável...”

Múltiplo, Semprun nos mostra, na obra da reconstrução da grandeza da França, à catedral de Saint-Sulpice com seu new look: uma vasta piscina anticlerical, com saunas, duchas, salinhas de repouso, onde por meio de videocassetes se podem admirar reproduções de quadros de Delacroix, sem dúvida, celebrando a Liberdade de peitos nus sobre as barricadas do sangue. Introduz o elemento hilariante das Amazonas, um grupo feminista ironizado pelo machismo corso, espanhol e bretão, mas que quer seguir o rumo das guerreiras lideradas, elas também de peitos nus quando não com um deles decepado, lideradas por Pentesiléia, a que devoraria com os dentes qualquer candidato a ultrajar sua virgindade e sua alergia ao homem dominador de todas as épocas. A Máfia, interessada em explorar o submundo do bordel que se instalara debaixo de igrejas famosas, quer investir fábulas numa agente misteriosa, que traz de Budapeste uma mensagem póstuma de Lukacs, o crítico literário húngaro, único salvo dos massacres um masse de Stalin. Num anfiteatro inteiramente vazio da Universidade de Sorbonne, um professor sem alunos (talvez a caricatura de Althusser?) profere uma aula solene:

” - ...aplicando-se o pensamento maotsetungo à realidade francesa – proclama com voz estentórea esse mestre solitário -, chegamos a definir e a aplicar uma prática político-militar original, uma guerrilha original que denominamos luta violenta dos militantes...

O professor vermelho sublinha estas últimas palavras com um gesto ritmado de seu punho direito, como se quisesse que as massas, aliás ausentes, se convencessem da justeza, da importância de seu ensinamento.

- ...esta luta violenta, do ponto de vista político, ataca a autoridade do Estado e do sindicalismo, na medida em que essa autoridade impõe às massas uma ideologia exógena, o legalismo, isto é, a submissão à ordem burguesa...”

Suas palavras ocas se perdem no eco da velha universidade de paredes poeirentas e cinzas.

Nem a fúria anárquica do autor espanhol se detém diante de Cuba: fazendo um pastiche dos filmes rocambolescos de James Bond ele coloca Paula Negri (deformação do nome de célebre estrela do cinema mudo, Pola Negri), uma cubana mulata ou negra, como uma das fugitivas do paraíso comunista do Caribe:

“Fora em janeiro de 1968, nos últimos dias de janeiro, que ele o encontrara naquela praia da ilha dos Pinheiros, que se começava a chamar então de ilha do Comunismo. De fato esse era principalmente o lugar para onde as autoridades cubanas começavam a mandar os cabeças-duras, os oposicionistas, os descontentes de toda espécie, os elementos da população qualificados de associais para aí submetê-los a trabalhos braçais, nos campos, com finalidade essencialmente reeducadora, como se sabe. Tremei, cidadãos, quando vosso governo qualifica de associais certos membros da comunidade! Tremei porque o critério de sociabilidade, quando utilizado com tenacidade virtuosa, é o mais terrificante dos critérios! Ela própria, Paula Negri, fora levada a dar uma voltinha pela ilha – dos pinheiros, da juventude ou dos pinguins, à vossa escolha – quando sua presença começava a se tornar embaraçosa para Havana, quando se quis afastá-la da capital no momento em que o Congresso Cultural aí juntou tantos estrangeiros, alguns dos quais célebres e influentes, mas geralmente – e involuntariamente – cegos, como o são com frequência os intelectuais de esquerda, ah mulas manas e beatas! (Pouco depois, quando conseguiu deixar Cuba na primavera daquele ano, em circunstâncias rocambolescas que dariam, por si só, assunto para todo um romance. Paula leu com surpresa as declarações de certos escritores parisienses. Como podiam eles ser otários a esse ponto, puxa-sacos a esse ponto? Eram originários em sua maioria do inferno glacial do stalinismo, e não tinha aprendido nada. Nada de essencial pelo menos. Encaravam de novo, queixo erguido, orgulhosamente, a linha vermelha do horizonte radioso, a silhueta crescente do homem novo, cegos e surdos so clamor do povo, à miséria moral que se instalava, por um período histórico indefinido, se não infinito, na ilha de Cuba, subjugada à palmatória do Grande Timoneiro vernacular. E é preciso dizer que essa cólera de Paula não é demasiada, ao contrário se justifica plenamente. Para convencer-se, bastaria ler a coleção do Nouvel Observateur da época. A quantidade de baboseiras que aí se podem encontrar a respeito de Cuba, sob assinaturas às vezes prestigiosas, e frequentemente surpreendentes, é de fato insuportável!)

