Múltipla Doris Lessing

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1982/07/31. Aguardando revisão.

“Quando é que tempestades de sangue e destruição não estavam continuamente varrendo o mundo?” Doris Lessing

Os contos da magnífica escritora inglesa seguem, paralelos, as inquietações e sinuosidades dos temas e estilos de seus grandes romances. Embora com grande lentidão, esses relatos fascinantes começam a ser traduzidos no Brasil, como as histórias que foram produzidas originalmente desde 1958 a 1972, enfeixadas na publicação da Editora Record: A Tentação de Jack Orney (333 páginas), continuação da série iniciada pela mesma editora com O Quarto 19.

Nos acontecimentos curtos narrados aqui, as mesmas características dos painéis maiores: a sutil ironia (“era um escriturário com perspectiva”), a coerente luta pela nova posição da mulher na sociedade (“Assim, não deverá concluir-se que a admiração compassiva por mulheres que viveram uma vida sem homens e sem apoio talvez necessite de certa revisão?”), até os temas apaixonantes dos últimos livros como Shikasta, em que a Terra está ameaçada de autodestruição e seres preocupados e caridosos, de outros galáxias, verificam, perplexos, como os humanos não se importam com o futuro da espécie e do planeta (“Observando o comportamento desses habitantes (da Terra), não só por astro-observadores, como por nossos aparelhos automáticos lançados a intervalos neste último ano, contagem de tempo deles, nossos Comissários de Negócios do Exterior decidiram que eles não tinham a menor ideia do que os ameaçava, que a sua tecnologia, ainda que muito avançada sob certos aspectos, continha uma grande lacuna, a qual se podia definir precisamente por esta área de ignorância: não saber o que lhes estava reservado. Essa lacuna parecia impossível. Muito tempo gastaram nossos técnicos procurando determinar que tipo de cérebro poderiam ter essas criaturas para tornar possível tal contradição – como já foi mencionado, uma tecnologia tão avançada numa área, e nula em outra”.)

Doris Lessing, nascida na Pérsia, atual Irã, mas desde cedo ambientada na África Negra da Rodésia (hoje Zimbábue), satiriza também, com deliciosa eficácia, o comportamento dos líderes africanos que imitam servilmente os costumes britânicos e tentam negar os defeitos humanos que os negros têm em comum com os antigos romanos e todos os demais povos e raças do mundo: a luta pelo poder, a rapacidade e a hipocrisia pan-humanas, por exemplo. Em “Do lado de fora do Ministério” representantes de uma nova nação africana perdem tempo em mesuras e salamaleques enquanto se preparam para apresentar ao governo britânico o esboço da Constituição do Estado recém-descolonizado. A mesma mesquinhez dos partidos políticos europeus transparece na discussão entre as facções ali representadas: “Não foi a primeira vez que um líder do nosso povo recebeu dinheiro dos brancos e foi repudiado pelo nosso povo”. Não: a mesma hipocrisia, a mesma corrupção, a mesma demagogia enganadora passam para os recém-libertos, em seu ferino duelo verbal: “O que devo dizer ao Ministro? Que meus adversários políticos não se envergonham de envenenar um homem enfermo num hospital? Devo dizer-lhe que tenho de ter um provador para minha comida, como um potentato oriental?” “Não, não lhe posso dizer tais coisas – eu ficaria desarmado, pois ele observaria: de negros selvagens capaz de lançar mão de veneno, o que se pode esperar?” “Duvido que ele dissesse isso – observou o Sr. Kwenzi. Seus próprios ancestrais consideravam o veneno uma arma política válida, e não há tanto tempo assim…” “Talvez o senhor devesse contar ao Ministro que encomendou um colete à prova de bala, como um gangster americano?” O ridículo da situação culmina com o final, quando a contagem mecânica de tempo se torna o parâmetro para essa nova sociedade: “A pontualidade, como todos nós sabemos, cavalheiros, é a pedra fundamental da eficiência, sem a qual é impossível governar um Estado moderno. Não é verdade, Sr. Kwenzi? Não é verdade, Sr. Mafente? Não é verdade, Sr. Devuli?”

