Um gênio anônimo

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Caros Amigos nº 6, 1997-09. Aguardando revisão.

Como durante todos os séculos de existência do Brasil em seu aspecto de nação culta – em sua maioria atuante nas esferas criadora, intelectual, cultural e artística –, o livro continua indispensável. Exceto, naturalmente, os que trazem lucros através da imbecilidade dos best-sellers neste país que nem ao capitalismo selvagem chegou. Estamos ainda na era do ávido e míope mercantilismo pré-capitalista que nos legaram, na parte negativa, nossos colonizadores portugueses, ai de nós!

Guilheme Scalzilli estreia quase totalmente ignorado por todas as mídias brasileiras. Nada sei sobre esse pujante escritor e seu A Colina da Providência. Ao que tudo indica – o que não é absolutamente raro no Brasil – trata-se de uma edição patrocinada pelo próprio autor e só sei que os exemplares do livro profundamente original e impressionante podem ser pedidos, em nome do escritor em seu endereço pessoal.

Scalzilli explode, com toda a força do seu talento, para alinhar-se na galeria de literatura atual brasileira de que constam Hilda Hilst, Guilherme Dicke, Jamil Snege, Wilson Bueno e Vicente Cecim. Quase todos absolutamente anônimos, desconhecidos dos leitores e “exilados” em seu próprio país pela hedionda “morte civil” que lhes foi imposta, por ignorância, má-fé ou aquela ociosa burrice brasileira tão autêntica como nosso mico-leão.

À primeira vista, na capa – numa interpretação subjetiva, reconheço – vi não a paisagem de um rochedo batido pelas ondas do mar. Espantou-me o surgimento, em vez disso, de uma figura monstruosa, humanoide, saída dos quadros do magnífico pintor contemporâneo inglês Francis Bacon. Depois, à medida que vamos lendo os doze contos que compõem esse livro tão singular entre nós, instaura-se uma afinidade (o que nada tem a ver com cópia, plágio e outros termos depreciativos) de Scalzilli com o mundo soturno de Kafka, de Dalton Trevisan, de João Antônio e de Beckett.

O primeiro relato, “Velho”, guarda uma monstruosa atmosfera semelhante à do homem que acordou e se viu repentinamente transformado numa imensa barata ou outro inseto qualquer, que Kafka não especifica qual seja, em A Metamorfose (Die Verwandlung, no original alemão). Solene, que inicialmente confunde o leitor: é um adjetivo, um advérbio abreviado para um adjetivo, até que se dissipam as dúvidas – Solene é o nome do jovem que espanta profundamente a família ao reconhecer aquilo que só o espelho lhe revelaria, a ele, de forma realista e honesta:

“O espelho confirma.

Sulco a sulco, nos desenhos assimétricos que se espalham, no semblante perdido e sóbrio, nos olhos cansados, Solene transformara-se num velho septuagenário.”

Paralelamente, os achegados tomam providências práticas:

“Mas a família nem por isso deixou de se precaver, moral e materialmente, para o inevitável: em palavras diretas, Solene ia ficando gagá.”

O moço precoce e inexplicavelmente, para os que o cercavam, envelhecido, resolve, abruptamente, fazer o testamento. Deixa seus patéticos “pertences” à mãe, à irmã “e a magra poupança para o pai investir no estudo dos irmãos. Todos ficaram sinceramente comovidos, abraçaram-no, beijaram, mas no íntimo estavam preparados para o pior.

Não demoraria muito.

Solene passou alguns dias enfermo, uma crise de asma virou pneumonia e desiludiu o geriatra. Familiares e amigos revezaram-se no plantão, ninguém falava, era só espera.

Numa tarde cinzenta de dezembro Solene expirou com oitenta e seis anos, vinte e três após ter nascido. Ao redor do cadáver, muitas pessoas de idades variadas lamentavam e arguiam pela memória de um grande homem.”

Salta aos olhos que apenas um, dentre os doze contos, não possa simbolizar a complexidade multifacetada, prismática da estrutura geral. “Cocô” é um relato (ou ficção?) que causa riso e empatia com a mini tragédia de um homem que precisa – urgentemente – aliviar-se de suas doloridas e hilariantes lutas por que passa até atingir o seu objetivo; mesmo que em circunstâncias tão embaraçosas diante de questão tão tabu numa sociedade bem-comportada e silente sobre quaisquer necessidades físicas alheias.

