Manuel Bandeira
Há cem anos (em 19/4/1886) nascia no Pernambuco o poeta que usou os versos para vencer a doença e a morte iminente. Conseguiu muito mais que isso: com sua grandeza, modernizou nossa poesia.
Escudo simples: a este Grande,
como arabesco de paquife,
convém mais a linha saudosa
do Cais da Aurora, no Recife.
Não para aventuras ao largo
em cinemascópicos brigues,
pois há roteiros mais humanos.
(Ao leme, Totônio Rodrigues.)
Viaja pela Rua Curvelo
Ou ante as luzes do Aeroporto,
viajar imoto, em pensamento,
vivo, por baixo do mar-morto.
Olhar sem lágrimas, severo
carinho oculto, meio seco,
mostra-nos Pasárgada, lume
solitário, a florir no beco.
Foge do mundo, o mundo volta-lhe
em fraterna correspondência,
Quarto solteiro, vida cheia
de amor-fogo, mistério, essência.
E os silêncios que ele fez música,
a poesia redescoberta,
as consolações sem presença,
o sonho na pálpebra, alerta,
e os amigos sem nome (tantos),
em alegria companheira,
tudo se junta, oferecendo-se
numa rosa, a Manuel Bandeira
“No Aniversário do Poeta”, por Carlos Drummond de Andrade
A confissão de Mallarmé: “Trata-se antes de tudo, de fazer música com a sua dor”.
Ajusta-se plenamente à vida de Manuel Bandeira, a correr paralela à sua poesia. Seu ex-libris, por ele imaginado, mostr aum leão sentado, com uma incongruente cabeça de carneiro. Sob o título Ariesphinx alinha o que essa imagem deve exprimir:
“A força da doçura
A força da poesia
A força da música
A força das mulheres e das crianças
A força de Jesus, o cordeiro de Deus.”
Desde seu primeiro livro, Cinza das Horas, desde os primeiros versos essa nota funda de desencanto (título do poema inicial) até o último é o mesmo desalento que percorre sua criação:
“Eu faço versos como quem chora
De desalento… de desencanto…
… Meu verso é sangue…
- Eu faço versos como quem morre.”
Sua constante ligação com os grandes poetas portugueses - Camões, Antônio Nobre - o leva, inicialmente, ao isolamento a que fora confinado como tísico desenganado pela medicina da época sem antibióticos, a identificar-se com as adversidades do supremo expoente lusitano, “Gênio purificado na desgraça”, e a comparar-se, em situação de inferioridade, com Antônio Nobre, que estivera antes dele no mesmo sanatório para tuberculoses em Clavadel, na Suiça, recordando-o na paisagem serrana de Petrópolis:
“Sorriu a Glória às tuas esperanças
…………………………………………………………….
Foste conde aos vinte anos… Eu, nem isso…
Eu não terei a Glória… nem fui bom.”
O irremediável da doença o exila para um quarto, para o ócio forçado “de se poupar”, “não fazer nenhum esforço” repercute, a princípio, numa poesia romanticamente em surdina, cheia de queixumes, de evocações da infância descuidada e constatações de uma vida atual e futura apagada, morna, amortecida a vitalidade ela paralisia parcial imposta pela enfermidade:
“Minha janela desmantelada
Dá para o vale do desalento
… Lá vão os dias da minha infância
- Imagens rotas que se desmancham…
Aquele corvo, o voo torvo,
O meu destino aquele corvo”.
