Cardoso Pires, para quando o Brasil descobrir Portugal
José Cardoso Pires, o grande romancista português, possivelmente o maior deste momento de toda a Península Ibérica, é vítima da quarentena crescente que isola cada vez mais o Brasil da cultura do seu tempo. Seus livros combativos e esteticamente irrepreensíveis O Anjo Ancorado, Cartilha do Marialva (Editora Ulisséia, Lisboa, 1960) e sobretudo O Delfim (Moraes Editores, Lisboa, 1968) raramente chegam ao Brasil. Na sua nova fase a Editora Difel ou outras editoras brasileiras estariam interessadas na difusão da criação literária de Cardoso Pires, incluindo-se nela as obras mais recentes: Dinossauro Excelentíssimo, E Agora, José?, O Burro em Pé e Balada da Praia dos Cães. Todas levantaram celeuma em Portugal quando publicadas e mais tarde discutidas na televisão, principalmente a última, por lidar com um crime político verídico. Durante sua breve passagem por São Paulo, ele concedeu ao Jornal da Tarde esta entrevista exclusiva:
Parece que, ao contrário de Portugal, que está bem a par da literatura brasileira, o Brasil desconhece quase totalmente a literatura portuguesa contemporânea. As causas são muitas: displicência das editoras e livrarias, invasão do mercado brasileiro por títulos de outros países; o fato de que os livros dos autores portugueses não chegam até nós, isto é, ficamos cortados do diálogo, que deveria ser prioritário, com a nação que nos legou o idioma. A seu ver, a que se deve tudo isso?
“Bem, é um fato: em Portugal conhece-se bastante razoavelmente a literatura brasileira, a ponto de haver uma editora em Lisboa que só publica livros do Brasil…”
Justamente, a Livros do Brasil?
“Sim, e entre nós está muito divulgada não só a obra de Clarice Lispector, Guimarães Rosa entre outros, como até mesmo a literatura atual, de João Ubaldo Ribeiro, de Márcio de Souza, etc. Isso vem em parte da imagem que o Brasil tem hoje de Portugal, penso eu, ou seja: Portugal é um país mais ou menos histórico, carregado de tradições e que portanto não é um país inquieto, o que é uma visão exagerada. Como também se atribui a Portugal um único papel: o de um país de poetas e nada mais. Na realidade, o jornalismo brasileiro é mais vivo, melhor do que o português, como as universidades daqui procedem a uma análise muito mais viva das nossas duas literaturas do que nos meios acadêmicos portugueses. Mas o romance em Portugal foi a primeira área da literatura, se podemos dizer assim, que se liberou do modelo do romance à la page e onde não vicejaram os estruturalismos ou as experiências copiadas do nouveau roman francês, o que não quer dizer que em Portugal não haja uma invenção estrutural do romance muito mais avançada do que em muitos países, a ponto de eu ter afirmado, numa reunião internacional de escritores, patrocinada pela Fundação Gulbenkian, e continuo reiterando, que na Espanha, França ou Inglaterra, hoje em dia, não há nenhuma inovação, nenhum vigor narrativo como na prosa atual portuguesa.”
Que corresponde a uma pequena Renascença da prosa em Portugal que o brasileiro médio ignora completamente?
“Acontece que a partir de Aquilino Ribeiro - e não me refiro a Eça de Queirós porque acho Machado de Assis mais original ou até, para ficar no âmbito de Portugal, prefiro ao Eça que me parece demasiado formal, o Camilo Castelo Branco, afirmação minha que já causou muito espanto, eu sei - durante a guerra civil espanhola o romance português adquiriu feições novas e se tornou autônomo.”
E que nomes você destacaria entre os atuais?
“Entre os vivos o Saramago, a Lídia Jorge, o Lobo Antunes, a Maria Velho Costa…”
E você, naturalmente! E a que você atribui essa fermentação do romance português contemporâneo?
“Como lhe disse, sempre se esquece um ou outro nome importante. A que atribuo essa força do romance português de hoje? Eu penso que vem em parte da nossa libertação do naturalismo, que era um pouco pesado em nós…”
Principalmente do neorealismo, não?
