André Malraux. Só se descobre uma vez a morte, mas descobre-se várias vezes a vida

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1976/11/24. Aguardando revisão.

“Uma das metamorfoses mais profundas que possa criar o ser humano é a de transformar o seu destino imposto em um destino escolhido.”

Esta é uma das primeiras frases das magistrais Antimemórias de André Malraux, talvez seu melhor livro.

Irmão filosófico de Sartre e de Camus na França, Malraux nasceu, como eles, da Anunciação feita à Humanidade pelo Arcanjo (ou Lúcifer) de Nietzsche que proclama, em Assim Falava Zaratustra: “Deus morreu!”

Os três partiam da mesma conclusão filosófica: diante do absurdo da morte e da ausência de Deus, que justificativa poderia ter a efêmera vida humana? Cada um trouxe a sua resposta diferente a essa mesma verificação. Todo os três dedicaram-se à literatura, com sucessos e resultados desiguais. Sartre, o único ainda vivo, será mais lembrado, na literatura, como dramaturgo e como o mágico e profundo crítico literário da obra de Jean Genet. Camus, que segundo as versões mais recentes e fidedignas teria se suicidado, jogando seu carro em alta velocidade contra uma árvore, deixou um teatro sumamente inferior a seus romances e estes inferiores às suas admiráveis reflexões filosóficas de L’Homme Révolté. E Malraux?

André Malraux foi o único que deu a menor importância, na sua criação múltipla, à literatura. Como dizia com ironia, não queria concorrer com o registro civil dando atestado de nascimento a personagens. Para ele, a literatura era mais um reflexo: da História, do drama do ser humano coinvolto no tufão das guerras, da tortura, do “quarto poder” – não a imprensa como pensaria um ingênuo democrata, mas a polícia secreta dos países totalitários, da Espanha franquista à Rússia de Stalin. Por isso, Malraux se assemelha muito a um dos seus ídolos, se se puder usar este termo para um iconoclasta nato: T. E. Lawrence, o militar inglês que uniu sua ação à libertação e união dos países árabes.

Ação. Esta é a palavra-chave de toda a personalidade de Malraux. Ação é a exalação, a ação reflexão – filosófica, política, cultural, histórica – é a inalação do momento vivido. Aviador ao lado das forças republicanas na guerra civil da Espanha, combatente na China dividida entre as facções de Mao Tsé-tung e Chiang Cai Shek, líder do Movimento de Resistência ao invasor alemão nazista que ocupara a França em 1940, vira esboroar-se o sonho de vencer as tropas franquistas e, visceralmente antifascista, vira esboroar-se às vésperas da vitória da Democracia na mesma Espanha pela qual lutou e arriscou a vida sem temor.

A morte para ele nada tinha de apavorante. Fazia parte do “absurdo” da existência, mas a esse disparate lógico podia ser dado um sentido, a marca humana: a dignidade do ser humano, mesmo humilhado pela tortura física e moral numa infecta prisão da Espanha, da China, da Rússia, da França ocupada. Por isso, depois da derrota da liberdade com a subida de Franco ao poder, seu romance se intitula profeticamente A Esperança (L’Espoir) e se encerra com palavras de admirável confiança no futuro:

“Antigamente, Manuel se conhecera ao refletir sobre si mesmo, hoje, depois que o acaso o arrancara da ação para jogar-lhe o passado na cara. E como ele e como cada um de seus homens, a Espanha exangue tomava consciência enfim dela própria – a possibilidade infinita de seus próprios destinos; e sentia dentro de si aquela presença misturada ao ruído dos riachos e aos passos dos prisioneiros, permanente e profunda como a batida do seu próprio coração”.