O contato com a poesia de Edgar Allan Poe o leva a reconhecer no corvo agourento o símbolo de um espectro maléfico a zelar por sua vida, enchendo-a de sombra e sofrimento, como se seus sonhos e folguedos de infância e esperança da juventude tivessem sido relegados para o mundo do “Nunca mais!”. Através de suas leituras de poetas ingleses usa também uma das frases mais amargas para dar título a um de seus poemas, a de Keats, que antes de morrer tão cedo achara que sua poesia de nada valia e que em vida nada mais fizera do que escrever seu nome e seus versos na água, isto é: vivera e criara poesia em vão, tudo logo sorvido pea supeorfície cambiante de um riacho que corre ou de um ado que num instante absorve as letras que sobre ele forem desenhadas: “Versos Escritos N’água”
Esta humilde e desesperada confissão tem uma importância ainda maior porque logo em seguida o poeta pernambucano adverte: não se procure em seus versos um rol de queixumes, de lamentos impotentes de um fraco, de choramingas. Não:
“Os poucos versos que aí vão,
Em lugar de outros é que os ponho”
O que significa claramente: ele se furta à confissão banal de seu sofrimento íntimo e o oculta sob uma aparência genérica, enganadora, pois seu temperamento introspectivo não lhe permite ser o mascate de sua dor.
A essa marca intrínseca do comportamento interiorizado de Manuel Bandeira corresponde, como toda a sua poesia demonstra abundantemente, o estoicismo. Quando uma criatura diáfana, belíssima, amada por todos e que morreu jovem é celebrada em versos musicais, logo se segue, terminal, categórico, um travessão, com o pedido ou ordem: “- Não a choreis”
Diante da dor, do fortuito do prazer, do enlevo talvez enganador, uma atitude de serena aceitação da efemeridade de tudo: tudo passa, nada vale nosso pranto nem nossa euforia: Pensa bem no que vais fazer, não te precipites, abandonando-te a desesperos inúteis nem a ações impensadas e também inúteis. Triste ou feliz, pena ou prazer, tudo se assemelha quase que a um fogo de palha, ao arder célere de momentos que os deuses, olimpicamente, constroem ou destroem caprichosamente, sem nenhuma lógica ou piedade:
“A chama queima. O fumo embaça.
Tão triste que é! Mas… tem de ser…
Amor?… - chama, e, depois, fumaça:
O fumo vem, a chama passa…”
Essa descrença poderia levar à conclusão, errônea, de que o poeta, amargurado, tornou-se empedernido, insensível, temeroso de desilusões, de sofrimentos mais tarde. Ao contrário: a contemplação de tantos sonhos que se esboroam não afeta
“… o incerto coração que chora,
… o fundo intacto de ternura…”
De um poema a outro, irrompe, a princípio vaga, depois mais segura, a certeza de que os poetas, os loucos, os marginais não estão em pé de inferioridade diante da massa uniforme dos bem-comportados, como D. Juan, que ele celebra como um transgressor que triunfa naquilo que parece, enganadoramente, ser a sua derrota:
“… escarneceste a virtude mofina…
Tua moral não foi a da massa burguesa”
Manuel Bandeira não assume uma posição triunfante de que o poeta é “mais” do que os outros: ele apreende verdades mais sutis que o tropel materialista e oco. O amor, por exemplo, não é o aparato do véu e grinalda, a digestão farta dos banquetes de casamento, a partida para uma lua-de-mel convencional. Ele vislumbra, precocemente, que “isso de amor/ No fundo é amargo e triste e dói mais do que tudo”. Como Rimbaud, que colocara a Beleza no colo e lhe achara um sabor de amargura, Manuel Bandeira subverte as noções líricas de um amor pregado em álbuns de família, com a noiva submissa, o noivo a lhe colocar no anular esquedo a aliança, os convidados a jogar arroz “para trazer sorte”, enquanto a Marcha Nupcial de Mendelssohn ressoa pela igreja inteira e o padre os declara insissoluvelmente “marido e mulher”…
Há como que uma fatalidade que pesa sobre ele: dentuça, tísico, pobre, solitário, se compara o amor feliz do avô, consignado nas cartas que deixou à avó, conclui que o amor que a ele coube, ao contrário, é “fruto sem cuidado/ que ainda verde apodreceu”. Mas jamais externa essa dor íntima: “O meu semblante está enxuto”
Muito embora “… a alma, em gotas mansas,/ Chora, abismada no luto/ das minhas desesperanças…”
Um queixume surdo apenas a poesia de Manuel Bandeira? Uma tímida confissão de derrota diante da vida e do amor? Ele se reduz então a um Casimiro de Abreu moderno? Longe disso: não tarda a vislumbrar a saída para seu desânimo: se a vida, e em particular a vida amorosa, é um fracasso, a poesia será a vitória sobre os reveses e a vitória contra as limitações da doença, quem sabe da morte iminente, já vaticinada pelas sumidades médicas suiças?
