O Galileo de Brecht

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Diário de Notícias, 1960/04/03. Aguardando revisão.

Não havíamos programado para este mês o prosseguimento da série que iniciamos sob o título “Documentos”, destinada a divulgar textos de autores marcantes e iniciada, justamente, com trechos da Ópera de Três Vinténs, de Brecht. Devido, porém, a vários pedidos provindos do interior, solicitando mais dados sobre esse dramaturgo, transcreveremos alguns dos momentos culminantes de o Galileo, desse autor, cuja obra assinala um dos momentos mais altos do teatro de nossa época. Agradecendo aos leitores por suas palavras de estímulo, satisfazemos, assim, o pedido que nos formularam expressamente.

Escrita em sua forma definitiva em 1955, isto é: um ano antes da morte de Brecht, o Galileo é sobretudo um libelo contra a intolerância e o fanatismo, partam eles da Inquisição ou de qualquer outra superestrutura. O Galileo é derrotado, na obra de Brecht, meramente como ser humano que teme a tortura e a morte, mas a vitória da Verdade por ele descoberta é apenas por essa confissão forçada. No desenrolar da peça, podemos observar insinuações simbólicas dirigidas a uma época em que uma nova forma de intolerância, a intolerância política, se ergue contra a liberdade de pensamento e de expressão artística. É como se o próprio Brecht codificasse, por meio da figura monumental do Galileu, a sua tragédia pessoal, de artista colocado perante tribunais políticos, nos Estados Unidos (o Comitê de Atividades Antiamericanas, do senador Mc Carthy) e na União Soviética (o Conselho dos Ministros Soviéticos).

É já célebre, nos meios teatrais europeus, o monólogo inicial do cientista, cujas teorias abalarão todo o seu século: “Durante dois mil anos, a humanidade acreditou que o Sol e todos os astros do céu giravam em torno dela. O Papa, os cardeais, os príncipes, os sábios, oc capitães, os mercadores, os vendedores de peixe e os escolares pensavam permanecer imóveis nessa esfera de cristal. Mas hoje, sairemos dela: os velhos tempos passaram e eis que se abre uma nova era! Há mais de um século parece que a humanidade aguardava qualquer coisa... As cidades e as cabeças tornaram-se estreitas... A superstição e a peste grassam, mas tudo na vida é mutável... Tudo está em movimento: sobre o Velho Continente se eleva um surdo rumor: há outros Continentes na face da terra! E desde que os nossos barcos chegam até eles, uma gargalhada ressoa sobre todos os Continentes: o oceano imenso e cruel, que tanto temíamos antes, não passa de um poço modesto. E por toda a parte se ergue um desejo de penetrar as causas de todas as coisas: por que a pedra cai, quando a soltamos? Por que ela sobre quando a atiramos no ar? Cada dia descobre-se algo novo... É verdade, foram descobertas muitas coisas, mas o que resta por descobrir ainda é bastante mais. E assim, resta muito a fazer para nós, para a nossa geração. Muito breve, a humanidade conhecerá o local do seu nascimento, este corpo celeste sobre o qual ela vive. O que lemos nos velhos livros já não nos basta. Onde, há milênios, se instalou a crença, ali mesmo se instala a dúvida. O mundo inteiro repete: sim, está escrito nos livros, mas queremos ver com nossos olhos. Seguiu-se, portanto, uma corrente de ar que, se assim posso dizer, ergueu as roupas bordadas a ouro dos principes e dos prelados: pudemos ver suas pernas, grossas ou finas, mas em todo caso pernas idênticas às nossas. Eu predigo que, antes de morrermos, ouviremos falar de astronomia nos mercados públicos, os filhos das vendedoras de peixes correrão às escolas. Pretendia-se que os astros estivessem fixos sobre uma esfera de cristal para não cair. Hoje, tivemos a coragem de fazê-los mover-se em liberdade, sem descanso eles viajam, viajam como os nossos navios. E a terra gira alegremente em torno do Sol e as vendedoras de peixe, os mercadores, os príncipes e os cardeais, sim: até o Papa gira com ela. Da noite para o dia, o Universo perdeu o seu centro e de manhã descobrimos centros infinitos: hoje em dia, cada ser vivo poderá ser considerado o centro da terra e ninguém é, na realidade. Porque, de repente, há espaço para todos no mundo.

