A missão do escritor. O discurso de Camus em Estocolmo (trad. Leo Gilson Ribeiro)
Prosseguindo na série “Documentos”, que divulga entre nós textos importantes da Cultura estrangeira, principalmente contemporânea, traduzimos hoje o texto do primeiro dos dois discursos com os quais Albert Camus agradeceu à Real Academia de Estocolmo pela concessão do prêmio Nobel de Literatura. Será desnecessário insistir sobre a importância fundamental desta extraordinária declaração de propósitos desse grande pensador contemporâneo, falecido recentemente. As qualidades melhores da obra e da vida desse artista ímpar da nossa era refletem-se em toda a sua pujança e integridade, nas afirmações dessa memorável oração:
“Ao receber o prêmio com o qual a vossa livre Academia quis honrar-me, a minha gratidão tornava-se mais profunda à medida que eu reconhecia quanto a recompensa ultrapassa os meus méritos pessoais.
Cada ser humano e, com maior razão, cada artista, deseja ser reconhecido. Eu também o desejo. Mas não me foi possível ter notícia de vossa decisão sem confrontar o seu alcance com o que realmente sou.
Um homem quase jovem, rico somente de suas dúvidas e de uma obra ainda meramente esboçada, habituado a viver em meio à solidão do trabalho ou nos refúgios da amizade, como não teria se inteirado, com um sentimento próximo do pânico, de uma decisão que o conduzia, bruscamente, só e reduzido a si mesmo, ao centro das atenções, sob o foco de uma luz crua? E como poderia receber esta honra enquanto na Europa outros escritores, dentre os maiores, estão condenados ao silêncio enquanto sua terra natal suporta uma dilaceração incessante?
Conheci este caos e esta comoção profunda. Para reencontrar a paz, foi-me necessário, finalmente, ajustar contas com um destino demasiado generoso. E já que eu não podia elevar-me até ele, apoiando-me somente em meus próprios méritos, nada mais encontrei capaz de ajudar-me senão o que me tem mantido nas circunstâncias mais adversas, durante toda a minha vida: a ideia que tenho da minha arte e da missão do escritor.
Permita-me que vos diga, como testemunho desse sentimento de gratidão e de amizade que me animam, e da maneira mais simples que me será possível, qual é essa ideai.
Pessoalmente eu não poderia viver sem a minha arte. Mas nunca coloquei esta arte por cima de tudo. Se, ao contrário, ela me é necessária é porque não se separa de ninguém e me permite viver, exatamente como sou, no mesmo nível de todos os meus semelhantes.
A arte não é, na minha opinião, uma alegria solitária. É um meio de comover o maior número de seres humanos, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada dos sofrimentos e das alegrias comuns a todos. Ela impõe, portanto, ao artista, não se isolar, ela o submete à verdade mais humilde e mais universal. E quem escolheu, como sucede muitas vezes, seu destino de artista, porque se sentia diferente dos outros, logo aprende-se que não poderá alimentar a sua arte e a sua diferença individual se não confessando a sua própria semelhança com todos os homens. O artista se forma neste eterno encontro, neste intercâmbio entre ele e os demais, a meio caminho da beleza, que lhe é indispensável, e da comunidade da qual não poderá desligar-se. Isto porque os verdadeiros artistas não conhecem o desprezo pelos seus semelhantes, eles impõem-se a si mesmos compreender em vez de julgar. E se há uma parte deles à qual nos possamos aliar, ombro a ombro, neste mundo, não poderá ser senão aquela em que – conforme a grande frase de Nietzsche – não mais reinará o juiz, mas sim o criador, seja este operário ou intelectual.
A missão do escritor comporta, ao mesmo tempo, deveres difíceis. Já pela sua própria definição ele não poderá pôr-se, hoje em dia, a serviço dos que fazem a História, mas sim dos que a sofrem. Caso contrário, ele estará só e privado da sua arte. Todos os exércitos da tirania, com os seus milhões de homens, não poderão arrancá-lo da solidão, mesmo se – e principalmente se – ele consente em caminhar com eles. Mas o silêncio de um prisioneiro desconhecido, abandonado às humilhações, no outro extremo do mundo, basta para tirar o escritor do exílio, cada vez, pelo menos, que ele consiga, gozando os privilégios da liberdade, não esquecer aquele silêncio e dar-lhe eco por meio da arte.
Nenhum de nós tem bastante grandeza para uma tal vocação. Mas em todas as circunstâncias da sua vida, obscuro ou provisoriamente célebre, preso às cadeias da tirania ou livre para exprimir-se, o escritor pode encontrar de novo o sentido de uma coletividade viva que o justifique, sob a única condição de que ele aceite, segundo a medida de suas forças, o peso duplo que constitui a grandeza de seu ofício: o de estar a serviço da verdade e da liberdade. Já que a sua vocação é a de reunir o maior número de homens, ela não se pode adaptar à mentira e à servidão, as quais, onde imperam, fazem multiplicar as solidões. Sejam quais forem as nossas debilidades pessoais, a nobreza do nosso ofício terá sempre suas raízes nestas duas promessas difíceis de manter: a recusa de mentir a respeito do que sabemos e a resistência à opressão.