“Cria, e terás com que exaltar-te
No mais nobre e maior prazer.
A afeiçoar teu sonho de arte,
Sentir-te-ás convalescer.”
Esse alento novo, estuante, lhe vem da contemplação da natureza, essa força pujante que se renova em cada primavera a derrotar a entrega do inverno. O sol volta a brilhar, depois da neve, da chuva, do frio, da escuridão:
“Vai alto o dia. O sol a pino ofusca e vibra.
O ar é como de forja. A força nova e pura
Da vida embriaga e exalta. E eu sinto, fibra a fibra
Avassalar-me o ser a vontade de cura.”
O reconhecimento das limmitações impostas pela doença não desaparece:
“E neste curto instante em que todo me exalto
De tudo o que não sou, gozo tudo o que invejo”
… “E tudo isso me vem de vós, Mãe Natureza!
Vós que cicatrizais minha velha ferida…
Vós que me dais o grande exemplo de beleza
E me dais o divino apetite da vida!”
Essa lição da Natureza não comporta somente coragem e ânimo para a cura: a Natureza abrange tanto os seres humanos quanto a beleza, configurada nas rosas, no seu círculo do tempo, em que tudo brilha por um fugaz instante, tudo se torna fulgurante apenas por um breve momento: à amada bela que hesita em dar-lhe seu amor, ele faz uma parágrafe do poeta francês Ronsard e termina:
“Por que é que o vosso coração hesita?
O tempo foge… A vida é breve e vã…
Por isso, amai-me… enquanto sois bonita.”
Da mesma maneira, as rosas fenecem, como a tarde, como os sonhos:
“Morrem as rosas. Minhas pálpebras se molham
No pranto das desesperanças dolorosas.
Sobre a mesa, pétala a pétala, se esfolham,
Morrem as rosas…”
O que há a opor à morte? A vida sensual, estática, em que a volúpia carnal se mistura com a ternura, tudo através de um tom discreto, sem palavras lascivas ou cruas, jamais revelando circunstâncias íntimas que pertencem somente à amada e à avocação das horas felizes feita pelo poeta reticente.
A mulher, irmã, mãe ou amada, desempenha um papel decisivo na lírica de Manuel Bandeira:
“Mãos femininas… Mãos ou de amante ou de esposa,
Quem me dera sentir em minha árida fronte
O aroma que impregnais, tocando, em cada cousa…
A carícia da brisa… A frescura da fonte.”
O poeta reconhece, nitidamente, o caminho a percorrer, severo e áspero, sem ilusões: há o “sagrado labor da vida” através do cultivo da poesia, “o mundo é sem piedade”, “só a dor enobrece”, “a vida é vã” pela fugacidade de tudo, a vida é sombra rápida que passa e logo se desfaz, em deixar traços atrás de si. O conselho derradeiro é de “sofrer sereno e de alma sobranceira, / sem um grito sequer, tua desgraça.”
Numa rara nota religiosa, esse agnóstico que colecionava crucifixos pelo seu valor estético e afetivo aconselha quem for triste a rogar a Deus que faça de sua melancolia a sua “doce e constante companheira”.