Advertido por seus amigos das consequências perigosas de suas descobertas, ele reafirma sua fé na razão humana e premido pela sua condição financeira extremamente precária, decide abandonar Veneza pela Corte dos Medici, em Florença. É de grande expressividade o seu diálogo com Sagredo, seu amigo e ele próprio pesquisador científico:

Sagredo - Perdeste a razão? Se o que vês é verdade: em que dificuldades te meterás? Vais proclamar aos quatro ventos que encontraste um sol com outras terras que lhe giram em torno?

Galileu - Sim, e que o universo gigantesco, com todas as suas constelações, não gira em redor da nossa diminuta terra, como todos imaginávamos.

Sagredo - E que, portanto, tudo isso não passa de astros Esse firmamento infinito? Então onde está Deus?

Galileu (com ira) - Sou teólogo? Sou matemático!

Sagredo - Mas és, antes de tudo, um ser humano eu te pergunto: Onde está Deus, no teu sistema de mundos?

Galileu - Em nós ou em parte alguma!

Sagredo (gritando) - Como dizia o supliciado? (Giordano Bruno)

Galileu - Como dizia e supliciado.

Sagredo - Por esse motivo ele foi queimado há menos de dez anos.

Galileu - Porque ele se limitou a afirmar: não podia provar o que dizia. A sedução que emana da prova é demasiado forte: todos sucumbem a ela, com o tempo. O pensamento, a faculdade de pensar, constitui um dos mais altos prazeres da espécie humana.

Sagredo - Oh. Galileu! Eu te vejo tomar um caminhe terrível! É uma noite funesta para o homem aquela em que ele descobre a verdade... É uma hora de cegueira aquela em que ele crê na razão... Como os poderosos permitiriam que ficasse em liberdade aquele que conhece a verdade? Mesmo que fosse a verdade sobre os astros mais longínquos!... Crês realmente que o Papa escutará a tua verdade, se lhe disseres que ele se engana? Crês que ele vai assinalar simplesmente na sua agenda: 10 de janeiro de 1610. O céu está abolido! Tu não crês em Aristóteles e queres crer no Grão Duque de Florença! Quando, há pouco, eu te vi observando pelo telescópio esses planetas novos, parecia-me ver-te sobre os feixes de lenha de uma fogueira... E quando me disseste que acreditavam em provas, eu senti o cheiro de carne humana a arder... Não partas para Florença, Galileu!“.

É também importante, para compreendermos соnсерção de Brecht da personalidade de Galileu, o diálogo deste com um sábio que nutre simpatia pessoal por ele, o padre Belarmin, que refuta a crença inabalável do cientista no triunfo da razão humana: “A razão, meu amigo, não nos leva muito longe. Que vemos em torno de nós, senão falsidade e crimes? Onde está a verdade? Pensai um instante, quanto custou em esforços e reflexões aos Pais da Igreja e a tantos de seus sucessores descobriu uma aparência de explicação para um mundo que, concordareis comigo, é toleravelmente horrível! Que esforços para dar um sentido às coisas que não conseguimos compreender! E a vida está chela delas... Por isso descarregamos essa responsabilidade sobre um Ser supremo! E, justificando a bula papal que forçou o sábio a renunciar publicamente suas teorias: Sou filho de camponeses do Sul da Itália, pessoas simples... Apesar do seu sofrimento constante, foi-lhes assegurado que o olhar da divindade pousa sobre eles. Creem ainda que o cenário do mundo foi criado em torno deles para que eles desempenhassem o papel, grande ou pequeno, que lhes foi confiado. Que diriam se soubessem que a sua bondade, a sua paciência, a sua inquiescência à miséria eram inúteis? Que o seu sofrimento não tem mérito algum? Eu vejo seus olhares encheremse de temor, e eles sentirem-se traídos e enganados. Não: a Igreja revelou uma nobre e maternal piedade, uma bondade de espirito imensa, mantendo-os ignorantes dessas verdades”. Galileu replica: “Tendes razão! Não se trata, na verdade, de planetas, trata-se de camponeses. A Igreja quer que a Terra seja o centro do universo para que a Cátedra de São Pedro possa estar no centro da terra. Sabeis como a ostra produz pérolas? No decurso de uma doença quase mortal, por conter um corpo estranho no seu interior: um grão de areia, por exemplo... Muitas vezes, por causa da pérola, ela vem a morrer. Ao diabo com a pérola! Prefiro a ostra sã! As virtudes não são parte inseparável da miséria, meu caro! Se vossos pais fossem ricos e felizes, poderiam cultivar as virtudes decorrentes da riqueza e da felicidade! Atualmente, as virtudes emanam daqueles que se esgotam, curvados sobre campos também esgotados e eu, essas virtudes, as recuso!”.

