Oswald de Andrade, o incoerente

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Leitura nº 30, 1984-11. Aguardando revisão.

Na polarização maniqueísta - aqui o pleonasmo se torna necessário - do Brasil de hoje, agora é a vez de se cantar as glórias de um nome que já foi do Partido (obviamente com P maiúsculo, pois se é único). José Oswald de Sousa Andrade morreu há 30 anos? Comemora-se a data com espalhafato, ainda mais que ele às vezes foi bom escritor! Dóceis, as loas já saem prontas em quase toda a chamada grande imprensa, que obedece no Brasil a invisíveis fios de Pavlov habilmente manipulados pela Esquerda saudosa de Stálin, o Paizinho dos Povos. É como se todos lêssemos diferentes elogios publicados no Pravda e no Izvestia abrasileirados, socialmente morenos. Não morenos etnicamente, o que seria excelente, mas morenos na obscuridade mental e mendacidade. O patrulhamento ideológico stalinista nos censura com a voracidade e a vigilância tenaz do Departamento de Imprensa e Propaganda getulista ou da “dobradinha” Buzaid-Falcão.

Afinal, todas as censuras não são uma só censura?

Mas de qual Oswald de Andrade se fala?

Do autor de estihaços de granes romances, Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande?

Do enfant gâté da elite monetária paulistana que cada vez que ia à Europa trazia de lá um movimento e uma esposa novos?

Do temível blagueur que preferia uma frase engraçada e arrasadora de um minuto a uma amizade de vários anos?

Do fracassado autor de Marco Zero, uma indigesta mistura de “realismo socialista” soviético com o pernosticismo retórico de um D’Annunzio bêbado e impotente? Do formulador de frases de efeito e superficiais ao menor exame, do tipo “tupi or not tupi”?

Porque Oswald de Andrade é todas essas personae (máscaras) e outras mais.

Qualitativamente, seria desonesto negar sua função de esanador das teias de aranha que recobriam a literatura brasileira. Seria desonesto não reconhecer que ele incitava o Brasil a “se enxergar” a si mesmo, como manda a sabedoria popular, em vez de macaquear “modices” chegadas da Europa com o atraso de alguns decênios apenas. Ele agiu como um desentupidor da retórica banal e vazia da discurseira brasileira, das gramatiquices de um Coelho Neto com seu vocabulário que se perde na bruma do pedantismo narciso-incompreensível.

Mas aderiu ao movimento futurista-fascista de Marinetti.

Brigou com o Partido (Lênin, saivai-nos!), tentou entrar para vetustas entidades “burguesas” como a Universidade e - horror! - até para a Academia Brasileira de Letras.

Como!? Um homem que dizia as coisas com uma crueza sorridente e chocava a burguesia daquela sua cidade provinciana de então, São Paulo?! Oswald de Andrade engloba todas essas personalidades à medida que o tempo passa. O poeta Carlos Drummond de Andrade, geralmente mais fechado que as portas das casas de Itabira, nega a alienação anárquico-comunista-revolucionária daquele que queria deglutir as ideias estrangeiras como os índios da Bahia digeriram o Bispo Sardinha. Na crônica incluída no livro Fala, Amendoeira, justamente denominada “O Antropófago”, discerne algo diferente do cabotino:

“Dessem-lhe carinho, e o homem cheio de alfinetes e navalhas se aveludava. E quando encontrou carinho, ou foi bastante lúcido para identificá-lo, depois de outros tantos que havia encontrado e não soubera decifrar, instalou-se numa felicidade burguesa e monogâmica, que negava toda a laboriosa construção antropofágica, levantada em quase 30 anos de orgulho intelectual, isto é, de autojustificação.”

Oswald de Andrade, numa análise retrospectiva e tão objetiva quanto possível, caiu vítima do estereótipo a que quis reduzir o brasileiro: um manietado pelo ócio, um criador de anedotas fulgurantes que brilham o instante de um fogo de artifício. Fora alguns momentos da sua poesia e dos seus romances-fragmentos, sua obra se ressente de qualquer unidade, de qualquer pesquisa aprofundada. Para sermos justos, porém, seu legado não se desfez nas superficialidades com que causava frívolas, efêmeras gargalhadas. Afinal, ele foi o primeiro a descobrir e a propalar a genialidade de Mário de Andrade, este desconhecido semeador de lucidez e inteligência. De Mário de Andrade ficaram, além do revolucionário Macunaíma, a criação da Discoteca Pública, do Serviço de Patrimônio Histórico, da Biblioteca Municipal, o incentivo a Carlos Drummond de Andrade, a “redescoberta” do Aleijadinho e toda a arquitetura barroca mineira, além de estudos e cartas sobre musicologia, etnografia, antropologia, literatura brasileira e estrangeira etc. Ao ímpeto autenticamente democrático de Mário de Andrade se contrapõe o jornal primário da luta de classes de Oswald de Andrade, O Homem do Povo, um aborto sufocado por fugazes intenções ingênuas.