Carnaval, o livro seguinte de Manuel Bandeira, é a transição da sua poesia inicial, compungida, desolada, para a modificação quase radical que se processará a partir dessa fase. Um dos poemas que mais escândalo causou entre o público paulistano presente aos três dias da Semana de Arte Moderna, em 1922, no Teatro Municipal, foi justamente desse período, “Os Sapos”. Cada verso recitado era alvo de apupos, de gritaria, de assovios, de vaias, de impropérios, a platéia em luta sem tréguas contra os modernistas, “um bando de loucos a zombar de gente séria e a criar a anti-Arte”…
Onde já se vira um poeta usar a palavra “papo” ou a expressão chula “falar pelas tripas” num poema?! E que história era aquela de se afirmar que “não ha mais poesia”, se os versos finamente cinzelados dos parnasianos estavam ali a mostrar que a poesia era encantamento sublime, trabalhado labor artístico, cinzelamento do verso como uma ourivesaria ou um friso de mármore do Partenon da Grécia Antiga?!
Manuel Bandeira já avisara, em seu poema igualmente escandaloso, “Bacanal”:
“Quero beber! cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
… Se me perguntarem: Que mais queres,
Além de versos e mulheres?
- Vinhos!… O vinho que é meu fraco!…”
E, pior do que tudo, a desfaçatez suprema:
“A Lira etérea, a grande Lira!…
Por que eu estático desfira
Em seu louvor versos obscenos,
Evoé Vênus!”
Francamente, a poesia virara um bordel! Como era possível ler-se um poeta, se for esta a palavra para designá-lo, que ousava dizer.
“Não posso crer que se conceba
do amor senão o gozo fisico!”
E em seguida a essa afronta às famílias que só viam na arte e o elevamento dos sentidos, pôr uma prostituta a relatar sua preferências eróticas e o infortúnio de sua vida sórdida de amantes bêbados e maridos tísicos!
Mais e mais uma sensualidade encoberta pelo pudor, mas recalcitante, se insere nos poemas de Manuel Bandeira. Mais e mais ele se declara marginal:
“E eu, vagabundo sem idade,
Contra a moral e os códigos”
E ainda:
“Na minha vida sem lei nem rei”
Poucos atentavam para o fato de que em oito versos apenas, no poema intitulado “Confidência”, Manuel Bandeira elevava a poesia brasileira a um tom de musicalidade e de confissão lancinante, semi-sussurrada a um ouvido desatento, inédito até então:
“Confidência”
“Tudo o que existe em mim de grave e carinhoso
Te digo aqui como se fosse so teu ouvido…
Só tu mesma ouvirás o que aos outros não ouso
Contar do meu tormento obscuro e impressentido.
Em tuas mãos de morte, ó minha Noite escura!
Aparta as minhas mãos geladas. E em repouso
Eu te direi no ouvido a minha desventura
E tudo o que em mim há de grave e carinhoso.”
Carnaval acentua a auto-ironia do poeta, que quis fazer um Carnaval semelhante ao do magnífico compositor Schumann, mas de seus esforços só resultou “O meu carnaval sem nenhuma alegria!” e introduz, subrepticiamente, os temas da morte e da poesia culta calcada em um floclore popular. Há os versos tirados da canção infantil “O anel que tu me deste era vidro e se quebrou”, do volume anterior, como neste novo livro há madrigais de um encantamento auditivo sabiamente apoiado na simplicidade do linguajar poético poular:
“A luz do sol bate na lua…
Bate na lua, cai no mar…
Do mar ascende à face tua,
Vem reluzir em teu olhar…”
Havia toda uma sabedoria oculta nessa versatilidade: Manuel Bandeira fazia poemas eruditos, baseados em redondilhas e em baladas medievais portuguesas com a maior facilidade, o que lhe valeu alguns puxões de orelha de Mário de Andrade, que lhe censurava tais “lusitanismos” e queria sempre mais “abrasileiramentos”.
O livro terceiro, Ritmo Dissoluto, inspira-se fortemente nas paisagens humanas, solidariedade terna e sem pieguismos. É o canto do bairro carioca de Santa Teresa encarapitado no morro, já perto da estátua do Cristo Redentor, com sua vidinha provinciana, longe do tumulto dos arranha-céus:
“Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho,
interessa mais que uma avenida urbana.
