E fica o brilho de Marguerite Yourcenar

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1987/12/19. Aguardando revisão.

Ontem, às nove horas da noite, em um pequeno hospital da costa Nordeste dos Estador Unidos, morria de hemorragia cerebral Marguerite Yourcenar. Escritora cuja fama só alcançou aos 78 anos de idade, obteve enorme repercussão no Brasil devido aos 18 anos de trabalho amoroso que lhe dedicou sua excelente tradutora, Martha Calderaro, com sua obra ficcional inspirada em um imperador romano que existiu realmente, intitulada Memórias de Adriano. O tempo parece não desempenhar um papel preponderante nem em sua vida nem em sua abundante criação literária: este romance epistolar imenso lhe custou 27 anos de cinzelamento, estudos, pesquisas, correções. Memórias de Adriano talvez passasse despercebida quase se sua autora não tivesse sido a primeira mulher a ingressar na Academia de Letras da França, em 1980. Sua admissão a este cenáculo grotesco, fundado pelo maquiavélico Cardeal Richelieu, há 352 anos, foi circundada de episódios do mais chocante ridículo. Seu grande defensor, o medpiocre escrevinhador Jean D’Ormesson, a saudou com retórica retumbante e equívoca: “Teríeis, Madame, sido acolhida por esta augusta Academia mais cedo se a Mãe Natureza vos tivesse feito homem!” e a encenação de opera buffa não parou aí: sem poder envergar o fardão acadêmico nem carregar com dignidade o espadachim pesado, o costureiro Yves Saint-Laurent, presente à cerimônia junto com o então presidente da República, Giscard D’Estaing, criou para ela uma espécie de toga monacal, misto de chador muçulmana e hábito de carmelita descalça, coroado por um medalhão, substituição da espada, do imperador Adriano.

As más línguas cochichavam: “É a primeira vez que a Academia recebe uma homossexual como membro”, mexerico que a escritora afastava sempre de si como um enxame de moscas importunas: “Só porque moro há 40 anos com minha tradutora norte-americana, Grace Frick, julgam que sou uma discípula de Safo!” Outras vozes tentavam torná-la uma insensível aos acontecimentos dos comuns dos mortais, ao Povo com P maiúsculo, ao que ela retrucava que, apesar de sua origem nobre, jamais tivera qualquer noção de sentimento de classe e muito menos de luta de classes. E havia ainda a circunstância de que a nova “imortal” já se referira com desprezo à Academia, considerando-a publicamente “um clube arrogante de velharias tediosas”, prometendo nem angariar votos para sua admissão aos 40 integrantes desse seletíssimo círculo de mediocridades nem fazer parte de uma única de suas sonolentas sessões…

Marguerite Yourcenar (1903-1987) temperava sempre de ironia as entrevistas que concedia, principalmente às revistas ditas “feministas” como Elle: como se pode falar de “literatura feminina”? Qual é a visão “feminina” da hipotenusa? Por que criar mais um gueto? O ideal feminino era imitar os grandes homens de negócio e morrer de infarto no auge de suas carreiras? E soerguia, altiva, a cabeça para afirmar que não, não era feminista absolutamente: que se lutasse pelos direitos jurídicos da mulher, de acordo, mas daí a tornar a mulher uma imitadora vã das metas masculinas ia uma grande distância.

Considerava mais urgente e abrangente lutar pelos direitos civis de todos os grupos minoritários: os homossexuais, os índios, os negros, os judeus, mas, enfatizava, sem deixar de acusar o fanatismo judaico sempre que ele se apresentasse como usurpador de uma superioridade que não possuía de fato. Evidentemente, cada entrevista desta mulher orgulhosa e intransigente, que parecia detestar “agradar” ao interlocutor ou aos leitores, era uma catástrofe. Ela vivia no mundo da lua? Por que em seus romances o homem é, com uma ou duas exceções, sempre homossexual? Por que ela raramente fala do presente e vê em tudo a presença esmagadora do passado?

