Conversando sobre Shakespeare. Entrevista com J. Macmanaway

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Diário de Notícias, 1960/03/27. Aguardando revisão.

Temos focalizado, em “Caminhos da Cultura”, quase que exclusivamente autores contemporâneos. Hoje, porém, analisamos, pela primeira vez, um “autor clássico”, graças à oportunidade que tivemos de conversar com um erudito, especializado era Shakespeare, que esteve recentemente entre nós. Trata-se da professor James Macmanaway, da Shakespeare Association of América e da Folger Shakespeare Library, de Washington. Convidado por iniciativa do Departamente de Inglês da Faculdade de Filosofia, sob os auspícios da Universidade do Brasil a do Departamento de Estado Americano, o professor Macmanaway pronunciou, perante numeroso público reunido na sede da Universidade, uma série de conferências sobre a obra e a personalidade de William Shakespeare.

Durante um curto intervalo entre uma preleção e outra, pudemos trocar ideias com esse Shakespeare scholar e conhecer alguns de seus pontos de vista a respeito dessa figura magna de toda a literatura ocidental. Notamos que o professor que nos visitou mostrou grande reserva perante as tentativas mais recentes de encarar sob ângulos novos o mundo da dramaturgia shakespeareana e relutou em aceitar interpretações novas de certas de sua obra. Macmanaway é bastante conservador Stratford no tocante ao poeta de Stratford, do qual mantém uma imagem quase ideal, como verificaremos no decurso da nossa brevíssima entrevista. Na entanto, será melhor conhecermos suas ideias, expressas por suas próprias palavras:

Professor Macmanaway: como o senhor compreenderá facilmente, numa curta entrevista a ser publicada por um matutino de grande circulação, não podemos abordar aspectos demasiado detalhados da obra de Shakespeare. Devemos, portanto, limitar-nos a perguntas genéricas, que possam interessar a um grupo maior de leitores, deixando os temas eruditos para as revistas especializadas, como a Shakespeare Quarterly, da qual o senhor é um dos redatores. Perdoe-nos, portanto, a superficialidade de nossas perguntas e permita formular lhe a primeira: De modo geral, nos países em que não se fala a língua inglesa nos quais, naturalmente, Shakespeare constitui um valor cultural vivo, lido e representado constantemente, até pessoas cultas referem-se às vezes a uma representação de Shakespeare com certa apreensão: é um “clássico”, iremos aborrecer-nos durante a peça? Outros, hostis a tudo que não tenha sido produzido neste século, dão de ombros e exclamam: o que terá Shakespeare a dizer-nos? Ele morreu há quase 400 anos... O senhor, na qualidade de erudito em assuntos elizabetanos, poderá responder-nos até que ponto Shakespeare é atual? As gerações presentes, da era atômica e dos voos interplanetários, poderão apreender o conteúdo das suas obras, como as gerações anteriores?

Shakespeare vem sendo representado atualmente em todo o mundo. Agora, mais do que nunca, se sucedem as performances de suas peças em todos os países. Há um interesse vivíssimo por ele. Por quê? Porque, sendo um autor clássico, ele difere essencialmente dos autores modernos, que veem a vida sob um prisma pessoal, realista, descrevendo a vida corriqueira, de todos os dias. Shakespeare, ao contrário, seguindo a tradição clássica, propôs-se a recontar uma história, a história de um grande personagem, mostrando, no decurso da ação, qual o erro fundamental por ele cometido ou quais os fatores do Destino inexorável que determinaram a sua queda e a sua morte. As obras clássicas elevam os espectadores acima do nível estreito das suas lides diárias, das suas alegrias, preocupações e misérias cotidianas, revelando-nos uma imagem da grandeza humana em seus momentos supremos. Como nas tragédias gregas, o rei Lear comete tolices (does foolish things), cegado pelo poder e impedido de reconhecer a verdade objetivamente. Vemos, portanto, o choque de duas paixões: a ambição desmesurada das filhas e a vaidade extrema do Rei. Durante o desenrolar da tragédia, o Rei Lear aprende, pela primeira vez, a sentir piedade pelo sofrimento alheio, depois de sofrer, ele próprio, na carne e no espírito. A sua grandeza consiste em poder elevar-se acima da sua própria tragédia pessoal e transcender as suas limitações humanas.

Poderíamos ver entre o Rei Lear e Richard II um certo paralelismo? Em ambas as tragédias descreve-se a queda de um monarca, vítima de sua vaidade e de seu despotismo, respectivamente, não?