Igualmente “Diário de Claudius” reitera esse – se assim se pode chamar – surrealismo aparentado com os filmes extraordinários do grande cineasta espanhol, Buñuel, a quem, aliás, o conto que dá título ao livro inteiro – “A Colina da Providência” é explícita e ternamente dedicado.

Scalzilli – é indispensável reconhecer desde logo – não arrebatará multidões de leitores. Sua magistral criação (já quase totalmente madura nesta estreia na prosa) tem uma cadência própria, uma organização arquitetônica, ou melhor, uma orquestração sutilíssima dos mais variados elementos. Fugazes lampejos de – é difícil dizer isso – “alegria” ou “felicidade” sempre entre a violência ou banalidade equina de certos personagens e a sempiterna Angústia – com maiúscula mesmo – que parece envolver toda a humanidade vista por ele, como neblinas que descessem do cimo do inatingível Castelo de Kafka.

Obviamente, o prazo e o espaço que uma publicação possa dar a uma crítica-relâmpago como esta me impedem de ir muito mais longe. Nem a Caros Amigos poderia fazer jus a Guilherme Scalzilli e seu mundo inquietante, profundo melancólico e tantas vezes complexo e enigmático, a menos que lhe dedicasse – tarefa impossível – toda uma edição (embora ele amplamente a merecesse)…

Voltando então, a galope (a imprensa é regida por número de linhas e por horários que, por mais flexíveis que sejam, acabam, logicamente, por ser finitos), ao “Diário de Claudius” – já as primeiras frases evocam esse monólogo esplendidamente colocado em palavras que o autor mantém consigo mesmo ao tirar seus impiedosos – ou realistas? – instantâneos do miraculoso e do vulgar, ou melhor: do banal de vidas humanas estreitíssimas, próximas do comportamento de um gado bovino ou de feras soltas na urbs moderna.

“Sou um estranho dentro de mim mesmo.

A cabeça não condiz. Sinto-me maior, mais solto e atrevido, menos sério e comovido, definitivamente menos triste. Não há cabelo em meus pensamentos, não há a estatura, nem ombros caídos.

Mas há o nome. Ou a voz.

Esta voz que comigo fala é uma diluição etérea que simplesmente pensa o que o inimigo fala para expelir num instante a enternecida fé infantil de ser corroído, o mesmo ser corroído da boca torta.

Aspecto explosivo incrustado em sabedoria da qual apenas esqueci. A raiva persiste. Uma nódoa. Luxúria nos bisavôs, sangues nas roupas deles. (…)

Procuro um vão de pilastras como esconderijo, vendo a distância o mercenário some, pensando nas outras vezes, calculando a dificuldade, parece sem ar nos pensamentos, um arrepio, mas é clara evidência, a lógica, uma engraçada noção temporal, surgindo, ressurgindo, mesmo sabida inédita, mesmo sabendo inócua da flashbilidade dos pensamentos bons.”

As citações poderiam estender-se por muitas e muitas páginas, de qualquer conto (um ou outro inferior à altíssima média geral). Sutilíssimo, mágico, o estilo de Guilherme Scalzilli.

Cético – ser for esse o termo apropriado – com relação a interpretações político-ideológicas, científicas ou behavioristas da condição humana – que Buda, ao despertar, discerniu na tríade inescapável de sofrimento, envelhecimento e morte –, Scalzilli acena, meramente acena, frise-se bem, na orelha do livro: já que todas as explicações esquemáticas não saem do eterno círculo vicioso. Seria um insight mesmo que remotamente místico o que ele exprime ao terminar de, digamos, meditar alto, ao dizer, finalmente, depois de analisar as palavras e a apreensão mecanicamente lógica, cerebrina, da vida humana:

“Se as regras são compreendidas, além de seguidas no limítrofe reconhecimento humano, resta a esses seres procurarem outras leis menos terrenas que expliquem tudo isto”.

Ou a vida não é mais do que o falatório de um louco, cheio de sons e de fúria, mas que nada, nada significa, como em uma determinada peça Shakespeare apresentou como hipótese?

Seja como for, Guilherme Scalzilli é um dos mais profundos e perfeitos escritores do Brasil de hoje.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1997) 2023. “Um gênio anônimo.” In Grandes contistas brasileiros do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 10. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.