Kafka revive em Praga

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Correio da Manhã, 1963/10/19. Aguardando revisão.

Este ano, quase meio século depois da sua morte, a Tchecoslováquia descobre Franz Kafka. Sua novela Amerika, traduzida agora do original alemão, foi esgotada em 72 horas nas livrarias de Praga, embora seu lançamento se tenha feito quase em surdina, sem alarde publicitário. No entanto, quem partir “à la recherche de Kafka” na Praga soturna de hoje, encontrará vestígios insuspeitados de sua presença na cidade outrora cosmopolita e alegre, com suas catedrais barrocas e as estátuas de seus santos debruçadas das ponstos sobre o Moldávia. Nas esquinas, nos bairros, divisam-se, claras, as cicatrizes da guerra, dos levantes populares sufocados, dos massacres nazistas contra a comunidade judaica e permanece, inextinguível, a recordação de Lídice. Os frequentadores dos cafés buliçosos da Ferdinandstrasse (atualmente transformada em Rua Norodni) foram dispersos pela terra e pela morte: Max Brod, Franz Werfel, Rilke. No cemitério local, a lápide sobre o túmulo do novelista foi abatida pela sanha nazista que não conhecia fronteiras nem mesmo no campo santo: a que agora assinala seu nome, sem epitáfio, é recente. Restam intactas duas das casas em que ele morou, em quartos alugados para fugir ao cerco espiritualmente esterilizante da vida diária familiar. Uma delas ergue-se na parte alta residencial, na Zlata Ulicsa, ruela que flui como um riacho obscuro aos pés do Castelo de São Vito, majestoso e fosforescente dentro da noite. As três irmãs foram trucidadas no campo de concentração de Belsen. Milena, a amiga intelectual e sensível, com quem ele manteve uma correspondência sem paralelo na literatura moderna ocidental, foi capturada nas ruas de Ravensbrücke, quando demosntrava com a cruz de David cosida no vestido sua solidariedade suicida aos amigos judeus.

Somente Gustav Janouch permaneceu, como refém desse passado e raro sobrevivente à hecatombe dos judeus na Europa Central. Na obscuridade de sua velhice, ele prepara sua obra final, o relato de seus diálogos com Kafka, dos quais emerge o tom grave e elegíaco que assumiam suas previsões sobre o futuro político da Europa Central e de sua terra natal, a Tchecoslováquia. “Depois que Kafka morreu – recorda Janouch em entrevista concedida a um jornalista italiano que o foi visitar em seu anonimato atual – quantas vezes diante de um acontecimento, do rumo de certos fatos, diante de um drama coletivo, eu parei para relembrar, estupefato, a clareza com que, muitos anos antes, ele previra esses desenlaces… Quem sabe de onde provinha sua extraordinária capacidade de intuição? Talvez de sua atormentada alma hebraica, talvez de sua doença ou dos contrastes absurdos desta cidade, que Kafka detestava e da qual não conseguiu escapar senão quando já era demasiado tarde?” Como o estrangeiro K na aldeia hostil da alegoria moderna de O Castelo, Kafka não teria acesso à Canaã sonhada, exilado nos seus três guetos inespugnáveis que o impediam de integrar-se numa estrutura qualquer; a cultura alemã num país eslavo, a origem judaica num meio católico e a repulsa que sentia pela religião de seus pais, que definia como mero ritual exterior, eivado de superstição. Aos choques da impossibilidade e assimilação numa comunidade humana logo se vieram somar as tensões crescentes e por vezes violentas dos grupos heterogêneos que compunham a nova nacionalidade, em meio ao desejo cada vez mais irresistível de independência nacional. Como um sismógrafo sensível, o seu Diário registra a imanência do Medo, o espectro do pogrom ancestral. Uma visita à parte de Praga que fôra saneada, eliminando-se as áreas infectas nas quais os hebreus eram isolados desperta-lhe uma visão interior, uma image-arquétipo do horror do massacre de populações indefesas e é esta alucinação que se sobrepõe à evidência enganadora da realidade externa.

“Vivem ainda em nós, sempre, as esquinas sombrias, os becos secretos, as janelas vedadas, as áreas internas imundas dos edifíceios, os botequins barulhentos e as pensões fechadas. Andamos pelas ruas amplas da cidade reconstruída. Interiormente trememos ainda commo outrora, nos velhos becos da miséria e da angústia. Nosso coração nada sabe ainda do saneamento urbano. A velha e insalubre cidade judaica existe com muito mais realidade em nosso espírito do que a nova e higiênica cidade que nos circunda. Acordados atravessamos uma paisagem de pesadelo, nós mesmos espectros de eras passadas.”

No espelho deformante da simbologia kafkeano, porém, Praga seria não uma cidade geograficamente localizável, mas uma visão apocalíptica do ódio entre os homens, uma Babel, vista por Bosch, da incomunicabilidade entre os homens, uma Jerusalém de fogo, enxofre e desespero. Se a radiografia de uma metrópole identificável, Dublin, feita por Joyce em Ulysses sondava a psique humana em seus aspectos emblemáticos da ambiguidade eterna do Bem e do Mal, do trágico e do grotesco, através do stream-of-consciousness e dos retratos cubistas de Finnegans’ Wake, a metrópole que brota das novelas e contos de Kafka é a cidade da angústia coletiva, o mosaico das frustrações e angústias individuais que erguem seu clamor e sua solidão contra um plúmbeo céu indevassável.