Obliquamente, Doris Lessing demonstra que o ranço do colonialismo mental, da macaqueação de atitudes, paralisa a autenticidade de uma cultura negra autóctone, que o relógio como critério da eficácia, da produtividade, da regulamentação uniforme e totalitária da vida humana – são todos sintomas de bloqueio de costumes anteriores à chegada do homem branco e redundam apenas na aceitação passiva dos modelos que têm a Europa como único metro e portanto desvirtuam as alternativas sociais e culturais da África aborígene. Profunda conhecedora dos movimentos de libertação do continente africano e da psique humana em sua versão negra, ela já em “The grass is singing” (“A canção da relva”, em sua tradução pouco feliz para o português) aludira ao problema subjacente a esse choque de culturas e de ethos: o racismo. A personagem principal de “The grass is singing”, Mary Turner, casada com um branco ao qual é indiferente e que também é um abismo de indiferença diante de suas angústias de mulher subjugada, repele racionalmente a atração que sente pelo mordomo de cor, condenando a priori uma relação de amor e compreensão por causa dos preconceitos de cor que claramente aprisionam o comportamento humano e a medida de felicidade e autorrealização amorosa de indivíduos separados somente pela epiderme mais clara ou mais escura. Mas nunca ela é dona da verdade, limita-se a sugerir, esse verbo tão inglês e que ela usa com tanta frequência e propriedade: pode-se sugerir que os modelos brancos, europeus, não são nem os únicos nem os melhores para toda a Humanidade? Pode-se sugerir que as relações entre os seres humanos não podem ser melhor regidas através da compreensão entre as raças? Seria lícito sugerir que a posição da mulher como robô doméstico a marginaliza e destrói suas melhores potencialidades como ser sensível e inteligente?

Além do tom magistralmente caricatural através do qual ela desenha o grotesco das situações humanas com traços finíssimos, meramente alusivos, a multifacetada escritora inglesa cativa pela sua adesão íntima a tudo o que escreve. A rigor, Doris Lessing, nunca descreve de fora: está sempre participante, implicitamente dentro das pessoas e situações humanas que apresenta ao leitor. De fato, sua trajetória pessoal já a levou a ser uma comunista militante e depois a abandonar os dogmas partidários, já a fez transferir seu feminismo combativo e que ocupa todas as centenas de páginas de The Golden Notebook a uma cautelosa observação da evolução dos vários feminismos, de Betty Friedan a Kate Millett e das três Marias portuguesas. Demasiado honesta para aderir a uma visão cristalizada, estática, imutável da História, mesmo nestes contos em parte antigos, ela se mostra não hesitante quanto aos princípios éticos a que sempre aderiu – deve haver justiça social, deve haver uma distribuição mais equitativa de papéis a serem desempenhados pelo homem e pela mulher no século XX –, mas sua preocupação desemboca em como chegar a esses objetivos. Sua resposta parecer ser a de não aceitar receitas prontas, a de se auto-interrogar permanentemente: será este o caminho melhor? Não haverá opções melhores?

