Havel, testemunha de acusação
O despotismo político instituído pelos bolcheviques na Rússia em 1917 que depois se espalhou pelo terrorismo militar, no centro e no leste da Europa, açulou, de maneira possivelmente ímpar em nossa época, a reflexão política. Desde Rosa de Luxemburgo até Trotsky as questões fundamentais das estruturas de convivência social, política e cultural dos agrupamentos nacionais refletiram-se nas discussões brasileiras – sem esquecer as interrogações formuladas pelos anarquistas europeus - mas sem nenhuma notável renovação em nosso cenário político-partidário de hoje.
A análise fulminante de José Guilherme Merquior em Marxismo é a exceção que confirma o atraso brasileiro nos debates sobre liberdade, justiça, igualdade, fraternidade que permanecem como eixo central da própria condição humana. Antevistas por Dostoievski e Tolstoi, as meditações sobre esses assuntos atingiram com Solzhenitsyn o ápice da revolta fecunda, fermentada pelos manuscritos copiados rudimentarmente e passados de mão em mão, os quais em russo eram chamados, apropriadamente, de samizdat (auto-editados): jornais clandestinos contra a mentira oficial do Estado onipotente.
Há, porém, textos de igual importância ainda largamente desconhecidos no Brasil, mesmo depois de mais de sete décadas de instaurado o comunismo pela Revolução de Outubro, em Moscou. O eminente pensador polonês Leszek Kolakowski, em sua magistral dissertação traduzida na Espanha pela Alianza Editorial de Madri: Las Principales Corrientes del Marxismo (3 volumes) trouxe uma erudição e uma luz inéditas ao estudo da influência e do declínio da teoria marxista no mundo moderno.
Mas, se essa obra basilar ainda não é conhecida nem debatida no Brasil, com que urgência não deveria ser traduzida entre nós a esplêndida coleção de ensaios do dramaturgo e ex-presidente da Tchecoslováquia (com a dissolução da Federação). Václav Havel, que em alemão foi traduzida com o título de Am Anfang war das Wort (No Princípio era o Verbo), da Editora Ro Ro Ro?
Em títulos como “Carta a Aleksandr Dubcek”, “Política e Consciência”, “Nosso Destino é Indivisível” e “Projeto Esperança”, entre outros, Havel desenvolve extraordinárias elucubrações sobre a uniformidade artificial imposta pelo totalitarismo a uma sociedade que está proibida, pelo seus tiranos, de participar de quaisquer acontecimentos naturais que escapem à linha do partido único.
A eliminação do evento implica o desaparecimento do sentido coletivo da História e a estatização do tempo. A burocracia administra sua imobilidade e eternização no poder absoluto, afastando-se cada vez mais do ethos revolucionário que lhe dera origem. É o sinal inconfundível de sua obsolescência, como ideologia. A sua ânsia de captar para sempre e de maneira total, completa, a diversidade dos seres humanos e das culturas e ter assim alcançado a totalidade da verdade global – aqui se encontra a semente de sua falibilidade. Assim, o estuda da História, vista apenas por um único e imutável ponto de vista apriorístico, pseudocientífico, transformou a própria História em monotonia e uniformidade previsíveis. “O poder totalitário está, todo ele, saturado pelo espírito da intolerância e pela mentalidade dessa ideologia, que é incapaz de conceber a pluralidade a não ser como o mal ou como mera formalidade.”
Com isto anula-se todo o pensamento que possa não se adaptar a essa teoria preconcebida e, portanto, se chega, desta maneira, à anulação de todo e qualquer pensamento ulterior. De fato, qualquer pluralidade intelectual ou econômica que se antepuser ao pensamento totalitário terá que desaparecer: um poder que respeitasse a existência de qualquer pluralidade não poderia ser um poder totalitário, evidentemente.
Havel testemunha, de maneira eletrizante, a extinção de um sistema fossilizado, o comunista, que não permite o oxigênio do debate e com isso condena a si próprio ao desaparecimento. Como o livro de Havel seria fecundo se divulgado em certas tribos fidelistas do Brasil de hoje!
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Havel, testemunha de acusação},
booktitle = {Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra
os despotismos e os totalitarismos},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {12},
date = {2024},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-12/05-paises-do-antigo-leste-europeu/03-havel-testemunha-de-acusacao.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1992/07/25. Aguardando revisão.}
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