Suave milagre: no fim da vida, um Eça religioso

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Veja, 28-5-1969. Aguardando revisão.

Na rua de um santo (São Bento), em São Paulo, o livreiro Olinto de Moura guarda a chave seu único exemplar de uma obra rara: o Diccionario dos Milagres, livro póstumo e inacabado de Eça de Queirós sobre os santos mais venerados pelo povo em Portugal - alguns dos quais estão entre os 44 “cassados” pelo Vaticano. Mas o maior interesse dessa aglomeração de textos menores e incompletos do grande escritor português é para a crítica literária. Como se explica que Eça de Queirós, talvez o autor mais radicalmente anticlerical que Portugal já possuiu, tenha reunido pacientemente algumas dezenas de milagres atribuídos aos santos mais populares? Como chegou a compilar esse esboço de Diccionario dos Milagres, que sua morte, em 1900, aos 55 anos de idade, não o deixou terminar?

Ao longo de sua incomparável carreira de maior romancista da literatura portuguesa, Eça de Queirós equipara-se aos maiores escritores do seu tempo: Flaubert, na França; Verga, na Itália; Henry James, nos Estados Unidos; e Tchekov, na Rússia. E de livro em livro fica cada vez mais clara a modificação gradual, mas profunda, de seu pensamento e de suas tendências que seu estilo reflete fielmente. Sua obra descreve uma parábola imensa. Vai da denúncia social virulenta, da ironia ácida contra o provincianismo português e a hipocrisia das classes dirigentes de Lisboa, a uma série de retratos feitos com as principais virtudes do país. Em O Crime do Padre Amaro, a lubricidade de um padre sem vocação coloca como tema principal o assunto hoje tão atual do celibato dos sacerdotes católicos. O Primo Basílio é um sedutor barato, sem escrúpulos, um dandy lisboeta que mora em Paris e deslumbra as mulheres da sociedade portuguesa com seu charme e sua falta de ética. A Relíquia é talvez o seu romance mais cáustico, mais irreverente, na descrição da beatice supersticiosa e hipócrita da riquíssima Titi, punida com “a relíquia” sacrílega que recebe do sobrinho devasso.

Pouco a pouco, porém, apesar das décadas que passou fora de seus país na carreira diplomática (Londres, Havana, Madri), Eça de Queirós reconcilia-se com Portugal. Descobre, ao lado dos defeitos que sempre ridicularizara, virtudes que outros países da Europa, mais sofisticados e cheios de tédio, tinham perdido. A Ilustre Casa de Ramires e, sobretudo, A Cidade e as Serras - cuja parte final o autor não teve tempo de corrigir - são a exaltação dos valores morais de Portugal: a generosidade de seu povo, a fidalguia e dignidade de seus varões ilustres, a doçura da paisagem e da população rurais do interior lusitano. Mas esse amor entranhado pelo povo, esse encontro crepuscular com sua pátria já estão matizados de espírito religioso num prefácio escrito em 1896 e em contos como “O Suave Milagre”. Nessas palavras de introdução ao Almanach Encyclopédico daquele ano - ingênua mistura de farmácia e calendários de santos -, Eça de Queirós já deixa prever o preparo do seu dicionário de fatos milagrosos dos santos: “E mesmo nesta aproximação do céu, quanto ainda, doutro modo, devemos ao Almanach! Com que desvelo nos empurra ele para a convivência dos Santos! O bom Almanach se torna o cicerone adoravelmente zeloso das estradas que levam ao Céu. Que digo? Ele arranja, na realidade, que essas estradas, tão várias, umas lajeadas d’obras, outras de pensamentos, desemboquem todas na nossa vida: e cada fresca manhã por uma dessas luminosas estradas, nos traz um Santo, que conosco fique durante o dia festivo em salutar convivência e nos console, e nos agasalhe sob o seu doce manto para nos contar a sua doce história… O Cristianismo arremessou os Santos tutelares para algumas abstratas regiões - e aqui deixou, sobre este grão de terra, o Homem abandonado, sem ter, para se alçar ao Céu onde habitam os seus Padroeiros, outra escada além do Pensamento, e sempre portanto no inextricável embaraço de atingir o que é Infinito por meio do que é Finito. Mas o Almanach chega, corrige o Concílio de Trento e, sem alardes, muito comezinhamente, mistura a Terra e o Céu…”