Marguerite Yourcenar, porém, não parava na letra “f”, seguindo a marcha plus que lente do dicionário paquidérmico da vetusta Académie, em preparo há mais de três séculos: femme (mulher) era uma palavra demasiado exígua para ela que queria traçar o mapa de todas as civilizações, dos romanos e árabes aos celtas e à Itália sob o terror do fascismo, no século XX. Le Denier du Rêve (O Denário do Sonho) é um de seus livros mais trágicos: une personagens díspares através de uma moeda humilde, o denário do título, todos co-envoltos numa abortada tentativa de se tirar a vida do Duce Mussolini, na Roma de 1929, com suas bandeiras ao vento, suas palavras ocas e grandiloquentes, suas poses de palhaço, seu “império” feito de retórica e sonhada desde o balcão de onde se dirigia ao “povo” na piazza Venezia.

A ironia ferina de Yourcenar se caracterizava pelo desdém cáustico, como quando considerou outra Marguerite escritora. Marguerite Duras, autora de uma frivolidade moram sem nome: Hiroshima, mon amour, o que para ela equivalia à tolice de se escrever, por exemplo, “Auschwitz, meu chuchu” (em francês: “Auschwitz, mon chou), banalizando o terror que os seres humanos podem infligir a outros seres humanos indefesos, no Japão, na Europa ou onde for. Para ela, ao contrário, a História humana, incapaz de dar lugar a otimismos nem a superficialidades tão do gosto de certos pensadores do XVIème arrondissementI, um dos bairros mais ricos e chiques de Paris, a História era sobretudo uma”escola de liberdade”. Através de cada época temos a noção dos valores que esse período histórico atribui à vida e ela volta sempre às eras passadas – à Antiguidade clássica, à França anterior à invasão romana, à Flandres do Renascimento – pois o presente nada mais é do que a reiteração do passado: o amor, a tirania, a tolerância, a liberdade, a morte mudam jamais?

Com suas próprias palavras, o descrédito do futuro do ser humano:

“Ah, sim, ele (meu pessimismo) é bem forte. Em um século em que os desertos aumentam, em que a chuva ácida destrói as florestas, em que foram extintas 82% das espécies animais, em que houve duas grandes guerras e cerca de 25 guerras regionais que conduziam, todas, ao risco de uma nova guerra mundial, não há com o que ficar contente.”

Mesmo seu ceticismo não a impedia de continuar lutando e crendo, por mais absurdo que pudesse parecer: Marguerite Yourcenar pertencia a mais de 50 organizações como a Greenpeace ou a World Wildlife Foundation (Fundação Mundial em Prol da Vida Selvagem), defendia as baleias e as focas do extermínio nas imensidões geladas do Canadá ou do Alasca, assim como no Quênia assinava petições para a preservação dos elefantes e das girafas.

Nem nos elogios póstumos ela teve em Jean D’Ormesson um admirador inteligente: desde Sartre, dizia o acadêmico confuso, desde Aragon a literatura francesa não tinha um gênio como Mme. Yourcenar, cuja morte o enchia de luto. O que deve ter sido o elogio-gafe do ano: a obra literária de Sartre jaz mais mumificada que Lênin no mausoléu do Kremlin e de Aragon o surrealismo francês guarda no máximo o nome. Enfim, ela estava acostumada a esses tropeços, em sua solidão na ilha de temperaturas invernais de menos 40 graus centígrados onde morava e nunca confiara na inteligência como um bem distribuído fartamente pela natureza, pelo acaso ou pelos deles aos bípedes implumes. A obra de Yourcenar distingue-se, em seus melhores momentos, por uma elegância marmórea, um aticismo solene, conciso, filosófico. Muitas vezes já se procurou, em vão, uma raiz unicamente cristã em seus escritos. Ela é muito mais pagã, muito mais helênica em sua atitude diante da paixão, da beleza e do nada. Mesmo a perfeição desperta sua melancolia diante da marcha do efêmero de tudo: ter amado é oferecer à memória uma ruína que o tempo, ávido, devora. O êxtase evoca o próprio fim, a beleza lembra a mutabilidade de tudo, rumo ao limbo, ao esquecimento, à morte.