Todo o mundo é igual. Todo o mundo é toda a gente.
Aqui não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.
Cada criatura é única.”
Para terminar com a nota de inerradicável melancolia dessa época: a própria água que flui lembra “Que a vida pasas! que a vida passa!/ E a mocidade vai acabar.”
A dolorosa fotografia social dos míseros meninos carvoeiros que misturam seu duro trabalho com brincadeiras, as roupas em frangalhos, parecendo-os assemelharem-se a fantasmas ou espantalhos; o famoso poema da “Rua do Sabão”, que relata a fuga de um balão que cai no mar; e finalmente o poema “Balõezinhos”, que põe a nu a pobreza esquálida dos meninos indigentes, fascinados pelo homem subempregado que vende o que lhes parece maravilhas de um céu desconhecido - balõezinhos coloridos que não podem comprar -, toda essa fase dolorosamente solidária, mas sem tons de pieguismo, de Manuel Bandeira se modificou a sua inspiração, ampliando-a até o sofrimento coletivo, sem com isso abandonar o tom confessional pungente, comovido e comovente de uma poesia irretocável de tão perfeita como “Quando Perderes o Gosto Humilde da Travessia”, toda essa fase constitui, na verdade, o primeiro momento de sua criação poética.
A enorme ruptura se dá daí por diante. Bandeira joga fora qualquer freio de rima, métrica, mensagem poética. É como se eclodisse um outro poeta. Por que cultuar a tristeza, por que celebrar a doença que o impede de levar uma vida ativa e o força a escrever deitado, com a máquina de escrever colocada sobre uma pequena mesa, em cima da cama na qual ele, por ordens médicas, tem de ficar recostado?
Por isso ele já começa a coletânea com um desafio surpreendente e provocante:
“Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.”
A burguesia que ainda pensa na poesia como “o cultivo do Belo, do Elevado” se choca sem poder mais pronunciar o nome do poeta em rodas finas, onde haja moças e senhoras de família. Então, já não bastasse Carlos Drumond de Andrade falar insistentemente de “uma pedra no meio do caminho”, sem que os “bem-pensantes” atinassem com a finura simbólica da metáfora e agora vinha aquele nordestino falar, em poesia, de sintomas repugnantes da tuberculose e de exames médicos desencorajadores como na poesia execrável denominada “Pneumotórax”?
Manuel Bandeira toma a sério sua libertação pelo humor. No poema “Poética” ele ironiza, veementemente, a poesia bem-comportada, certinha no português, escrita para namoradas, apoiada em dicionários castiços, burocrática; numa palavra: toda poesia que não servir à libertação das angústias de cada um, à expressão legítima de um anseio individual, não é poesia: lirismo é o dos loucos, dos bêbados, dos bobos da corte das peaças de Shakespeare que revelam que o Rei Lear está louco ou nu. Ou o lirismo é uma expressão da verdade ou é a mumificação do pensamento ou do sentimento, e portanto nem lirismo é.
Desbragadamente, ele evoca o Recife de sua infância, como anteriormente fizera poemas só com palavras brasileiras, à la Raul Bopp, e, paralelamente a esta decisão de enfrentar a vida sem melancolias mas com doses de alegria como quem toma um elixir tonificante, ressurgem aqui e li o sentimento de derrota pessoal, o sentimento humilhante da pobreza e da incompreensão do intelectual de talento no Brasil de sempre, a melancolia que parece ter presidido como madrinha ao seu nascimento:
“Andorinha lá fora está dizendo:
- Passei o dia à toa, à toa!
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei o dia à toa, à toa…”
É uma tristeza inerradicável. São os balões e “Profundamente” que quando menino, por ter adormecido, ele deixou de ver e hoje - tempus fugit! - estão todos mortos os amigos de ontem, dormindo profundamente os parentes, a empregada, os anjos tutelares da infância recifense perdida, como a visão do balão foi roubada pelo sono inoportuno.
