Literatura: o alvo comum de todos os despotismos

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1979/08/04. Aguardando revisão.

É um truísmo nem por todos reconhecido que a democracia é a única atmosfera que possibilita a criação da literatura: todo regime totalitário suprime o oxigênio da verdadeira documentação histórica ou da inventividade ficcional. O século XX, porém, instituiu as piores repressões possíveis para a literatura, restringindo-a dentro de uma camisa-de-força que não se detém diante da censura, da prisão e nem do aniquilamento violento de escritores, poetas, pensadores, artistas e intelectuais. Nos campos de concentração nazistas, milhares deles foram dizimados sistemática e impunemente. Na Espanha fascista de Franco, poetas como Miguel Hernández e Garcia Lorca foram trucidados. Na Argentina peronista Jorge Luís Borges viu-se relegado da noite para o dia, do cargo de diretor da Biblioteca Nacional, cargo a que fazia jus como o maior escritor argentino de fama internacional, para o porto infamante de inspetor de galinhas e outras aves domésticas. Na Rússia bolchevista, depois de 1917, só é impressa a literatura que enaltece o regime soviético, através de uma alienação da realidade imposta pelo governo e não prevista por Marx. No Brasil a ditadura de Getúlio Vargas extraiu da prisão uma das obras-primas da nossa literatura social: Memórias de Cárcere de Graciliano Ramos e silenciou durante longos anos a voz cuja genialidade é reconhecida de forma crescente, hoje, do romancista gaúcho Dyonélio Machado, autor de Os Ratos e O Louco de Cati. Recentemente, os atentados contra a inteligência e a cultura atingiram o livro Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, um conto erótico de Dalton Trevisan, além de centenas de peças premiadas e nunca encenadas.

Seria impossível alinhar todos os nomes dos que pereceram ou tiveram suas obras destruídas neste século em que o despotismo de extrema direita ou de extrema esquerda, já infeccionou quase todos os países do globo, com exceção das 35 democracias que se afirma continuam a existir em meio à maré da tirania política global. O que distingue esta época atual das demais é, contudo, o ataque total empreendido à literatura – seja pela proibição religiosa, pelo Estado, pelas patrulhas ideológicas, pela censura de critérios nebulosos enfeixados sob o título vaguíssimo de “defesa da moral e dos bons costumes”, seja pelo preconceito racial, sexual, regional. Em vários países do Islã a mulher não pode aprender a ler, obscurantismo cultural que se completa com a cerimônia ritual de extração do seu clítoris quando ela atinge a adolescência. Em Cuba, os escritores homossexuais são enviados a “campos de reeducação”, na China da Revolução Cultural, as obras de Shakespeare foram incineradas, acusadas estranhamente de serem “anti-povo”. Em Moscou, tratores arrasaram uma exposição de pintura e poesia, no Uruguai, as obras de Marx constituem um indício certo de “atividades antiestatais”, na África do Sul, as obras antirracistas de Doris Lessing, Alan Paton e Nadine Gordimer estão banidas pelo governo da monstruosa segregação racial do apartheid sul-africano; no Peru, o romance La Ciudad y los Perros (Batismo de Fogo, em português) de Mário Vargas Llosa foi queimada em praça pública como obra “atentatória à moral, à pátria e ao argumento militar do país”.

Platão, já não tinha banido da sua República ideal, governada por reis-filósofos, todos os poetas? A Rússia de hoje parece levar esse ostracismo às últimas consequências nos casos em que o clamor da consciência mundial desperta de sua letargia usual. Moscou exila escritores como Siniavsky e Solzhenitsyn, entre outros, mais frequentes, massacra-os nos cárceres ou nos exílios para a Sibéria e outras regiões remotas da imensa República. O que chamaria a atenção então para apenas mais um escritor russo que fugiu para o Ocidente? As fugas da URSS assumem feições inesperadas: o bailarino Rudolf Nureyev dá um salto mortal no aeroporto de Orly, em Paris, pedindo asilo à polícia francesa quando vê os funcionários soviéticos forçarem o seu retorno à Rússia. Por que perder tempo então com apenas um a mais, dentre tantos fugitivos, que seguiram, como a filha de Stalin, o caminho das “democracias burguesas”, fixando nova residência nos Estados Unidos, na Inglaterra, na França etc.? É que as circunstâncias em que se deu a evasão do autor de Babi Yar, ultrapassam a fantasia de qualquer história de espionagem, misturando realidade e ficção de forma inextricável:

O relato do massacre de 200.000 pessoas no barranco denominado Babi Yar, nos arredores da cidade russa de Kiev, foi censurado de tal modo que pudesse dar a “versão soviética daquele genocídio perpetrado pelos nazistas ao invadirem a Rússia em 1941. O resultado foi que se encobriu a macabra participação soviética na eliminação de milhares de judeus, reunindo a brutalidade do Terceiro Reich com o antissemitismo violento de Stalin. É quando começam os lances que distinguem essa fuga de qualquer outra:

