Entrevista com Edoardo Bizzarri
Qual a sua opinião sobre Guimarães Rosa?
“A meu ver, Guimarães Rosa é a figura maior da literatura brasileira nesta segunda metade do século. Na primeira, Graciliano Ramos. Guimarães e Graciliano pertencem à literatura universal, depois de serem brasileiros. Amanhã ainda serão reconhecidos.”
O Sr. utilizou formas dialetais na tradução de Campo Geral (Miguilim)?
“A utilização de formas dialetais levaria o leitor italiano a um ambiente italiano. Eu achava essencial levar ao leitor estrangeiro esse ambiente um pouco mítico, o mundo brasileiro de Guimarães Rosa. Se usasse um dialeto romano ou vêneto eu criaria outro mundo para o Guimarães, eu o levaria a um panorama ou a uma psicologia romana ou vêneta. Assim, cheguei ao ponto de não traduzir algumas palavras que se traduzidas dariam ao leitor uma imagem deformada da realidade. Não traduzi”sertão” e não traduzi “veredas”, por exemplo, para que entrasse na linguagem italiana, com a carga peculiar, um mundo geográfico-humano diferente. Eu achei e acho que o mundo de Guimarães Rosa, embora tenha um valor documentário-folclórico muito importante, artisticamente é um mundo de invenção. Os vaqueiros de Guimarães são figuras pastoris do passado, são antigos cavaleiros de antanho que ingressaram numa realidade de poesia e que agora pertencem a um mundo completamente afastado da realidade definida. Em minhas traduções, visei levar ao leitor europeu essa realidade poética. E, aliás, vou dizer a você uma coisa curiosa. Corpo de Baile teve na Itália maior sucesso do que no Brasil. No Brasil demoramos vários anos para termos uma segunda edição; na Itália houve uma segunda edição em apenas um ano. A primeira edição foi uma edição luxuosa e custava quatro mil liras o exemplar. Um ano depois saía a edição popular, a duas mil liras o exemplar.”
Em italiano, Corpo de Baile foi o primeiro livro de Guimarães?
“Outro livro de Guimarães, contendo dois contos de Sagarana, já havia aparecido na Itália. Um dos contos fora trduzido por mim. O outro fora traduzido por Jannini. Também este livro alcançou mais de uma edição, teve três edições seguidas.”
Guimarães Rosa gostou da tradução italiana?
“Gostou muito. A respeito disto eu tenho uma correspondência muito importante e que pretendo tornar pública assim que ficar solucionado o problema do inventário de Guimarães. Como nós não nos encontrávamos, eu mandava questionários daqui de São Paulo e ele os devolvia respondidos, explicando todos os problemas que eu havia encontrado, durante a tradução. Eu deixava na lauda alguns pedaços em branco, entre as perguntas, e os espaços nunca eram suficientes para ele… Tenho também outras cartas pessoais, versando sobre outros assuntos. Creio que as cartas de Guimarães, hoje em meu poder, têm um extraordinário interesse público. São ao todo 34 cartas. Acho que vai haver uma reação muito grande da parte da crítica. Guimarães fala de como escrevia, fala a respeito de si mesmo. Deveríamos ter um encontro aqui em São Paulo. Na última carta ele tornava a marcar nosso encontro para janeiro deste ano, data que a sua vida não alcançou. Aconteceu comigo o que eu jamais imaginava. Geralmente o autor não fica satisfeito com o tradutor. Guimarães não só ficou satisfeito com o meu trabalho como chegou a dizer, por generosidade ou modéstia, que em algumas coisas o meu trabalho havia superado o próprio original. Ele falava, inclusive, de uma espécie de identidade, de uma irmandade anímica ou coisa parecida.”
De que forma o Sr. enquadra Corpo de Baile no contexto da obra de Guimarães Rosa?
“Eu gostaria de fazer uma afirmativa, divergindo da maior parte da crítica. Para mim, a obra prima de Guimarães Rosa é Corpo de Baile. Isto vai ficar constatado quando voltarmos a dar atenção a Corpo de Baile. Grande Sertão saiu logo depois e tirou grande parte do impacto do livro anterior. Eis porque Corpo de Baile não foi um livro suficientemente aplaudido como devia, no Brasil. Corpo de Baile tem um poético extraordinário e uma variedade de problemas humanos focalizados: o problema da infância em Miguilim, o problema da velhice, do pressentimento da morte em Manuelzão, o problema do fato poético em”O Recado do Morro”, o problema da essência da poesia em “Cara-de-Bronze”, o problema do amor em “Buriti” o que quer dizer, Corpo de Baile joga com todos os problemas essenciais da vida humana.”
O Sr. tem recortes ou lembrança de críticas marcantes sobre Guimarães Rosa, na Itália, críticas de Carlo Bo, Moravia, Elsa Morante ou de outros intelectuais italianos?
“Não, infelizmente não guardo essas coisas. Talvez eu tenha pouquíssimos elementos em casa. Vou procurá-los para você. Há um suplemento literário de O Estado de São Paulo, de junho ou julho de 1966, que trouxe uma espécie de resenha das muitas, das várias apreciações críticas sobre Guimarães.”
O Sr. pretende traduzir Grande Sertão: Veredas?
“Devo dizer a você que, ao sair a terceira edição do livro Grande Sertão, o prórpio Guimarães mandou-me um exemplar e sua dedicatória trazia esta expressão: ‘mando com um desafio afetuoso’. Não me senti em condições de traduzir o livro, eu estava muito cansado de viver fora de mim mesmo. A questão não foi e nem é apenas de eu pretender ou não o traduzir. É mais uma questão editorial. Você sabe como são esses casos. O editor parte de uma exigência do mercado ou de um plano editorial. E diz: ou já ou não me interesso mais, por enquanto! É como um comerciante que precisa desta mercadoria para atender à procura. A par disso eu também acho que Grande Sertão, com todas as sugestões peculiares de estilo de Guimarães Rosa, presta-se menos para ser levado a outra língua. A dificuldade na tradução de Grande Sertão não é uma dificuldade de terminologia, como pode ser, em parte, em Corpo de Baile, é a dificuldade de uma outra língua, é praticamente a dificuldade de se obter, na tradução, os mesmos efeitos do original. Digamos em outras palavras: a poesia de Corpo de Baile está na invenção poética. A poesia de Grande Sertão: Veredas está essencialmente no ritmo e nima modalidade de contar, não na invenção. Portanto, Grande Sertão está muito mais ligado à peculiaridade da língua do que Corpo de Baile.”
O Sr. concorda que Guimarães Rosa é comparável a Joyce ou, pelo menos, que podemos compará-lo com os grandes novelistas que reestruturam a linguagem de seus respectivos países e idiomas?
“Vamos ficar apenas com Joyce. A comparação com Joyce é um pouco imprópria. Em Joyce, a meu ver, o problema linguístico é de natureza totalmente diferente. Em Joyce há um fundo e uma exigência de caráter intelectual na modificação e na deformação da lingugem, na tentativa de criar uma linguagem nova. Em Guimarães Rosa há uma exigência poética de exprssão. Ele cria a linguagem por uma necessidade de expressar as várias nuanças de seu mundo poético.”
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Entrevista com Edoardo Bizzarri},
booktitle = {Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa,
Clarice Lispector e Hilda Hilst},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {2},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-2/1-guimaraes-rosa/10-entrevista-com-edoardo-bizzarri.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Inédito, Sem data. Aguardando revisão.}
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