“A nossa amiga Judith”, que abre esta coletânea, é exemplar como concisão, insinuação zombeteira e profundidade de análise psicológica. Judith representa, quase exponencialmente, a mulher “emancipada”, ao lado das tias da narradora, que participam da caridade da igreja local, escrevem cartas de protesto ou apoio ao secretário (no Brasil seria ministro) do Interior e incentivam os “valores jovens” nas artes. Ao lado de Judith há a mulher convencional, que parou de viver até o marido voltar de uma viagem de três semanas à Austrália. Mais ainda: Judith é a mulher emancipada, sim, mas em transição para uma posição que ainda não existe e que será definida pelas pressões e fatores que forem surgindo paulatinamente na sociedade em busca da igualdade de direitos e que são imprevisíveis. Ela encara os italianos, durante sua estada em Florença, com os estereótipos da ótica tradicional inglesa e questiona esse posicionamento preconceituoso: “A respeito da Itália, diz que a razão de os ingleses gostarem tanto dos italianos é porque fazem com que eles, os ingleses, se sintam superiores. O povo italiano não tem disciplina. E esse é um motivo mesquinho para um povo amar a outro.” Mesmo a fratura entre sentimento e razão, cifrada na frase: “Mas se a gente não pode confiar no que sente, no que confiar, então?” e na sua resposta: “No que se pensa, era o que eu esperava que dissesse”, é uma síntese maravilhosa da obra empreendida há quase 200 anos por outra admirável escritora inglesa, Jane Austen. Doris Lessing deixa entrever essa cisão entre intuição e raciocínio, entre os dois polos no qual se apoiava a tragédia grega, segundo a definição de Nietzsche ainda quando lúcido como filósofo: Apolo, o deus da medida, da ordem, da hierarquia, e Dionísio, o deus do instinto, das paixões incontroláveis, do caos. Da mesma maneira que questiona o papel a ser atribuído pela mulher a si mesma neste final de século, a autora não se omite quando se trata de escarnecer das pequenas vaidades femininas: “Como queira – replicou ela, lânguida. Agora estirara-se de costas e abanava ambas as mãos diante dos olhos para secar o verniz das unhas, embora este tivesse sido aplicado três dias antes.” A frivolidade com que o adultério é encarado em “Um para o outro” é uma zombaria das oportunidades que o abandono do puritanismo oferece tanto à mulher quanto ao homem: nenhum dos dois, porém, sabe desenvolver as possibilidades latentes numa relação nova. Ambos se limitam a repetir o padrão monótono do uso de um corpo, sem afeição nem profundidade que legitimem uma escolha conscientemente em oposição à regra imutável e tradicional da monogamia insatisfatória, mas que não pode ser desafiada, teme-se impunemente.

O último conto, que dá o título ao livro, “A tentação de Jack Orney”, é transplantado para um protagonista masculino, um resumo irônico da própria vida da narradora. Na Europa ocidental de hoje a atitude de Jack Orney, como “progressista” engajado e obediente ao Partido Comunista, suscita sorrisos de incredulidade diante de tamanha falta de atualização histórica, de tanta aderência inflexível aos ditames de uma ideologia sectária e inquestionável. No Brasil de hoje, não faltarão os rótulos apressados e impensados de “reacioanarismo” e “alienação” a um personagem que, como a própria Doris Lessing, atravessou a crise de desertar o sacrossanto Partido Diretor de Todas as Ações e Reflexões de Nossa Vida e ingressar na dúvida, no legítimo ceticismo quanto à eficácia e à autenticidade de normas imutáveis em um mundo mutante, em férvida transformação. Jack Orney tem a consciência, perturbadora, da inocuidade de um grupelho de idealistas organizarem uma simbólica “greve de fome” pelos milhões de famintos da Índia ou de Bangladesh. Evoluído, Jack Orney mantém-se, obviamente, ateu: ficar junto ao leito de morte do pai moribundo é, sem dúvida, fruto de uma superstição religiosa herdada do medo que os seres humanos têm de morrer. No entanto, seu arejamento se detém diante de mulheres que se atrevem a viver sozinhas e ele, escrupulosamente, anota em sua agenda, junto com outros pensamentos, a vergonha que deveria sentir por uma reação tão machista e conformista. Jamais, porém, deixa de captar as diferenças sociais presentes até no ritual da agonia final antes da morte: o asilo em que seu pai apodrece não é o mesmo que recolhe os velhos pobres e sem economias próprias ou ajudados pelos filhos. É esta multiplicidade de enfoques simultâneos dos personagens de Doris Lessing que acrescenta uma dimensão magnífica a seu panorama de um avatar ou a essa série de metamorfoses que as pessoas atingem, à medida que o tempo escorre. A ciência, por exemplo, é um valor enfático, que merece a confiança cega de todos diante de seus pronunciamentos, ou a ciência deve ser vista sob um prisma pragmático da sua utilidade para minorar os males do ser humano e sua mísera condição? E ainda: as suas inúmeras viagens por países exóticos como o Equador, a Coréia, a Nigéria não lhe apresentavam mais um ponto de interrogação honesta: essas culturas que se desviam dos padrões europeus devem todas, uniformemente, adaptar-se às diretrizes da cultura branca, marxista, ou, quem sabe, elas interpretam a vida e a morte de forma que ele simplesmente não podia aceitar como válida?