“Sim, embora o neorealismo desse grande romancista como Carlos de Oliveira, não é? E em grande parte também acho que isso provém do fato dos nossos romancistas terem fugido ao pecado original de apoiar-se na cultura e na literatura francesas. Já há romancistas influenciados pelos autores anglo-saxônicos e os que eu chamo de romancistas autores de teses universitárias sob a forma de romances, é isso, uma demonstração de um teorema; sem esquecer um escritor que achava que estava a dizer uma coisa muito revolucionária ao proclamar a toda gente e muito contente consigo mesmo que o romance bom era aquele que não contava nada, a par de outro que dizia: não, o romance conta tudo, e no romance incluía até o mais ínfimo pormenor…”
Uma oscilação entre Balzac e o nada?
“De Balzac ao nada, exatamente. Fora esse maniqueísmo idiota, são romancistas de idades diferentes, com experiências diversas que renovam atualmente o romance português, entende?”
E a sua trajetória, Cardoso Pires? Depois do excelente O Delfim, que mais você publicou?
“Uma coletânea de histórias e principalmente O Burro em Pé e o Dinossauro Excelentíssimo…”
Uma referência sua a personagens do alto escalão econômico brasileiro de agora, talvez?
“De fato, o Dinossauro Excelentíssimo provocou uma furiosa polêmica na Assembléia Nacional (Congresso), que se tornou uma polêmica pública quando enceneram uma peça minha, que se chama Corpo de delito na Sala de Espelhos, e que é uma espécie de agressão ao público, pois é uma peça sobre a PIDE, a polícia portuguesa do tempo do salazarismo, uma peça política que, como empreendimento, foi um fracasso, um flop. Depois veio E Agora, José, inspirado no poema de Carlos Drummond de Andrade e que reúne uma série de confissões minhas, apontamentos pessoais. E depois foi premiada unanimemente pela Associação de Escritores Portugueses uma obra minha, a Balada da Praia dos Cães, que recebeu o Grande Prêmio da Novela.”
E essa não foi um flop?
“Não, para um país pequeno como Portugal, teve até uma edição enorme, de 43 mil exemplares, além de representar uma importante remuneração em dinheiro, é do que vivo agora e nos próximos três ou quatro anos… Trata de fatos reais, embora seja uma obra de ficção: trata de um crime político, cometido por dois conspiradores contra um terceiro; os três queriam instaurar em Portugal uma revolução de esquerda, sem os mínimos requisitos para isso. O julgamento desse crime não só envolveu pessoas reais como até o ministro da Justiça, que passou depois a acusador daqueles homens. E é curioso, para o autor de uma obra que mistura a ficção com personagens existentes, reais, vê-la depois discutida na televisão com os autores do crime e o acusador: foi um fato que, em 1960, abalou muito a opinião pública portuguesa. Não que eu queira ter feito em algum momento uma espécie de roman-vérité ou imitar Truman Capote com A Sangue Frio ou Norman Mailer com O Canto do Carrasco. Era uma obra de ficção, baseada em alguns fatos reais, porque tanto os homicidas quanto a vítima fugiram da prisão de Beja e no interior de uma casa projetaram uma revolução impossível, com massas operárias e camponesas que não existiam. Como disse mais tarde um dos integrantes da conspiração, ou seja, um dos homicidas, eles sentiam um medo paralisante, e os responsáveis pelo fracasso éramos todos nós, o criminoso éramos todos nós - o que chocou muita gente-, era a covardia coletiva que reina debaixo de um fascismo…”
Nesse livro que é um pouco um auto-retrato, E Agora, José?, que traços característicos seus, que idiossincrasias suas aparecem que nos pudessem ser transmitidas? Por exemplo, o que o moveu a começar a escrever?
“Olha, eu era aluno de matemáticas superiores, aluno finalista, quando deixei tudo para ser praticante piloto na Marinha Mercante… É, eu tinha e ainda tenho certo complexo com relação à formação científica, e concluí que nas ciências eu não me elevaria muito: a ciência era para mim um sonho… Já a navegação, era durante a guerra, me abria a possibilidade de aventuras, estavam precisando de pessoal, me aceitaram, eu nada sabia daquilo e nem hoje sei…”
E a literatura?