Sim, mas é preciso ressaltar que Lear é uma tragédia muito mais importante que Richard II, mais madura, escrita já no período final da vida de Shakespeare. Richard II contém implicações, digamos assim, políticas, inexistentes - no mesmo grau em Lear. Richard II era culpado de ter assassinado um Rei e é a nação inteira que sofre sob a sua tirania, tendo de pagar, finalmente, pelos erros que ele comete. Em Lear, a tragédia é interiorizada e reduzida a um número menor de protagonistas.

Shakespeare é um poeta eterno, porque ele revela uma grandeza latente nos seres humanos, faculdades espirituais extraordinárias, que nós, comuns mortais, não podemos ou não sabemos descrever com a mesma genialidade. Trata-se de catarsis, invocada por Aristóteles: por meio da empatia, isto é: a identificação com o personagem, sentimos piedade, medo, clamamos por justiça e nos elevamos acima do nível chão da vida diária.

A tragédia moderna, realista, ao contrário, não eleva o homem acima dessas dimensões pequenas e limitadas.

Poderíamos dizer, portanto, que Shakespeare cria uma Arte ao mesmo tempo aristocrática e de dimensões monumentais?

Perfeitamente. E quanto à questão eternamente mencionada de existência real de Shakespeare? (O professor sorri com ironia). Conhecemos as teorias mais abstratas, que identificam Shakespeare com Bacon, com uma mulher misteriosa que escrevia peças ocultamente, já houve quem afirmasse que Shakespeare não existiu, quem escreveu suas peças foi um dramaturgo que tinha e mesmo nome... O professor ri dessа velha anedota anglo-saxônica, criada para ironizar os inventores incansáveis de novos Shakespeares... Logo retruca com veemência:

Todas estas teorias são absurdas. Hoje em dia está definitivamente provado, rigorosamente, que Shakespeare existiu e foi o insuperável dramaturgo que todos veneramos. A outras teorias foram criadas por advogados, banqueiros, engenheiros, isto é: estudiosos provindos de outras profissões, mas nunca foram aceitas pelos eruditos especializados em Shakespeare. Estes nunca supuseram desse ser outro senão o que conhecemos e sobre o qual temos documentação farta e definitiva. É preciso ressaltar que esses estudiosos adventícios interpretam Shakespeare com critérios modernos, julgando que, no período elizabetano, um autor dramático devia, forçosamente, ser conhecido e famoso. Ora, Shakespeare não foi famoso nem importante na sua época, como nenhum dramaturgo importante, em si, em 1500. Olhe, vou dar-lhe um exemplo: por volta de 1905, 1910, faziam-se dezenas de filmes nos Estados Unidos. Hoje, sabemos quem escreveu os scripts, os roteiros? A situação do teatro elizabetano é semelhante: então, o autor da peça, o playwright, não tinha importância. Só mais tarde, quando foi “glamourizada” artificialmente a profissão teatral, é que os autores e os atores começaram a gozar de notoriedade e a receber salários astronômicos.

É difícil conceber que Shakespeare não tenha sido importante em qualquer período da sua carreira...

Sem dúvida, mas essa é a verdade. Lembra-se de como a conservação de suas peças, por exemplo, corrobora essa tese: cerca de metade delas chegou até nós roubada, sim roubada por atores que as representaram, decoraram os papéis e depois meramente as copiaram, preservando o texto literário do esquecimento e de seu ulterior desaparecimento. Assim sucedeu, por exemplo, com peças muito populares naquela época, como The Merry Wives of Windsors, Romeo and Juliet, etc.

Além das que foram preservadas dessa maneira, há os portfolios, publicados sete anos depois da morte de Shakespeare, quando Condell decidiu imprimir suas obras mais Importantes, em 1623.

Gostaria que o senhor elucidasse a atitude social de Shakespeare. É verdade que, como afirmam vários de seus biógrafos, ele acreditava no “direito divino dos reis” ou se insurgia contra a monarquia como forma de governo?

Shakespeare não podia ser senão monárquico, seria impossível, na sua época, ser outra coisa. Shakespeare respeitou sempre a hierarquia política aceita pelos seus contemporâneos. Além do que, Shakespeare tinha como propósito único contar uma história, revelar, por meio dela, as fraquezas e as grandezas humanas. Ele não era absolutamente um autor imbuído de preocupações sociais, nem tampouco o eram Ben Jonson, Marlowe e outros dramaturgos dessa era. É verdade que, durante o período da Restoration, tentaram, com resultados desastrosos, corrigir Shakespeare. O período neoclássico dava um fim diferente as tragédias em O Rei Lear, por exemplo, no final as irmãs eram punidas, Cordélia e Lear triunfavam juntos e assim por diante. Shakespeare não tem um propósito exclusivamente moral ou moralizante tampouco. Ele pune os criminosos e recompensa os justos, mas não sempre!

E quanto à controvérsia existente entre os que afirmam que Shakespeare foi ateu, os que dizem que le foi agnóstico e os que vislumbraram em sua obra um profundo sentido religioso?