1º) Durante anos a fio, Kuznetsov guarda os originais não retocados pela censura em vidros de conserva, plantando-os no quintal de sua casa naquela zona rural da URSS;

2º) A apavorante polícia secreta soviética, a KGB, êmula digna da Gestapo, impede que ele publique qualquer outro livro e já que toda a atividade editorial na Rússia é monopólio exclusivo do Estado, não existindo nem mimeógrafos que não estejam severamente controlados pelas autoridades, consequentemente Kuznetsov torna-se um autor inexistente. Sei livro Babi Yar é discreta e paulatinamente retirado das bibliotecas públicas, mesmo fortemente expurgado como estava.

3º) A KGB impede-o também de viajar ao estrangeiro (na União Soviética não há depósito compulsório) e oferece-lhe essa oportunidade de só se ele denunciar colegas que tenham opiniões ou atividades antissoviéticas. Kuznetsov finge que aceita e prepara um fantasioso relatório que convence as autoridades policialescas.

4º) Preparando-se para ir a Londres, acompanhado de um guia que não o deveria deixar afastar-se nem por instantes, ele pretexta como objetivo da viagem a necessidade de documentar-se sobre Lenin e evidentemente conformar-se com a linha de glorificação do cadáver que permanece embalsamado no Kremlin, visitado em peregrinação por centenas de pessoas diariamente. Kuznetsov fotograva todos os seus manuscritos enterrados ao lado de beterrabas e batatas e costura os filmes dentro de seu casaco de lã, já disposto a nunca mais voltar à Rússia, que acabara de mandar os tanques do Socialismo Soviético esmagarem a revolução democrática de Dubcek em Praga, em 1968.

Finalmente, chegando em Londres e sem saber bem inglês, Kuznetsov consegue burlar a vigilância de seu guarda permanente e aqui as versões divergem: segundo alguns ele teria dito a seu companheiro que queria ir a um prostíbulo. Segundo outros, ele teria dado como desculpa uma inadiável necessidade de ir ao banheiro e, tendo estudado cuidadosamente o mapa de Londres, teria entrado na redação de um jornal gritando o nome de “Cruikshank!”, um comentarista político inglês que conhece russo fluentemente e escreve sobre sovietologia em Londres.

Envergonhado e sua atuação precedente, de baixa o pescoço diante da canga da KGB, Kuznetsov abjura até de seu nome. Passa a assinar-se daí por diante A. Anatoli, pois Kuznetsov “era o nome de um escritor covarde e conformista”, conforme ele mesmo diz.

Happy ending? Não, foi trágico o final: A. Anatoli ou Kuznetsov consegue publicar a versão integral de seu livro Babi Yar (Editora Sphere Books Limited, 478 páginas, Londres, tradução de David Floyd, 1970, 1972, 1973, 1978) e vê a KGB erguer no apartamento em frente ao seu, na capital inglesa, um telescópio com o qual passa a vigiar todos os seus passos. A. Anatoli lê, com seu inglês ainda imperfeito, sobre a morte dos dissidentes búlgaros assassinados no metrô de Paris por agentes búlgaros que usam como arma um guarda-chuva, inocente na aparência, mas na realidade mortal: o cabo possui um gatilho e a armação e o pano dissimulam o cano da espingarda. Incapaz de dormir, perseguido por alucinações constantes de morte violenta, ele morre de parada cardíaca, uma vítima indireta do terror instalado no governo soviético.

O que tem o Brasil a ver com tudo isso? O seu futuro como Nação democrática, pois foi justamente uma editora brasileira a responsável pela tradução, em português, da edição expurgada de Babi Yar. Teria sido a Civilização Brasileira, que lançou as Memórias de Ehremburg e as excelentes Poesia Russa Moderna (Augusto e Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman) e Ascensão e Queda do III Reich de William L. Shirer? Isso além de uma sórdida imitação de ensaio de um pseudocrítico russo, funcionário no sentido mais servil do termo, do todo-poderoso Sindicato dos Escritores Soviéticos, Grossmann, que aventava a hipótese, apresentada como “verdade científica”, segundo a qual o misticismo de Dostoievski não passava de surtos de epilepsia...

Agora que no Brasil, felizmente, a mão pesada da censura obscurantista se retrai e o livro Zero de Ignácio de Loyola Brandão volta a ser vendido livremente, e em que todas as forças democráticas se nem na luta pelo Estado de Direito, de uma democracia sem adjetivos, é imperioso que uma editora brasileira publique o texto verdadeiro de Babi Yar, considerado pelo magnífico e severo jornal The Times de Londres (hoje temporariamente fora de publicação por conflitos com os sindicatos dos gráficos) como “um relato vivido, de primeira mão, da vida sob a ocupação de um dos mais bestiais regimes... um livro que deve ser lido e nunca esquecido”.