Aqueles movimentos musicais que se sucediam, ecoando em seu passado, falavam como teria falado, se pudesse, aquela aldeia que nos tempos antigos tinha detido o avanço dos mouros e aquele céu e aqueles campos eternos. Manuel ouvia pela primeira vez a voz daquilo que é mais grave que o sangue dos seres humanos, mais inquietante que sua presença na terra – a possibilidade infinita de seus próprios destinos; e sentia dentro de si aquela presença misturada ao ruído dos riachos e aos passos dos prisioneiros, permanente e profunda como a batida do seu próprio coração”.

Já que a Razão em que acreditara o século do Iluminismo e já que a Fé da Idade Medieval estavam mortas, só restava ao ser humano dar um sentido à sua meteórica passagem pela Terra e pelo Tempo. Esse sentido era o da Dignidade e Grandeza intrínsecas do ser humano, em todas as latitudes do mundo. Esse sentido era a Fraternidade de todos os homens, de todas as raças e níveis culturais. E era a Liberdade como fator indispensável para a criação da Arte e conservação do legado planetário do ser humano: a literatura, as artes plásticas, o cinema, a música.

A palavra metamorfose lhe serve tanto para reconhecer nas grandes obras da escultura, da cerâmica, da pintura do Oriente e do Ocidente, as pegadas dos deuses metamorfoseados pela mão do homem, como para purgar o pecado: Dostoiévski, confessando os crimes de seus personagens, transforma o que, se fosse verdade, seria uma tragédia, em um ato heroico de autoinspeção metafísica: o herói da ficção. Porque mesmo sem postular qualquer crença em Deus, Malraux insiste em toda a sua obra de esteta, de teórico soberbo da Arte em Les Voix du Silence, de pensador, de romancista, neste elemento-chave: a metafísica da transformação, já que a ação incide sobre o físico e o ultrapassa, não importa se o gesto humano é mortal.

É como que uma inconsciente autobiografia que Malraux traça ao meditar, vinte anos após a publicação de seu livro de juventude, Les Conquérants, em um posfácio magnífico: “Mas este livro só pertence de forma bem superficial à História. Se ele não submergiu não será por ter descrito alguns episódios da revolução chinesa, mas por ter revelado um tipo de herói que une à aptidão para a ação a cultura e a lucidez”. E o fio condutor de toda a sua versátil atividade como militante antifascista, como Ministro da Cultura do homem que simbolizou a dignidade de uma França esmagada sob as tropas de Hitler e de uma França que se entregara ao invasor com mais de um milhão de homens em armas: o general De Gaulle.

Sua cultura, comparável quase à de Jung e de Toynbee, abrangia dezenas de civilizações do Oriente e do Ocidente sucessivas no decurso da História. Lúcido, ele foi talvez o primeiro pensador e escritor europeu ou francês a captar e decodificar a mensagem aterradora de Spengler, segundo a qual as civilizações e os países, como os homens, são mortais. E se a Grécia e o Império Britânico agonizaram e hoje jazem apenas na memória e como vinco histórico, ele foi dos primeiros a enunciar que a Europa, ela também, agonizava, inexoravelmente. Tinham perecido seus dois mitos mais reverenciados: a Europa é o centro de decisões mundiais e o mito da Liberdade, Fraternidade e Igualdade, prometidas pela Revolução Francesa que se desfizera no pesadelo do Nazismo e do Stalinismo, da cultura do consumo imposto pela publicidade comercial norte-americana e pela propaganda psicológica soviética que visavam, ambas, escravizar o homem, embora de formas diferentes. A propaganda em prol de um sabonete queria escravizar o consumidor a uma marca e a suas fictícias qualidades, escamoteando-se a ética em prol do lucro. A propaganda política de Moscou visava escravizar o mundo inteiro, o ser humano em sua totalidade deveria aderir ou ir para o campo de concentração.