Apesar de viver prisioneiro da Inquisição, virtualmente vigiado até a morte, Galileu consegue entregar a um amigo, que o vem visitar pela última vez, de passagem para a Ноlanda, um exemplar dos seus Discorsi, de incalculável valor científico. Justificando o seu terror humanamente compreensível à tortura e à morte, Galileu declara, no seu derradeiro monólogo, de extraordinária atualidade, na parte referente às suas predições cientificas:

“Nas minhas horas livres, examinei o meu caso em todos os seus aspectos... O cultivo da Ciência me parece exigir uma coragem excepcional. A Ciência comercia com o conhecimento adquirido através da dúvida. Criando a sabedoria sobretudo e para todos, ela tende a tornar todos céticos. Ora, a maioría da população é mantida por seus príncipes, por seus proprietários, pelo clero, numa neblina fúlgida de superstições e de tradições escritas, que ocultam as maquinações dessa gente. A miséria das massas é tão velha quanto as montanhas e do alto dos púlpitos, se proclama que ela é tão indestrutível quanto as montanhas. Nossa nova era da dúvida encanta o grande público: ele arrancou-me das mãos o telescópio, para o apontar contra os que os torturavam. Esses homens egoístas e violentos, que sofregamente tiravam partido dos frutos da ciência, sentiram então o olhar frio dessa mesma ciência, pousado sobre uma miséria de milênios, embora artificial que poderia ser facilmente suprimida: Atacavam-nos, a nós cientistas, com suas ameaças e suas corrupções, atacavam de maneira irresistível as nossas almas débeis..., Mas podemos recusar-nos à massa e continuar a ser homens de ciência? Os movimentos dos astros tornaram-se mais claros, os movimentos dos senhores continuam incalculáveis para a massa dos seus súditos. A batalha pela medida do firmamento foi ganha pela dúvida. A batalha pelo pão da mãe de família romana será sempre perdida pela fé? A ciência tem de ocupar-se de duas batalhas. Uma humanidade tropega, a arrastar-se pela névoa de milênios, incapaz de utilizar plenamente as próprias forças, não poderá tirar partido das forcas da natureza que os cientistas descobrem. Por que trabalham os cientistas? Creio que o único propósito da ciência é este: aliviar a fadiga da existência humana. Se os homens de ciência contentam-se com acumular conhecimentos e gozar do prazer de saber por si, então a ciência não passará de uma pobre coisa enferma. Vossas máquinas só servirão para novos tormentos. Com o tempo, podereis descobrir tudo ainda há por descobrir, no entanto, vosso progresso vos afastaria cada vez mais da humanidade. O abismo entre elas e vós pode tornar-se tão grande que a cada vossa nova conquista corresponda um grito de horror universal!...”

Naturalmente, é evidente, em toda a obra, o seu conteúdo político, sendo claro também o seu simbolismo pouco velado, que empresta ao comunismo o aspecto ideal de uma força “renovadora”, o de um “sol” que venha iluminar de esperança o destino da humanidade, como indica a alegoria do primeiro monólogo. Mas, como já ressaltamos várias vezes nesta seção, o extraordinário valor artístico dessa obra, engagée por excelência, transcende de muito a mensagem marxista do teatro de Brecht, justificando o nosso interesse pela dramaturgia que recebe, em todo o Ocidente, de resto, uma acolhida unanimemente entusiasta.

Reuso

Citação

BibTeX
@incollection{gilson ribeiro2023,
  author = {Gilson Ribeiro, Leo},
  editor = {Rey Puente, Fernando},
  title = {O Galileo de Brecht},
  booktitle = {Aspectos do Teatro Contemporâneo},
  series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
  volume = {11},
  date = {2024},
  url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-11/02-o-teatro-doutrinario-marxista-na-alemanha-precursores-e-sucessores/06-o-galileo-de-brecht.html},
  doi = {10.5281/zenodo.8368806},
  langid = {pt-BR},
  abstract = {Diário de Notícias, 1960/04/03. Aguardando revisão.}
}
Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “O Galileo de Brecht .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.