Tradução de LGR do artigo de Cesare Pavese Ler

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Sem data. Aguardando revisão.

É verdade que se deve reclamar incansavelmente dos escritores claridade, simplicidade, deferência para com as massas que não escrevem, mas de vez em quando assalta-nos a dúvida e que nem todos saibam ler. Ler é muito fácil, dizem aqueles que devido a seu longo contato com livros perderam todo respeito pela palavra escrita: mas quem, ao contrário, trata mais do que com livros com seres humanos e as coisas e tem que sair de madrugada e voltar de noite embotado, se por casualidade se concentra sobre uma página, compreende que tem diante dos olhos algo áspero e estranho, evanescente e ao mesmo tempo forte, que o agride e o desencoraja. É inútil dizer que este último está mais próximo da verdadeira leitura do que o outro leitor.

Acontece com os livros o mesmo que com as pessoas. É preciso tomá-los a sério. Mas, precisamente por isso, devemos abster-nos de fazer deles ídolos, isto é: instrumentos de nossa indolência. Nisto, o homem que não vive entre livros e que para abri-los deve fazer um esforço, tem um capital de humildade, de força desconhecida – a única válida – que lhe permite aproximar-se das palavras com o respeito e a ansiedade com que nos aproximamos de uma pessoa predileta. E isto vale muito mais que a “cultura”, ao contrário, é a verdadeira cultura. Necessidade de compreender os demais, caridade para com os outros, que é, afinal, o único modo de compreender-se e de amar a si mesmo: aqui se inicia a cultura. Os livros não são homens, são meios de chegar a eles: quem os ama e não ama os homens é um fátuo ou um condenado.

Há um obstáculo à leitura – e é sempre o mesmo, em qualquer campo da vida – a segurança excessiva em si mesmo, a falta de humildade, o desamor ao próximo, ao que for diferente. Sempre nos fere o inaudito descobrimento de que alguém viu, não muito mais longe do que nós, mas de maneira diferente da nossa. Somos feitos de tristes costumes. Gostamos de assombrar-nos, como as crianças, mas não em demasia. Quando o estupor nos obriga a sair realmente de dentro de nós mesmos, a perder o equilíbrio para encontrar outro ser humano, talvez mais audaz, então franzimos o cenho, batemos os pés, verdadeiramente nos transformamos em crianças. Mas delas nos falta a virgindade que é a inocência. Temos ideias, temos gostos, já lemos livros, possuímos alguma coisa e, como todos os proprietários, tememos pelas nossas posses.

Todos já lemos anteriormente. E sucede a miúde que, assim como os pequenos burgueses se atêm a um falso decoro e a preconceitos de classe muito mais do que os intrépidos aventureiros da alta sociedade, da mesma maneira o ignorante que leu alguma coisa se agarra cegamente ao gosto, à banalidade, ao preconceito que absorveu e desde esse dia, se por acaso volta a ler algo em sua vida, tudo julga e tudo condena segundo esse critério. É tão fácil aceitar a perspectiva mais banal e manter-se nela, certos do consenso da maioria. É tão cômodo supor que todo esforço terminou e conhecemos para todo o sempre a beleza, a verdade, a justiça. É cômodo e vil. É como crer que absolvemos nosso eterno e temido dever de caridade para com o próximo dando um vintém ao mendigo, de vez em quando. Nada faremos, nem mesmo isto, sem o respeito e a humildade: a humildade que vai abrindo brechas de luz no interior de nosso orgulho e de nossa inércia, o respeito que nos persuade da dignidade alheia, daquilo que for diferente de nós, do nosso semelhante, como tal.

Fala-se de livros, quanto mais pura e lhana for sua voz, mas dor e tensão terão custado a quem os escreveu. É inútil, portanto, esperar sondá-los sem pagar nada em troca. Ler não é fácil. E sucede que quem estudou, quem se move agilmente no mundo do conhecimento e do gosto, quem não possui meio nem dispõe de tempo para ler, frequentemente não tem alma, está morto para o amor ao próximo, embotado e enrijecido no egoísmo da noção de casta. Por outro lado, quem anela, como anela a própria vida, esse mundo da fantasia e das ideias, quase sempre está privado ainda os primeiros elementos: falta-lhe o alfabeto de qualquer linguagem, não lhe sobra tempo nem forças, ou pior ainda: está extraviado por uma preparação falsa, quase uma propaganda, que lhes oculta e deforma os valores. Qualquer pessoa que enfrente um tratado de física, um texto de contabilidade, a gramática de uma língua, sabe que existe uma preparação específica, um mínimo de noções indispensáveis para tirar proveito da nova leitura. Quantos, porém, têm consciência de que se requer uma bagagem técnica análoga para aproximar-se de uma novela, de um poema, de um ensaio, de uma meditação? E, além disso, que essas noções técnicas são imensuravelmente mais complexas, mais sutis e fugidias que as outras e não se encontram em nenhum manual e em nenhuma Bíblia? Pensa-se comumente que um relato, um poema, pelo fato de dirigirem-se não ao físico, ao contador ou ao especialista, mas ao homem que existe em todos eles, têm, naturalmente, que ser acessíveis à comum atenção humana. E este é o erro. Uma coisa é o homem, outra os homens. Mas, por outro lado, é uma lenda tola a de que os poetas, narradores e filósofos se dirigem ao ser humano em absoluto, ao homem abstrato, ao Homem. Falam ao indivíduo de uma determinada época e situação, ao indivíduo que sente determinados problemas e tenta resolvê-los à sua maneira, inclusive e sobretudo quando lê novelas. Será então necessário, para compreender as novelas, situar-se na época e propor-se os seus problemas, o que quer dizer, antes de mais nada, nesse terreno, aprender as linguagens, a necessidade das linguagens. Convencer-se de que se um escritor escolhe certas palavras, certos tons e giros insólitos, tem pelo menos direito de não ser imediatamente condenado, em nome de uma precedente leitura na qual os giros de linguagem e as palavras estavam mais ordenados, mais fáceis ou eram somente diferentes. Esta tarefa da linguagem é a mais vistosa, mas não a mais ardente. Certamente tudo é uma linguagem para um escritor autêntico, mas basta justamente tê-lo compreendido para encontrarmo-nos num mundo dos mais vivos e complexos, no qual a questão de uma palavra, de uma inflexão, de uma cadência torna-se em seguida um problema de costume, de moralidade. Ou, logo, de política.

Baste isto, então. A arte, como se diz, é uma coisa séria. É pelo menos tão séria como a moral e a política. Mas se temos o dever de apoiarmo-nos nestas com aquela modéstia que constitui uma busca de caridade – caridade com os outros e rigor para conosco –, não se compreende com que direito, diante de uma página escrita, esquecemos de que somos seres humanos e de que um ser humano nos fala.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Tradução de LGR do artigo de Cesare Pavese Ler .” In Perscrutando a alma humana: A literatura italiana do pós-guerra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 8. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.