Eça não pode corrigir a recente cassação de vários santos, mas já seu contemporâneo e amigo Silva Bastos, adverte que Eça de Queirós, ao compilar o Diccionario de Milagres, não tinha uma intenção zombeteira ou iconoclasta: “De certo que ele (Eça) não estava a esboçar um Diccionario dos Milagres para mais tarde vir a explorar crendices, nem alimentá-las (…), mas simplesmente num ponto de vista alheio a qualquer preocupações de demolidor”. Esse Diccionario é breve demais para se falar de uma obra póstuma. Na realidade, como seu subtítulo indica, trata-se de uma “coordenação inédita por concluir”, ou menos ainda: um mero fichário em que o autor anota ou transcreve trechos de vidas dos santos. É transparente, porém, a ternura, a devoção quase, com que Eça de Queirós traça os perfis dos santos venerados popularmente em Portugal. Dividindo seus milagres por tipos, ele enumera alfabeticamente os acontecimentos: águas que brotam milagrosamente; água convertida em vinho; águas que não fazem mal; almas conduzidas ao céu; aparições, etc. Duas das santas - Santa Bárbara e Santa Filomena - estão hoje destronadas, mas a poesia das lendas que envolvem seus nomes deve ter cativado a sensibilidade artística de Eça, nessa reconciliação derradeira com Portugal que incluía um espírito de religiosidade quase ingênua, surpreendente no autor de Os Maias:

Santa Bárbara administra a Santo Estanislau Kostka o sacramento da Eucaristia (1550-1568) - “Ao tempo a que Santo Estanislau se dispunha a entrar na Companhia de Jesus, foi acometido de moléstia de tamanha gravidade, que desesperaram os médicos de o poder salvar. E o coração do mancebo aperta-se, e o seu espírito confrangia-se não com receio da morte, mas por lhe faltar o meio de receber a Sagrada Comunhão, achando-se enfermo em casa de pessoas herejes. Nesta perplexidade acudiu a Santa Bárbara, rogando-lhe fervorosamente que o não desamparasse, nem permitisse que chegasse à morte sem antes participar da divina Eucaristia. Alta noite, não podendo Estanislau conciliar o sono, apareceu-lhe Santa Bárbara acompanhada de dois anjos, trazendo as espécies sacramentais de pão e de vinho. O jovem recebeu a comunhão das mãos de Santa Bárbara, servindo os anjos de acólitos; e daquela hora em diante começou a esperimentar melhoria…”

Santa Filomena, taumaturga do décimo nono século, prova a sua identidade - “Apenas a rainha do Céu desaparecera, entrou (o Imperador) Diocleciano com os seus soldados no calabouço. Despiram, ataram-me a um pilar, e açoitaram-me até o meu corpo não ser mais do que uma chaga viva. Desmaiei após tão grande sofrimento e, dando-me por morta, os meus algozes abandonaram-me, baixando em seguida dois anjos a curar as minhas chagas. Ao dia seguinte, informado de que reflorescera a minha formosura, voltou a ver-me o Imperador, olhando-me com visível admiração, aconselhando-me a que rendesse graças a Júpiter por me haver restabelecido, e prometendo-me ser imperatriz dos romanos. Desprezei as suas promessas, e Diocleciano ordenou que me prendesse ao pescoço uma âncora, lançando-me em seguida às águas do Tibre. Executadas as suas ordens, baixaram novamente dos anjos e trouxeram-me para terra à vista de milhares de testemunhas. Muitos se converteram, mas Diocleciano, atribuindo-me a arte de magia, mandou ainda que me arrastassem despida pelas ruas de Roma, sendo um sem-número de flechas disparadas contra mim… Ao outro dia arrojaram-me a uma fornalha acessa, onde pereceram seis dos meus perseguidores; e Jesus recebeu a minha alma e conduziu-a ao paraíso, colocando sobre minha fronte as coroas do matírio e da virgindade.”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (28AD–5AD) 2022. “Suave milagre: no fim da vida, um Eça religioso .” In Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns escritores portugueses, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 6. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.