Pululam as cenas de uma comicidade irrepetível, como a de Sartre possivelmente substituído por um sósia profissional: “A menos, é claro, que ele fosse o próprio Sartre que fingisse ser seu próprio sósia para proteger sua solidão, sua intimidade, para evitar ter de atender à curiosidade, que se podia supor voraz, devoradora e devastadora, desses personagens que o assediavam pelos bistrots de Montparnasse, quando certamente ele não aspirava a mais que ser seu próprio sósia ou ser alguém mais, para gozar de um pouco de tranquilidade ontológica e preservar sua identidade ameaçada por tantos intrusos”.

Desenrolada no decurso de um dia – como o modelo do Ulysses de Joyce, com brincadeiras frequentes em busca da identidade do narrador, que se dirige ao leitor como Baudelaire, a “ti, hipócrita leitor”, meu irmão, meu semelhante etc. -, essa Algaravia faz Rimbaud encontrar-se num pub de Londres com Marx para discutirem a reforma agrária. O poeta de Le Bateau Ivre talvez tenha servido de elo de ligação com Lisagaray, o basco apaixonado pela filha de Marx e que este repudiava veementemente como genro. Numa cena reminiscente de Buñuel, um padre erudito que louva em seus sermões flamejantes as virtudes intrínsecas à castidade, quando cotejada com o paganismo greco-romano, às escondidas experimenta combinações, calcinhas, ligas pretas, enquanto se transforma no travesti eclesiástico mais dernier cri do momento. Se “algaravia” significa linguajar árabe incompreensível, esta soberba, deslumbrante e plural A Algaravia, na sua plenitude, não deixa de ter seus trechos oníricos, de um lirismo fascinante, no monólogo de amor entre quem conheceu a realidade dos campos de concentração alemães da Segunda Guerra Mundial e quem desconhece a realidade de Madri ensanguentada pela Guerra Civil, Madri palco do “ensaio geral” da futura guerra, com as forças fascistas apoiadas por Hitler e Mussolini e os republicanos desfigurados pela ajuda stalinista. Com incursões cultas e de um riso que leva às lágrimas a respeito da gíria parisiense e dos provérbios cochinos (sujos, porcos) do povo espanhol, este livro alucinante, que marca, vincadamente, todo o ano de 1983, atinge seu ápice no reconhecimento de que é com Lech Walesa e seu Solidarnosc que está o futuro claramente delineado, nas frases certamente únicas de tanta lucidez e coragem na literatura política ou ficcional do nosso tempo:

“Portanto, não só o proletariado moderno não é essa classe universal que Marx fantasiou filosoficamente – mas, sejamos, entretanto, justos, todas as suas análises econômicas e sociais concretas davam uma imagem bem diferente, mais próxima da espessura contraditória do real – como também não é nem mesmo capaz, historicamente, entenda-se bem, de assumir na sociedade um papel hegemônico. Em outras palavras, o proletariado moderno, de quem Marx apenas conhecera e estudara o nascimento e os primeiros passos – passos que tinham a ver principalmente com a dissolução das antigas camadas aristocráticas de operários-artesãos que fizeram da Comuna de Paris (a primeira!) o exemplo, e o canto de cisne, de suas possibilidades -, não era uma classe capaz de transcender e ultrapassar a sociedade de classes: não dispunha nem dos recursos culturais, nem dos recursos políticos, nem mesmo, obviamente, da capacidade econômica de fundar uma sociedade nova, diferente:

“A única perspectiva realmente revolucionária hoje não é a que se propõe a mudar a sociedade, mas a que propõe socializar a mudança. A prova ao contrário disso é fornecida pelos sistemas do Leste, onde uma estratégia revolucionária, se pudesse desenvolver-se, ou quando puder desenvolver-se, deverá propor obrigatoriamente como objetivo a democracia pluralista”.

Reuso

Citação

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Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Semprun, destruindo mitos .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.