O livro de Kuznetsov-Anatoli é importante para todos os que saíram do pesadelo da Censura para saberem a que ponto pode chegar à deturpação histórica da verdade. A edição inglesa imprime em negrito as várias dezenas de páginas cortadas pela Censura. A que se referem?

Aos assuntos mais impensáveis: toda referência a qualquer erro do governo é riscada incontinenti, como se errar não fizesse parte nem do povo russo nem da sua cúpula dirigente, ambas entidades pairando acima do humano. Igualmente, qualquer linha que aluda à religiosidade não extirpada do povo após lustros de ensinamentos ateus é barrada com lápis vermelho do censor onipotente e onisciente. Até um episódio ridículo em que os inspetores vão revelando horrores inenarráveis: o pretenso “Palácio do Trabalho” escondia, na realidade, o prédio lúgubre dos interrogatórios da polícia secreta da República da Ucrânia. Dele se dizia que quem nele entrava nunca mais saía e, no enlace medonho dos dois totalitarismos, o edifício soviético com suas câmaras de tortura é ocupado pela Gestapo, que passa a usar suas dependências sem demora, numa sinistra aliança dos dois totalitarismos.

É indispensável republicar Babi Yar em sua versão integral, caso contrário o público ledor brasileiro terá apenas a versão oficial, soviética, do massacre de Babi Yar. E esse magnífico livro merece a atenção de todos os que se preocupam com a sobrevivência da democracia no Brasil e no mundo: se não, por que dar fotos e manchetes da Nicarágua, do Irã, da guerra do Vietnã, dos refugiados vietnamitas em alto-mar?

A. Anatoli, como que antevendo sua morte, dialoga com o leitor, amplia suas meditações, faz revelações novas sobrea oposição dos lavradores e proletários contra a tirania stalinista, seu ódio a Lenin “que trucidou mais do que todos os tzares juntos”, o desprezo por Stalin e por todos os ditadores do mundo. Anatoli chega ao extremo de não conseguir ler os grandes clássicos mundiais, porque pensa na vastidão de serviços que estariam à disposição de Hamlet ou de Anna Karenina, reservando admiração incondicional apenas por Don Quixote.

É uma semelhança que revela uma afinidade espiritual: em um de seus apartes, entre parêntesis, dirigidos ao leitor, Anatoli adverte, lucidamente, na parte que foi cortada pela Censura:

“Qualquer pessoa que hoje em dia ignorar a política se arrependerá.

Eu não disse que gosto de política. Detesto-a. Desprezo os políticos. Não estou lhe pedindo, leitor, que goste deles nem que os respeite. Estou simplesmente avisando: não ignore a política nem os políticos.”

É longa já a lista de livros que, por coincidência?, não são traduzidos no Brasil e que abrangem desde a revelação paulatina na Alemanha de hoje dos crimes e atrocidades perpetradas pelos nazistas e deixadas impunes (Adalbert Rueckerls, Die Strafverfolgung von NS-Verbrechen 1945-1978, Editora C. F. Mueller, 148 páginas, Heidelberg-Karlsruhe e Ulrich-Dieter Oppitz, Strafverfahren und Strafvollstreckung bei NS-Gewaltverbrechen, Editora Ulrich-Oppitz, Ulm, 440 páginas) até a magistral reconstituição histórica das Revoluções russas de 1905 e 1917: Black Night, White Snow de Harrison Salisbury (Editora Doubleday, Garden City, New York, 746 páginas) ou a autobiografia pungente da viúva do grande poeta russo, Ossip Mandelstam, condenado por Stalin e que morreu em um campo de concentração do Gulag soviético: Das Jahrdundert der Woelfe, Nadeja Mandelstam (Editora Fischer, Alemanha).

Existem muitíssimos outros autores inéditos entre nós e que poderiam elucidar a inteligência e a consciência brasileiras aviltadas pela presença de Gustav Franz Wagner escondido no Brasil e enxovalhadas com a afirmação de um representante da OLP de que “os judeus foram para os campos de concentração de Hitler porque não obedeciam às leis do país”...

Agora que o Skylab comprovou que vivemos numa aldeia globalizada pela instantaneidade das comunicações, o livro permanece e pode ser consultado quantas vezes se quiser. É indispensável que o Brasil se integre no seu tempo e combata os totalitarismos nazistas, fascistas, maoístas, soviéticos ou que nomes tenham, sem o que o próprio Brasil pode matar, no berço, a Democracia ainda frágil e ameaçada entre nós nos dias que correm. Saber é uma condição sine qua non para se escolher democraticamente. A verdade não pode ser encoberta ou deturpada. Ou os cadáveres de Babi Yar, de Hiroshima, de Auschwitz, do Gulag e do Cambodge serão a única forma de democracia que nos reserva a nossa época de fanatismos plurais?

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Literatura: o alvo comum de todos os despotismos .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.