Se a lira correta, cheia de rimas ricas, de perfeição formal, estava quebrada deliberadamente e abandonada de vez, a partida para o sonho, para o mundo surreal e onírico dos desejos impossíveis satisfeito com a fantasia sem peias se faz com “Vou-me Embora para Pasárgada”. Mas já em meio a esse céu maometano de prazeres incessantes, destoa a frase viperina que trai a filosofia amarga desse digno êmulo de Machado de Assis em sua recusa da vida. Pois, se “Pasárgada tem tudo, é outra civilização”, não existe lá a reprodução, a criação de outras vidas, salvaguardando os seres humanos assim da dilacerante dor de viver:
“Tem um processo seguro
De impedir a a concepção”
A alegria espalhafatosa, imposta pela vontade do poeta, como que apresenta pequenas rachaduras que ameaçam fazê-la esboroar-se. Não, não é apenas a tristeza, não é nem mesmo a frustração que deixam seu sinete na criação poética de Bandeira: é um travo trágico, quase que se diria amargo, não fosse o sentido de humor que o dilui que nela se destaca. No poema dedicado ao dia de Finados, por exemplo, os quatro versos finais não poderiam ser mais fúnebres, nem na poesia romântica inglesa mais desesperançada de Thomas Gray e Elegy written in a Country Church Yard:
“O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero.
E em verdade, estou morto ali.”
A negação, a recusa da vida é cabal, apesar dos esforços por colher os seus momentos coloridos de alegria, de prazer fugidio. No acre poema curto “Entrevista”, imagina-se que um repórter o importuna com uma entrevista: o que ele acha de mais bonito no mundo? E ele responde que não sabe dizer. Sabe, isto sim, o que há de mais triste no mundo inteiro: “De mais triste é uma mulher grávida/ Qualquer mulher grávida”. A vida é já amaldiçoada, indesejada, no ventre, sob a forma do veto, pois a vida significará sempre espanto, sordidez, sofrimento, frustração, maldade, engano: para que saudá-la quando nascitura?
O poeta se aventura a fazer poemas à moda dos poemas de amigo dos cancioneiros medievais portugueses, hai-cais, poemas concretos, gazais da poesia persa, mas incursiona também, alegre por instantes, na pagodeira esfuziante, hilariante, das três mulheres do sabonete Araxá. É a modernidade dos anúncios publicitários que invade a poesia contemporânea: é uma versão divertida de Pasárgada, onde a fantasia não tem limites, onde as mulheres do sabonete do anúncio colocado em bondes e logradouros públicos despertam no poeta a veia satírica e a veia voluptuosa de par com o desejo de evasão da realidade sombria de pobreza, solidão e doença a minar-lhe os pulmões. Manuel Bandeira não se entrega, mesmo desenganado pela medicina oficial. Faz programs bissemanais pelo rádio, colabora como cronista de jornais, leciona Literatura Hispano-Americana na Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, entra para a Academia de Letras, traduz livros diversos, desde Brecht até aventuras de Tarzan e o Macbeth de Shakespeare, redige um livro em dois volumes sobre Noções de História das Literaturas, é o padrinho de casamento da poetisa Marly de Oliveira. Seria impossível em breve artigo de jornal resumir a grandeza que palpita em seus poemas. A sua é uma música íntima, de câmara, sem o ruído majestoso de uma filarmônica ou de uma sinfônica, é mais um quarteto voluntariamente amortecido em seus tons, mas de uma melodia triste que não se deixa desmentir pelos estouvados rompantes de alegria e traquinagem aqui e ali. Nem por isso a melodia que nos deixou é menor pela sua complexidade, pela espiritualização da carnalidade, pelo seu pudor legítimo, pela humildade sincera de sua modéstia e pela grandeza que nela só pressentem os que rimam poesia com sutileza e reticência.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Manuel Bandeira},
booktitle = {Poetas brasileiros contemporâneos},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {4},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-4/2-manuel-bandeira/01-manuel-bandeira.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1986-04-19. Aguardando revisão.}
}