“O que aprendemos foi que com o mesmo gesto imperioso de desprezo com o qual a Rússia afasta o canto da”Internacional”, que permanecerá, ela queira ou não, ligado ao sonho eterno da justiça para os homens, a Rússia varre também os sonhos do século XIX. Mas, ao mesmo tempo que morria essa imensa esperança, ao mesmo tempo que cada homem recaía no território de sua própria pátria, uma profusão de obras irrompia civilização adentro: a música e as artes plásticas tinham acabado de inventar a sua imprensa, as traduções entravam de portas abertas em cada país... E o cinema, finalmente, nasceu. E então, naquele momento, uma mulher hindu que vê o filme de Ana Karenina chora talvez ao ver expressa, por uma atriz sueca e um diretor norte-americano, a ideia que o russo Tolstoi fazia do amor. Se, dos vivos, não conseguimos unir os sonhos, pelo menos conseguimos unir melhor os mortos”.

Era o que ele chamava de “herança da terra inteira” e que, pedantemente, Marshall MacLuhan chama de “a aldeia global”, ou seja: a noção de interdependência de todas as nações, todas as culturas, todos os povos com o advento da imprensa, da tradução, do rádio, da televisão, das viagens, do cinema, dos museus que justapõem a arte Ming da China e a arte azteca pré-colombiana, Watteau ao lado de Miguel Ângelo, Fídias ao lado de uma máscara negra do Benin, um pintor da escola fauve de uma escultura de um escriba egípcio de 4.000 anos atrás.

Cada era se dirigia a uma parte do ser humano: a Idade Média, com suas catedrais góticas e românicas, com seus vitrais e seus monstros, as gárgulas da Catedral de Notre-Dame de Paris, e com o Cristo de Chartres, falava à alma humana. O século XVIII, da Enciclopédia, da Revolução Francesa e da Revolução dos Estados Unidos, falava ao espírito humano. Mas de época para época, havia a metamorfose das civilizações: “o verdadeiro herdeiro de Chartres é Rembrandt.” E o herdeiro é que agia sobre o legado, transmudando-o o diálogo entre Cristo e Platão se encontra não entre César e o profeta Elias, mas no filósofo Montaigne.

E aí Malraux dá à América Latina um papel peculiar e grandioso. A América Latina, ele afirma, não ingressou no pugilato idiota, de “minha civilização é melhor do que a tua” em que se engalfinham a Rússia, os Estados Unidos e a Europa. Segundo Malraux, “A América Latina está conciliando, atualmente, sem o mínimo combate, aquilo que ela deseja aceitar do mundo anglo-saxão e o que ela deseja receber do mundo latino. Há conflitos políticos irredutíveis, mas é absolutamente errôneo supor que os conflitos de culturas sejam irredutíveis por definição... Poupemo-nos esse maniqueísmo absurdo, essa separação entre os anjos, amigos do orador, e os demônios, inimigos do orador, uma cisão que se tornou moda sempre que se fala da Rússia e dos Estados Unidos.”

E distinguia nitidamente: Stalin não significa nada ao lado de Dostoiévski, como o “realismo socialista” imposto à pintura, ao desenho, às artes plásticas da Rússia, depois da morte de Maiakóvski, era a arte mais reaccionariamente burguesa e morta possível.

Na União Soviética ele discernia um elemento contrário à civilização europeia: o dogmatismo. O poder é o único que detém a verdade, fora do jornal Pravda (que ironicamente significa ‘verdade’ em russo) não há salvação, só heresia e cárcere.

Por isso ele achava que os comunistas da Rússia condenavam Picasso: “O espírito da Europa é um perigo para uma indústria faraônica. A condenação de Picasso em Moscou não é obra de um acaso: quer erigir-se numa defesa dos Planos Quinquenais. Conforme os artistas vão morrendo pouco a pouco, ou um pouco tarde demais, vão sendo enterrados, com honrarias, no muro do Kremlin ou, sem honrarias, ao pé do muro siberiano do campo de deportados políticos”.