Seria covardia deter-nos no “ciclo social” dos volumes de Marco Zero ou apenas Os Condenados e A Estrela de Absinto. São o folhetinesco, pomposo, grotesco desfile do que hoej chamaríamos de robôs com sentimentos teatrais. Exemplo: o escultor, dominado pela luxúria em A Estrela de Absinto que não sabia como se consolar pela morte prematura de sua amada, inacreditavelmente chamada Alma (!) e que de seio em seio a olvida (é o termo) até sucumbir no turbilhão do suicídio ele mesmo… Falta mencionar A Escada Vermelha que completa essa inefável Trilogia do Exílio, um exílio para o qual não há anistia literária? Não, são bonecos mergulhados no mar de suas baboseiras, lugares-comuns, personalidades monolíticas e paralisadoramente enfadonhas.

Ora, direis, ouvir estrelas, ainda que de absinto. E Oswald de Andrade é então uma empulhação, um engodo? E suas audácias de linguagem nos romances que de tanto em tanto quase são obras-primas? E os poemas que são uma síntese fotográfica de uma imagem, de uma percepção emotiva ou cerebral? Quanto de seu impacto diluiu-se com estes 30 anos! “A tarde suicidava-se como Petrônio”, por exemplo, para os ouvidos contemporâneos soará como uma frase feita, de leitura apressada de um almanaque calcado na vida dos césares e distribuído gratuitamente nas farmácias com o elixir Capivarol, que talvez nem exista mais… Permanece a sátira do ricaço diante dos Palazzi dos novos-ricos do café ou da indústria erguidos na Avenida Paulista, imitando mesquitas, chalés dos Alpes suiços, vetustas mansões - zonas normandas: “Nhôs levantavem palácios confeiteiros questionando que quadros ou fosse assinado por figurões do Larousse ou pelo Barbabassi.” Ou a impagável “Carta” de quem não quer ser transferido e solicita a um protetor “empistolado”:

“21 de Abril

Seu Dr.

Peguei hoje na pena para vos Felicitar os nosso antes Passado sendo um dia de grande gala para nós no nosso Grande Brasil sendo o dia do nobre Brasileiro Tiradentes que foi ezecutado na forca, mais tudo passa vamos tratar do nosso futuro que é melhor os passado eram bobos, por aqui todos Bom grassas a Deuso o mesmo a todos que aí estão. Candoca, Rufina, Delina, Maria José, Bermira e a filha estão todos na mesma. Só eu sai sorteado para o Regimento Suprimentar de Paracatu no goiás e queria que V. S. Desse as providências para ficar em Caçapava no Regemento de Infantaria Montada fica mais perto aqui eu estudarei para ser a Luz de minha família. Representar talento com meu falecido avô Capitão Benedito da Força Pública, não estudando agora, quando mais o tempo passa e a Velhice chega conduz Tristeza, porque este mundo é um passa tempo que nós temos essa é a Verdade! Só temos que tratar do Futuro neste mundo não valhe nada a Beleza as Festas as Inlusão do mundo, só o talento como o grande Rio Branco o Ouro Preto, o Padre Feijó, José Bonifácio, Rui Barbosa e outros que nem se sabe.

Seu criado as ordens.

Minão da Silva.”

Seus neologismos, sua libertação da frase da disposição comum, a fuga da linearidade, o texto francamente “cubista”, com sua simultaneidade de enfoques e recusa da descrição servilmente imitativa da realidade, sua pioneira associação de imagens psíquicas, à maneira do monólogo lúbrico de Molly Bloom no Ulysses de Joyce - tudo isto perpetua a memória deste semidesbravador estilístico. Mas o que fazer do amontoado de erros de visão de quem contrapunha ao capitalismo originado de Calvino e de outros líderes protestantes do Norte da Europa uma mansuetude que a Igreja Caatólica só teve em indivíduos excepcionais? E, pior ainda, como contrapor à Holanda de Maurício de Nassau uma igreja da Contra-Reforma, que se emporcalha com o fanatismo da Inquisição, das torturas, das condenações à morte na fogueira e ainda dá ao povo a eterna chupeta da “amanhã no Céu estarei”, procissões para acabar com a seca, ouropéis, baldaquinos do trono papal e agora a pérfida hipocrisia de “defesa prioritária dos pobres”?!

Decididamente, pensar, pensar coerentemente, profundamente, e até o fim não foi o forte de Oswald de Andrade. Há, porém, passagens tocantes da sua vida, em contraste com a saraivada de frases ocas de seus escritos. Para mim a mais humanamente patética é o relato de seu filho Rudá, que transcrevo:

“No fim de sua vida, em 54, levei-o à 2a Bienal. Era no Iberapuera de Niemeyer, da oficialização definitiva da arquitetura e da arte moderna que daria Brasília. Estávamos naquela tarde praticamente sós, sob as arrojadas estruturas de concreto e cercados de arte abstrata. Oswald sentia-se como um dos principais autores daquela conquista. Ele chorou. Era como se tivesse vencido uma longa batalha. Sentia-se apoiado e com a razão. Era algo que acontecia na sua cidadezinha provinciana, depois de uma vida de trabalho.”

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1984) 2022. “Oswald de Andrade, o incoerente .” In Alguns artistas da Semana de Arte Moderna de 1922: Entrevistas, depoimentos e ensaios, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 5. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.