Para ela o amor envolve simultaneamente a alma e o corpo, mas sem as mortificações da carne e sim com o júbilo da carne a degustar o prazer pelo prazer, sem culpas, sem noção de pecado nem de castigo. Estas são, porém, noções da verdade e da sabedoria destinadas a poucos: “A massa continua ignara, feroz quando pode, e há razões para se apostar que permanecerá sempre assim”.

Ensaísta arguta, tradutora do poeta grego Kavafy, penetrante crítica de Mishima, comenta a espiritualidade dilacerante dos spiritual negros norte-americanos, assim como estabelece relações insuspeitadas entre o desenhista insigne italiano Piranesi, do século XVIII, com sua série atormentada de “Prisões” e Goya, o Inferno de Dante e o inferno contemporâneo de Kafka. Seu gosto estabelece sempre uma hierarquia intrinsecamente aristocrática entre os autores: não tem tempo a perder com alguém inferior a Henry James, a uma Virginia Woolf.

Terão rufado novamente os involuntariamente hilariantes tambores da Academia Francesa agora que ela morreu, como soaram à sua entrada? Para ela seria uma ironia a mais a enfeitar sua vida de beleza misturada com disparates. Atualmente, quando a Europa sofre seu mais profundo ocaso literário, com centelhas agonizantes aqui e ali, a prolongar o seu triste crepúsculo, Marguerite Yourcenar deve ser vista, não sob o prisma da pobreza artística da Europa de hoje. Nem sob a perspectiva apenas da sua criação literária. Ela, iconoclasta sempre, não considerava que os livros fossem objetos sagrados, dignos de culto. Pois nem os livros podem conter inteiramente a pulsação estuante da vida. Com a publicação póstuma de sua obra deixada inconclusa virão os relatos de sua vida, de suas recordações, de suas convicções. Ela retratou fielmente os guerreiros celtas que, quando acossados pelas marés, armavam-se como para uma batalha e entravam mar adentro para desafiar a fúria das tempestades. É uma digna imagem de si própria, a crer que o fulcro das questões sociais e políticas é sempre o da ética, da dignidade humana em seu combate sem cessar pela restauração da Natureza, por meio da ecologia, e pelos direitos humanos, sem fronteiras nacionais nem ideologias dogmáticas. Se fragmentar o embate de todos os seres humanos. Mesmo sem uma crença específica em Deus, não podemos deixar que nossas vidas sejam tragadas pelo que ela chama de “o caos inútil”. Como ela confessou surpreendentemente a seu entrevistador Matthieu Galey em De Olhos Abertos:

“Tenho a impressão de ser um instrumento através do qual passaram correntes, vibrações. E isso vale para todos os meus livros, e eu diria mesmo para toda a minha vida. Talvez para toda a vida; e os melhores dentre nós talvez não sejam, nem eles, mais do que cristais atravessados. Assim sobre os meus amigos, vivos ou mortos, repito com frequência a admirável frase que me disseram ser de São Martinho, o filósofo desconhecido do século XVIII, tão desconhecido para mim que jamais li uma única linha sua e jamais verifiquei a citação: ‘Há seres através dos quais Deus me amou’. Tudo vem de mais longe e vai mais longe que nós. Em outras palavras, tudo nos supera, e nos sentimos humildes e maravilhados por termos assim sido atravessados e superados…”

Reuso

Citação

BibTeX
@incollection{gilson ribeiro2021,
  author = {Gilson Ribeiro, Leo},
  editor = {Rey Puente, Fernando},
  title = {E fica o brilho de Marguerite Yourcenar},
  booktitle = {As três grandes damas da literatura europeia: Virginia
    Woolf, Marguerite Yourcenar e Doris Lessing},
  series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
  volume = {7},
  date = {2022},
  url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-7/02-marguerite-yourcenar/04-e-fica-o-brilho-de-marguerite-yourcenar.html},
  doi = {10.5281/zenodo.8368806},
  langid = {pt-BR},
  abstract = {Jornal da Tarde, 1987/12/19. Aguardando revisão.}
}
Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “E fica o brilho de Marguerite Yourcenar .” In As três grandes damas da literatura europeia: Virginia Woolf, Marguerite Yourcenar e Doris Lessing, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 7. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.