Punhal destemido. Nota sobre Com os Meus Olhos de Cão de Hilda Hilst

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Leia, 1987/01. Aguardando revisão.

Quem tem medo de Hilda Hilst? Cochicha-se com enfado: “Ela é uma autora difícil”. Alguns desfecham o golpe mortal par a preguiça do leitor comum: “É hermética, enigmática, quase indecifrável”. Ela é todos os opostos: intratável, amabilíssima, egocêntrica, generosa. Refinada intelectual, guarda em sua fazenda (a 111 km de São Paulo) a pérola aristocrática de sua ficção a salvo dos bíblicos porcos ignorantes de seu mágico fascínio interior. Todos tinham medo de Hilda Hilst.

Agora, a Editora Brasilense enfeixa algumas de suas novelas junto com a que dá título à coletânea Com os Meus Olhos de Cão. Massao Ohno, o genial e louco editor, já publicara vários livros dela, alguns com repercussão até em Paris, onde o severo e prestigioso semanário Le Monde saudou-a em longo artigo, de Jorge Coli, como tendo atingido “a perfeição da escritura literária do mundo contemporâneo, apresentada aqui em escrínios de rara beleza editorial”.

Em algumas linhas não é possível sequer delinear o universo de Hilda Hilst, incapaz de deixar o leitor indiferente. Em “Floema”, por exemplo, um homem interroga Deus pessoalmente. E Deus responde. À maneira dos supremos escritores deste século – Fernando Pessoa, Doris Lessing, Virgínia Woolf, Guimarães Rosa, Bekett – Hilda Hilst modifica toda a perspectiva do leitor diante da vida, toda a sua filosofia existencial. Porque ela vai até o fundo pulsante do coração humano como um punhal destemido a rasgar em suas carnes a própria teologia: o que significa o efêmero do gozo sensual, o amor, a banalidade do dia-a-dia, a morte, Deus?

O que desconcerta muitos leitores é a referência a autores eruditos, como Copérnico e Georges Bataille, seguida de frases prosaicas, chulas, vulgares. A obscenidade e excremento ao lado dos estados da alma mais místicos, mais líricos, mais docemente saudosos e melancólicos.

De chofre, por exemplo, um conto, digamos assim, à falta de designação melhor, começa com a pergunta e a definição: “Deus? Uma superfície de gelo ancorada no riso”. Trechos intensamente poéticos, longos, aqui resumidos forçosamente: “Um mítido inesperado foi o que sentiu e compreendeu no topo daquela colina. Mas não viu formas e linhas, não viu contornos nem luzes, foi invadido de cores, vida, um fulgor sem clarão, espesso, formoso, um sol-origem sem ser fogo. Foi invadido de incomensurável”. Seguidos de trechos voluntariamente terra-a-terra: “Sua mulher, a singular Amanda galopava o quarto de um canto a outro, seus braços morenosos alçavam-se e depencavam agitados: Amós, número é bom quando se tem conta no banco, tá?”

Assim como em A Obscena Senhora D a busca de Deus, do Outro, se junta à gosma que se tem que limpar humildemente com um pano de chão, a febre mística surge indissociável do verme no excremento. Os nomes que ela inventa parecem sílabas derivadas do hebraico, dos jardins babilônicos para sempre perdidos: Amós Kéres, Hillé, Ehud, Qadós, Koyo. Não que ela seja “estrangeirada”: suas narrativas acontecem no Brasil, rural ou urbano, no Japão, num tempo indefinível ou atual. Em “Teologia Natural”, se fizermos uma abreviação brutal deste relato deslumbrante, um integrante da miséria absoluta em que está mergulhada 70% da população brasileira lava cuidadosamente a velha de pele escura para vender aquele “tico de mãe”, carregando-a às costas, no mercado da cidade, onde até merda se compra: assim poderá ter as botas e os óculos escuros necesários para seu trabalho nas alvas e cegantes salinas. Tu não Te Moves de Ti desentranha uma temática digna de Henry James em The Beast in the Jungle (A Fera na Selva): um grande empresário compreende, com horror, que não está vivendo, que nunca viveu, em meio às máquinas, ao dinheiro, à fama de colunável, à ambição insaciável da mulher. Matamoros, uma das criações eróticas mais inflamáveis e perfeitas de qualquer literatura, desafia a iniciação quase que se diria sacra e sacrílega, gozosa, de uma menina nos labirintos deliciosos do paraíso do sexo: “… a mãe chamou um homem para que fizesse rezas sobre mim, disse a mãe a ele que a menina sofria um tocar pegajoso, que os dedos afundavam-se em tudo o que viam e de mãos amarradas o homem grande me levou ao quarto, sim, amarrei a mão da menina para que não empreste sujidade à vossa santidade, a mãe dizia, para que não lhe tire o perfume espelhado da batina, me deitaram no catre e o homem disse à mãe que sozinho comigo lhe deixasse e dessa vez fui largamente tocada, os dedos compridos inteiros se molhavam, ficou nu sobre mim, entornou-me de costas, eu sentia um divino molhado sobre as nádegas, gritava, o homem rugia à minha mãe do outro lado: não se importe, senhora, são demônios azuis que se incorporam…”

Numa época em que grande parte das preocupações brasileiras, além de econômicas, são ideológicas, cada vez mais politizadas, Hilda Hilst será descoberta como gênio da lieratura em português da nossa época. Ela formula as questões fundamentais da fome de transcendência humana rumo ao divino, arrola as nossas sórdidas pequenezas humanas. Mais: infunde a cada frase, quase, um substrato maravilhoso de poesia e verdade. Ler um livro seu é aceitar que a nossa vida seja mudada: cada ficção sua é a própria metamorfose.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1987) 2022. “Punhal destemido. Nota sobre Com os Meus Olhos de Cão de Hilda Hilst .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.