Mas é vista sob a perspectiva mais ampla da História recente que a sua obra adquire tons sombrios de uma clarividência dissimulada em hieróglifos que a humanidade decifraria com o seu sangue e a morte espiritual. Das páginas incandescentes de A Colônia Penal surgiriam, numa alquimia negra, os campos de concentração de Ausschwitz e Dachau, onde sobre milhares de corpos e espíritos macerados, circundados por cercas de arame eletrificado, se alçava o dístico de uma ironia abissalmente demoníaca: Die Arbeit macht frei (o trabalho libera o homem). E Eichmann não simbolizaria, como o Gregor Samsa de A Metamorfose, uma nova forma de sub-homem monstruosamente desprovido das características humanas?

À nossa época, contudo, pontilhada de muros de Berlim de crises de “guerra fria”, estaria reservado revelar todo o alcance do poder divinatório do autor thecoslovaco. Pois que outro sentido podem ter suas descrições – de uma lucidez e uma precisão que raiam no profético – dos meandros sádicos da burocracia corrupta e filistina em O Processo e O Castelo senão o de antever a burocracia soviética monolítica e tentacular, cujo obscurantismo cultural envolveria Brecht em luta contra o Comitê de Kultura de Jdanov e hoje os artistas russos liderados por Nekrassov e Evtuchenko que desafiam os ditames absolutistas de Kruchev1 no terreno da arte? É impressionante a identidade de reações e a coincidência de metáforas supreende entre Kafka e Maiakovsky, o grande bardo desiludido da Revolução que exclamara, pouco antes de suicidar-se:

“Nos corações revolucionários a tempestade cessou

E toda a imundicie da União Soviética ressurgiu do lodo.

E por detrás das costas da URSS insinuou-se o sorreio grotesco dos pequenos

burgueses filisteus”

Anota Janouch em suas reminiscências: “Terá sido em 1920, creio, quando nos encontramos um dia com um grupo de trabalhadores que se dirigiam a um comício, com bandeiras e cartazes. Pairava ainda no ar a euforia da grande revolução socialista.

“Eles se enganam, disse-me Kafka, pois detrás deles já se encontram prontos os secretários, os funcionários, pos políticos de profissão, todos os sultões modernos para o squais eles, operários, preparam a subida ao poder”. Depois acrescentou: “Quanto mais uma inundação se alarga, mais a água se torna turva e menos profunda, a revolução se evapora e só resta a lama de uma nova burocracia”.

Quem conhecer, ainda que elementarmente, as diretrizes fundamentais do mundo kafkeano – irrepetível e absoluto – só poderá considerar sob um ângulo profundamente kafkeano – o do absurdo – as últimas tentativas dos críticos comunistas tchecos de incorporarem-no à legião arbitrária de “precursores do marxismo”. Emanuel Frynta, notadamente, tenta justificar, ideologicamente, a avidez com que seus compatriotas arrebatam as novelas e contos, contos e aforismos do autor que, na opinião de Donald Pierce escrevia a Divina Comédia do século XX, o século de Hiroschima e de Guérnica, de Hitler e do raio da morte. A semelhança com os métodos nazistas é flagrante, se recordarmos os esforços dos cientistas do Terceiro Reich, em dar provas “irrefutáveis”da origem ariana e germânica de Cristo e de Dante, de Beethoven e Leonardo da Vinci.

Intrinsecamente inclassificável pelos rótulos esquemáticos do fichário ideológico da política, do niilismo, do judaismo. Kafka se sobrepõe, de per se, aos critérios, pré-fabricados na integridade de sua afirmação metafísica. É possível que a sua essência vital, já reconhecida por Maurice Blanchot, Camus, Max Brod, Janouch e Politzer não escape aos cidadãos de seu país natal, e que eles a encontrem em sua plenitude quando Kafka anota, nos relatos de seu solitário combate com o demônio:

“Só existe o mundo espiritual. O que nós chamamos de mundo dos sentidos é a manifestação do Mal no reino espiritual” (Aforismo nº 54 das Betrachtungen)

E sua vitória final:

“o fato de que nada existe a não ser o mundo espiritual tira-nos a esperança e traz-nos a certeza” (Máximas e Aforismos)

Notas de rodapé

  1. Leia-se apropósito o discurso estarrecedor de Kruchev em Cadernos Brasileiros nº 4, em que os filisteus da URSS, como os filisteus do Ocidente, repudiam todas as consquistas da arte moderna em qualquer de suas manifestações, chegando ao extremo, porém, de invectivar contra Chopin, Liszt e Tchaikovsky, “compositores aristocráticos e reacionários”, subjugando os artistas à tirania da linha ideológica absolutista.↩︎

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Kafka revive em Praga .” In Testemunhos Literários do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 3. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.