Seria Impossível determinar com exatidão esse ponto. Só podemos afirmar que, exteriormente, ele foi Anglicano conformista e declarado. Batizado nessa religião, seus filhos também. Ele casou-se na Igreja Anglicana e mais tarde ele e a esposa foram enterrados nela.

Quais são, na sua opinião pessoal, as melhores peças de Shakespeare as que contém a sua produção qualitativamente superior?

King Lear, Hamlet, Twelfth Night, As You Like It, The Tempest.

O senhor se referiu à Tempestade. O que pode dizer a respeito das supostas mensagens ocultistas ou alegorias de fundo místico cifradas nessa obra complexa, última das escritas por Shakespeare, não?

Sim, uma das últimas e sem dúvida uma das mais complexas. É uma peça extremamente difícil de se criticar. Não ficou provado nada, até hoje, sobre a sua pretensa conexão com e ocultismo ou o misticismo. Mas repito que, cada vez que a leio, me sinto como se estivesse em transe: ela é feita “de uma substância semelhante à dos sonhos”, diferente de todas as outras peças escritas por Shakespeare. Cria no expectador ou no leitor um estado de hipnose quase...

Denota por assim dizer, numa atitude que chamaríamos, literariamente, de romântica perante a vida? Na melhor acерção do termo, naturalmente!

Exatamente.

Quanto ao sexo, aos problemas sexuais constantemente tratados nas peças de Shakespeare: pest, Não só em The Tempest, em Cymbeline e tantas outras, nota-se um verdadeiro culto da virgindade, como nas peças espanholas com seu culto do “honor feminino”. São constantes também as referências um pouco cruas, para a sensibilidade moderna, a fatos e conceitos relacionados com o instinto sexual.

Os Elizabetanos eram muito matter of fact a respeito do sexo: o sexo era um assunto sobre e qual se falava francamente, sem acanhamento. Vivia-se numa época que não era hipócrita como a nossa. Entre os povos primitivos, como os da Polinésia, predomina esta mesma liberdade, abordando-se temas sexuais com o maior desembaraço. Nas partes rurais da Itália não falo da high society decadente de Roma atitude perante o sexo é a mesma: ele é considerado uma força vital natural, que não pode ser negada nem exagerada,

E quanto à encenação de Shakespeare, professor Macmanaway? O senhor concorda com os cenários suntuosos que se usam hoje em dia para as representações de Shakespeare, os recursos de iluminação e de carpintaria teatral tão difundidos em todo o Ocidente?

Absolutamente. Ao contrário: creio que nem o Old Vic representa sempre Shakespeare como deveria, isto é: cenário deve ser muito simples, para não distrair a atenção do público, que deve recair exclusivamente sobre o diálogo e a ação deles decorrentes, Devemos dar ênfase no texto, porque, “the dialogue is the thing”, parodiando Hamlet. As peças de Shakespeare foram criadas para serem representadas num palco vazio, sem cenários nem refinamentos de iluminação. Já testemunhei casos em que o público reage de maneira favorável a essa maneira de levar Shakespeare.

Para finalizar: que impressão o senhor teve de seu contato com os estudantes da Universidade e com os estudiosos brasileiros dedicados ao conhecimento de Shakespeare?

Fiquei agradavelmente surpreendido com o bom nível de informação a respeito de Shakespeare, dada a dificuldade de obter livros especializados principalmente os mais recentes. Estou levando comigo uma tradução moderna do Macbeth feita pelo poeta Manuel Bandeira e em São Paulo deverei conhecer o professor Carlos Alberto Nunes, que, segundo me dizem, traduziu de maneira esplêndida toda a obra de Shakespeare. Aliás, a Shakespeare Quarterly (publicacão trimestral da Shakespeare Association of América) dedicou um longo artigo a essa tradução, tecendo altos louvores à obra realizada pelo professor Nunes.

O senhor tem alguma mensagem pessoal que transmitir aos brasileiros, por meio do Diário de Notícias? Alguma observação feita no Brasil?

Desejo fazer votos sinceros para que os professores brasileiros possam tirar partido das bolsas de estudo oferecidas pelas instituições americanas como a Folger Shakespeare Library. O professor, uma vez formado (diploma correspondente ao Ph. D., Philosophy Degree, de uma Universidade americana), poderá fazer pesquisas nos Estados Unidos, sobre um setor qualquer de sua especialização. Nós veríamos com interesse e com prazer um maior afluxo de professores brasileiros aos nossos centros de investigações literárias. Desejo também estender meus agradecimentos a todos que tornaram minha permanência no Brasil tão agradável e tão proveitosa.

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Conversando sobre Shakespeare. Entrevista com J. Macmanaway .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.