Durante mais de vinte anos de uma História demente, perdido, sem salvação como todos os homens de minha idade, nas convulsões de minha época, eu tenho sido apoiado pela noção obscura de que escrever é uma honra porque esse ato exigia um empenho moral e não somente o de escrever. Exigia o empenho específico de carregar sobre os ombros, exatamente como eu era e segundo minhas forças, junto com todos que viviam o mesmo período histórico, o infortúnio e a esperança de que éramos partícipes. Estes homens, nascidos no início da primeira guerra mundial, que tinham vinte anos na época da instauração do regime hitleriano e dos primeiros processos revolucionários e que foram em seguida submetidos à prova, a fim de aperfeiçoar a sua educação na guerra da Espanha, na segunda guerra mundial, no universo dos campos de concentração, na Europa das torturas e das prisões, devem hoje educar seus filhos e produzir suas obras num mundo ameaçado pela destruição atômica. Ninguém, suponho, pode exigir que eles sejam otimistas. E creio também que devemos compreender, embora sem deixar de ornao-los, os que, devido ao exemplo dos que sucumbiram diante de um desespero maior, reivindicaram seu direito à desonra e tombaram no niilismo da nossa era. Mas a maior parte de nós, em meu país e na Europa, recusou este niilismo e se pôs em busca de uma legitimidade. Estes tiveram que forjar um modo próprio de viver em meio às catástrofes, para nascer uma segunda vez e lutar em seguida, com o rosto descoberto, contra o instinto de morte ativo na nossa História.
Cada geração, não há dúvida, crê-se na obrigação moral de refazer o mundo. A minha sabe, porém, que não o refará. No entanto, a sua obrigação é talvez ainda maior para com ele. Ela consiste em impedir que o mundo se arruíne. Herdeira de uma História corrupta, na qual as revoluções deterioradas, a técnica tornada louca, os deuses mortos e as ideologias extenuadas se confundem, na qual poderes medíocres podem hoje em dia destruir tudo já sem saber convencer, de uma História na qual a inteligência abaixou-se a ponto de pôr-se a serviço do ódio e da opressão, está partindo só das suas negações, um pouco daquilo que constitui a dignidade de viver e de morrer.
Diante de um mundo ameaçado de desintegração, no qual os nossos grandes inquisidores arriscam-se a instaurar para sempre o reino da morte, ela sabe que deverá, numa espécie de corrida insana contra a aparência, restaurar entre as nações uma paz que não seja a da servidão, reconciliar novamente o trabalho e a cultura, reconstruir com todos os homens uma aliança internacional. Não é certo que possamos jamais conduzir a bom termo uma tarefa tão imensa, mas é certo que, onde quer que seja no mundo, a nossa geração já aceita o seu duplo repto de verdade e de liberdade e, se necessário, saberá morrer sem odiá-lo. É ela – esta missão -, portanto, que merece ser saudade e encorajada onde quer que se encontre, e sobretudo onde ela é sacrificada. É a ela, de qualquer modo, que, certo de vosso profundo consentimento, eu desejaria transferir a homenagem com que me honrais hoje.
E eis que depois de vos ter explicado em que consiste a nobreza do escritor, eu ao mesmo tempo o coloquei novamente no lugar que lhe compete, como sendo o do indivíduo que não tem títulos senão os que comparte em comum com os seus companheiros de luta, vulnerável mas obstinado, injusto mas sedento de justiça, que constrói a sua obra sem sentir vergonha nem orgulho, diante de todos, sempre dividido entre a dor e a beleza e dedicado, enfim, a extrair de sua dupla vida as obras que ele insiste, obstinadamente, em edificar contra o movimento destrutor da História. Quem então poderia exigir-lhe soluções já feitas e belos códigos de moral? A verdade é misteriosa, sempre difícil de alcançar. A liberdade é perigosa, tão árdua de ser vivida quanto inebriante. Devemos dirigirmo-nos rumo a estes dois objetivos, penosa, mas resolutamente, certos, já de antemão, das nossas derrotas no percurso de um caminho tão longo. Que escritor ousaria, em sã consciência, erigir-se em pregador da virtude? No que me diz respeito, é necessário que eu repita que não sou nada de tudo isso. Não pude nunca renunciar à luz, à alegria de viver, à vida livre em meio à qual cresci. Mas embora esta nostalgia explique muitos de meus erros e de minhas culpas, ela me ajudou, sem dúvida, a compreender melhor o meu ofício, ela me ajuda ainda a unir-me, cegamente, a todos os que, silenciosamente, não suportam no mundo a vida que lhes foi dada senão graças à recordação ou ao retorno de momentos de felicidade livres e breves”.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
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editor = {Rey Puente, Fernando},
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Leo Gilson Ribeiro)},
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os despotismos e os totalitarismos},
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abstract = {Diário de Notícias, 1960/06/26. Aguardando revisão.}
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