“Ora, a literatura foi assim: eu só tinha uma formação de liceu, mas quando detestei a faculdade de letras não me foi difícil perceber: é porque gosto de literatura! (risos). E até hoje estou convencido disso. Exceto nos Estados Unidos, onde o ensino da literatura é mais vivo, exato, onde muitos dos professores são escritores, ali sim, com os workshops se tem uma noção melhor da literatura. De resto, para um escritor de ficção, continuo convencido de que é nas faculdades de letras que mais se sufoca o gosto pela literatura… Como já lhe disse, eu vivo de literatura, com os direitos de autor, se daqui a três anos eu publicar alguma coisa, viverei mais um ano, mas sem prazos nem planos fixos, percebe?”
É interessante também a relação que você estabelece entre a literatura e o jornalismo, quase sem distinguir um do outro, se entendi bem?
“Pois: os ingleses têm uma expressão que é writer, essa para mim é a tradução de ambos: de jornalista e de novelista. Acho que se um jornalista é mau escritor é mau jornalista. Há maus escritores como há excelentes jornalistas e vice-versa. Estou a falar da estrutura do jornal português, porque não conheço bem a estrutura dos jornais brasileiros…”
Você tem uma longa experiência jornalística, não é?
“Sim, fui diretor do Diário de Lisboa e entre outras coisas criei uma revista, chamada Almanaque, que teve muita fama e que é considerada um alto marco no jornalismo português, sim, de vanguarda. Eu penso que as funções modernas de jornalismo e literatura se confundem em muitos pontos e exemplifico com Graciliano Ramos, que escreve um relatório de funcionário público e nos romances e no relatório é um bom escritor. Sucede é que em países mais convencionais é que se distingue a prosa de um escritor de ficção da de um jornalista: é o critério da comunicabilidade exigida ao jornalista, tem que ser mais rápida e mais imediata.”
E acham também que um escritor deve ter mais erudição do que o jornalista…
“Exatamente, mas vamos chegar até aí: como é falso isso, porque as áreas estão a confundir-se todas, as áreas de comunicação estão fundidas, confundidas e eu digo felizmente porque a palavra new journalism não se refere a nenhuma mentira: existe, realmente. A crítica literária hoje, n’alguns países, é melhor, é uma crítica literária com uma toada diferente, totalmente antierudita! Dizem-se as coisas mais profundas e mais eruditas sem citações, quando apenas se tem talento, sem todo aquele aparato brutal do ensino universitário ou do neoacademismo. Pega-se a crítica de um livro feita no L’Express, por exemplo: tem o tom jornalístico, no entanto foi feita por um crítico literário e é sucinta e erudita e profunda, assinada embaixo…”
Como as críticas assinadas pelo maravilhoso crítico francês Angelo Rinaldi, no L’Express, não é?
“Exato, exato. Os reviewers americanos dão ao leitor a sensação de saber do que o livro trata, depois de lida a resenha sobre ele, enquanto isso nos países e nas cabeças atrasadas, ao cabo de ler a crítica literária você nem sabe se o crítico gostou do livro, se o livro é bom, se vale a pena ler… Esse tipo de crítica erudita é o grande inimigo da literatura. Quem, para citar um nome caro aos universitários, tem prazer de ler Roland Barthes, o gosto e gozo da leitura, para esses uma crítica hermética é um prazer onanista.”
Mas talvez você saiba que, aqui no Brasil, pelo menos alguns círculos soi-disant eruditos acham que ao emitir uma opinião sobre um livro você, como crítico, está fazendo uma crítica impressionista, de impressões apenas, do tipo gostei, não gostei…
“Falando muito sério: qual é a preocupação, neste momento, de uma grande parte da crítica? É a de cientifizar para descobrir no livro lido uma metodologia própria que torne a análise”científica”, mas aí é que está a contradição: ninguém descobre, senão por palpite, nada a priori. Portanto, a ciência, que foi sempre mais imaginativa e mais honesta do que a investigação literária, nunca começa por afirmar a priori nada. Tudo é uma hipótese que pode ou não ser comprovada ao final da análise… O que não implica abrir mão dos computadores para, por exemplo, provar a lógica da matemática. Mas não é por aí que vamos colocar Aristóteles e os computadores como intérpretes únicos ou supremos da literatura, longe disso! Esse tipo de “crítica literária” é uma auto-afirmação à custa de outrem: aí os “críticos” assumem uma posição de “elite”, por terem eles mesmos uma fundamental falta de comunicação: “Ah, quem não me entende, pior para eles, eu falo para mim!”
O que muitas vezes leva à desumanização da comunicação mais humana que existe, que é feita pelas artes, pela literatura?