Com certeira lucidez ele faz ruir toda classificação artificial de cultura em um dos escaninhos de “arte burguesa” ou “arte engajada”. Que valores burgueses predominarão na contemplação estática de uma estátua grega ou egípcia? Admirar a sua perfeição estética implica em endossar as sociedades escravocratas das quais elas emergiram? Nem Marx confirmaria uma atitude tão bárbara, ele próprio que admirava Balzac, um romancista monárquico, Tolstoi, um Conde místico, e a escultura grega, provinda de uma sociedade escravocrata ateniense. “O marxismo refazia o mundo tomando como medida a liberdade.”

Outra distinção específica que Malraux estabelece é entre os indivíduos que creem gostar de música e detestam Mozart, preferindo marcas militares; ou a pessoa que diz que adora a pintura e se refere não a Rembrandt ou Goya, mas à folhinha que mostra um cesto cheio de gatinhos novos. Ele distingue entre o gosto sentimental e o gosto especificamente artístico. E, no plano humano como no político, o essencial era não permitir que o totalitarismo se apoderasse da cultura, mas, ao contrário, tornar a cultura acessível a todos os que puderem participar das mais profundas criações artísticas do homem.

Cultura é indissociável de Democracia. Cada artista refaz a arte, pois conquista uma dimensão nova de expressão: “Proclamamos, portanto, a necessidade de manter a liberdade dessa busca individual contra tudo que planeje impor limites a seu rumo desde o início. E lutar antes de mais nada contra os métodos de ação psicológica baseados no apelo ao inconsciente coletivo para atingir fins políticos. Para nós, a garantia da liberdade política e da liberdade espiritual não reside no liberalismo político, condenado à morte a partir do momento em que se defronta contra os stalinistas: a garantia da liberdade é a força do Estado a serviço de todos os cidadãos”.

A liberdade é inalienável da dignidade humana. O prisioneiro japonês Kyo, que se suicida na prisão, no livro, A Condição Humana, depois de refletir longa e amargamente sobre “a lancinante fuga na ternura dos corpos enodados um no outro pela primeira vez”, decide suicidar-se com uma cápsula de cianureto:

“Não, morrer poderia ser um ato exaltante, a suprema expressão de uma vida à qual essa morte tanto se parecia. E era escapar aos dois soldados que se aproximavam dele de forma hesitante. Partiu o veneno entre os dentes como se tivesse dado uma ordem, como se tivesse ouvido ainda Katow interrogá-lo com angústia, sem tocá-lo e, no momento em que ele queria agarrar-se a ele, sufocando, sentiu toda as suas forças o ultrapassarem, esquartejadas além dele mesmo, de encontro a uma convulsão todo-poderosa.”

Malraux – que amava citar a frase que Miguel Ângelo gravara sobre a sua estátua da Noite ‘Não despertes, se for para contemplar tiranos’ – deixou como uma de suas últimas obras artísticas a limpeza dos monumentos envelhecidos de Paris. A pátina da sujeira era para ele uma cegueira que conduzia a um culto da personalidade igualmente cego e inaceitável. Trazer estátuas e monumentos históricos à luz era a forma mais lúcida e democrática de torná-los parte do presente de Paris e de seus visitantes. Era restituir à comunidade humana a parte eterna de sua herança universal, límpida, sem mácula, íntegra.

Reuso

Citação

BibTeX
@incollection{gilson ribeiro2023,
  author = {Gilson Ribeiro, Leo},
  editor = {Rey Puente, Fernando},
  title = {André Malraux. Só se descobre uma vez a morte, mas
    descobre-se várias vezes a vida},
  booktitle = {Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra
    os despotismos e os totalitarismos},
  series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
  volume = {12},
  date = {2024},
  url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-12/03-europa/09-andre-malraux-so-se-descobre-uma-vez-a-morte-mas-descobre-se-varias-vezes-a-vida.html},
  doi = {10.5281/zenodo.8368806},
  langid = {pt-BR},
  abstract = {Jornal da Tarde, 1976/11/24. Aguardando revisão.}
}
Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “André Malraux. Só se descobre uma vez a morte, mas descobre-se várias vezes a vida .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.