A “tentação” de Jack Orney, como a da própria contista, é a tentação de um inusitado e sumamente inquietante contágio: “Será que me deixei contagiar por Deus?” Para quem vivia, dia a dia, um racionalismo tão sem non-sense, seria uma vergonhosa capitulação! E, concomitantemente ao perigo dessa “queda” no irracional, de que zombara a vida inteira, não havia também o perigo de dar ao seu esquerdismo militante uma explicação psicológica, um complexo de culpa ou de expiação junguiano ou adleriano? Não, isso seria aderir a uma das teses mais arqui-sabidas dos reacionários!

Aquela “doença” vergonhosa como a lepra, a hipótese metafísica da possibilidade de que existisse um Deus, apesar dos milenares e cotidianos horrores que os seres humanos se infligem uns aos outros, à Natureza e aos animais, começa a insinuar-se no plano irracional e frequentemente mágico do inconsciente. Doria Lessing fizera do sobrenatural a sua ruptura com o mundo político e suas previsões fatídicas e inapeláveis em seu deslumbrante Memórias de uma Sobrevivente. A parede que se abria diante da protagonista e que mostrava cenas ou do passado ou do futuro ou de uma transrealidade desafiadora assume para Jack Orney a forma dos sonhos que o acossam cada vez mais. Os sonhos, cheios de terror, da noção da passagem inexorável do tempo e da mortalidade quase mediata de tudo e de todos, os sonhos incutem em sua psique atormentada a certeza de que breve o efêmero da sua vida, das suas ambições e até dos próprios sonhos se esvairia no esquecimento total. A morte põe abaixo suas defesas racionais e lhe incute um pavor inesperado e enigmático. Talvez o sonho fosse a revelação mais importante da sua vida, afinal, estéril? O sonho o capacitaria a decifrar a charada da morte? “Sentou-se na cama do pai, no lugar que Ann tinha ocupado, e viu que o velho estava-se acabando. Jack não poderia dizer como sabia, mas sabia que a morte se daria nesse dia: ocorreu-lhe que, se não houvesse tido aquele sonho, não o saberia; sem o sonho, não estaria condicionado para saber”. A vacuidade da sua vida, seu itinerário político inútil lhe surgem como emblemas do desperdício e do horror: como contraponto da morte e do massacre de milhões de pessoas na Índia ou na África pela guerra, pela fome, se soma a sua apavorante jornada pela morte adentro, pelo reconhecimento adentro da infecundidade do seu exemplo: os jovens não tinham aprendido a lição do socialismo: “Mas, dessa vez, o ‘abismo’ era muito pior porque uma nova espécie de desespero penetrava no consciente da humanidade: as coisas eram muito desesperadoras, o futuro da civilização dependia de os homens serem capazes de criar novas formas de inteligência, de aprender com a experiência… O pior de tudo era que ‘a juventude’ não tinha aprendido… ele podia constatar uma mensagem principal: o motivo do fracasso do socialismo em suas realizações era óbvio. Algum processo, algum mecanismo, agia para tornar inevitável que cada movimento político se rompesse, se dividisse, depois se subdividisse em grupos, seitar, partidos menores, cada qual dominado, pelo menos temporariamente, por alguma presença forte, um herói, ou pai, ou guru, uns criticando e insultando os outros”. Seus contemporâneos, curvados sobre livros, parecem-lhe dementes, incapazes de pensamentos novos de novas formas de agir. Todos auto-hipnotizados pelas palavras como mantras e mandalas das quais contudo não surgia solução alguma!

Jack Orney enfrenta o repto que, no meio do caminho da sua vida, a transcendência lhe armou uma arapuca. Como Doris Lessing hoje em dia aderindo ao Sufismo da sua Pérsia natal, esse terremoto espiritual é um grito da consciência digna de um Kierkegaard ou de um Dostoiévski golpeando a cabeça contra o rochedo do binômio: Deus e o Mal. E é um dos momentos supremos da arte do conto deste século, escrito por uma de suas plasmadoras mais geniais e abissais já surgidas numa literatura que, ela também, se metamorfoseia como toda grande literatura e passa a ser Epifania, Gnose, Graça teologal, travessia para uma consciência espiritual tão dolorosa quanto verdejante de esperança e promessa.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Múltipla Doris Lessing .” In As três grandes damas da literatura europeia: Virginia Woolf, Marguerite Yourcenar e Doris Lessing, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 7. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.