“Ah, sim, pois aí tais”sábios” criam um clima de verdadeiro terror, de chantagem, ignorando que eles, os pseudocientíficos, é que são o produto de um exibicionismo, de uma frustração. Aliados a seus recursos paracientíficos se tornam, eles, sim, extremamente impressionistas…”
Você há pouco falou do excesso de novelas brasileiras transmitidas pela televisão em Portugal: o writer tem de desenvolver uma nova imagem com o advento dos meios eletrônicos?
“O fenômeno dos audiovisuais - tanto o disco como o cassete e a tv - corresponde a uma fase aguda de alienação planejada pelos donos deste vasto supermercado em que vivemos. Em Portugal, um tempo imenso da televisão é gasto com a transmissão de insuportáveis programas de rock que, acredito, são dados de graça aos canais emissores pelas companhias discográficas justamente para massificar, com o pior, o público e impedi-lo de ter acesso a essa maturação mais duradoura, mais inquietante, mais profunda, que é o livro. Mas em países como os Estados Unidos e a Alemanha Ocidental, por exemplo, nós verificamos que a televisão é uma fase e que atualmente as pessoas veem televisão, sim, mas o livro volta a ter o seu lugar, haja vista as tiragens de milhões de exemplares de livros editados por ano nesses dois países. Há forças interessadas numa narcotização pelos meios eletrônicos das massas, mas muitos já veem essa intenção, despertam dela e se afastam cada vez mais dela.”
Com o aparecimento da literatura hispano-americana e brasileira, para só mencionarmos estas, a crença européia de ser a única criadora de culturas não se revelou mais arbitrária do que nunca?
“A Europa, de fato, é dependente, mas a cultura passa por muitas mutações: há três ou quatro gerações, o chamado homem culto cria que a cultura provinha do Extremo Oriente; numa geração posterior, ele achava que a França era o centro mundial, o árbitro de cultura. Claro, com o advento dessas literaturas que surgem fora da Europa, nós nos interrogamos se esta questão de deter o facho da cultura não é ociosa, pois os norte-americanos só falam de crise de identidade, os argentinos, pelo que eu li, pois nunca estive na Argentina, ao contrário, são ultra-europeus, acho que não há um povo que se sinta mais inglês do que os argentinos ou mais franceses do que os franceses.”
E no fundo são descendentes de italianos. Quando li recentemente uma longa reportagem sobre o Japão, numa revista estrangeira, porque ao Brasil não chega nada desse tipo, na nossa imprensa, nos nossos meios de counicação, digo, uma afirmação que me deixou meio apavorado é a de que os grandes produtores da indústria eletrônica e de alta tecnologia do Japão partiam do princípio de que era preciso, inevitavelmente, uniformizar todas as culturas locais de cada país para que o cassete, por exemplo, pudesse atingir todas as regiões do mundo…
“Você ficou só meio apavorado: isso é de apavorar muito! Mas é o tenebroso capitalismo, não há nada mais apátrida do que o capitalismo. Sei que o capitalismo é responsável por muitos avanços técnicos e culturais e muito progresso, mas esse nunca foi o sonho dele; o sonho dele foi subjugar o mundo, o que pretendem é o tal do imenso supermercado mundial em que já vivemos metidos!”
Mas, para sermos equânimes, será que as propostas de Lenin e Andropov são diferentes?
“É claro que tanto no campo capitalista quanto no socialista temos que admitir que há tendências em ambos para criar novas formas de relações subjugando e uniformizando as sociedades e as culturas. É um fato. Eu, como marxista, reconheço que os horrores e desumanidades da era industrial não se comparam aos do feudalismo: quem trocaria um pelo outro? Ninguém! Da mesma forma que o pior tipo de paternalismo é o que se manifesta através das ditaduras fascistas. Na nossa época também o homem tem todo o direito de ter medo de se massificar. Pois tudo não se processa apenas”por mudanças”, como dizia Camões: as mudanças têm também o seu lado altamente negativo. O homem no seu percurso entre a utopia e a morte sente uma salutar inquietação, pois só esta poderá corrigir a selvageria.”
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Cardoso Pires, para quando o Brasil descobrir Portugal},
booktitle = {Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns
escritores portugueses},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {6},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-6/15-jose-cardoso-pires/02-cardoso-pires-para-quando-o-brasil-descobrir-portugal.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1983-10-01. Aguardando revisão.}
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